"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/03/2022

Jurisprudência 2021 (158)


Litisconsórcio necessário;
patrocínio judiciário obrigatório*


1. O sumário de RL 12/7/2021 (19206/18.0T8LSB.L1-2) é o seguinte:

A falta de constituição de novo mandatário forense por parte do coautor não obsta à prossecução da ação, impulsionada pelo coautor que permanece patrocinado, mesmo que as partes litiguem em litisconsórcio necessário.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença recorrida julgou a instância extinta ao abrigo do disposto nos artigos 281.º n.º 1 e 277.º al. c) do CPC (diploma que doravante será sempre o referido, caso nada se diga em contrário). Isto é, considerou-se que o processo estava parado havia mais de seis meses, por negligência das partes. Tal negligência consistiu no facto de a coautora Maria (…), notificada da renúncia ao mandato da sua mandatária forense, não ter constituído novo mandatário, apesar de para tal ter sido notificada. Uma vez que nestes autos está em causa, quer do lado ativo quer do lado passivo, um litisconsórcio necessário legal, o A. Armando sempre careceria de legitimidade para litigar sozinho nos autos. 

Vejamos.

Quanto ao patrocínio judiciário.

O patrocínio judiciário consiste na representação e assistência técnica proporcionada às partes por advogados (ou solicitadores), a fim de conduzirem o processo, de acordo com as regras legais.

A exigência do patrocínio judiciário explica-se por diversas razões: razões psicológicas ligadas à conveniência de manter algum distanciamento e objetividade relativamente à matéria em discussão; razões de natureza técnica, como a necessidade do conhecimento do Direito aplicável e das regras processuais, bem como da experiência profissional.

O patrocínio judiciário é obrigatório nos casos previstos no art.º 40.º, n.º 1:

1 - É obrigatória a constituição de advogado:
a) Nas causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário;
b) Nas causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor;
c) Nos recursos e nas causas propostas nos tribunais superiores.
2 – (…).”

A falta, insuficiência ou irregularidade do patrocínio podem ser suscitadas pela parte ou pelo tribunal a todo o tempo e são sanáveis (artigos 48.º n.ºs 1 e 2, 41.º). Se o não forem, haverá lugar à absolvição da instância, se a falta for do autor (art.º 577.º, al h)). Se a falta respeitar ao réu, ou ao seu mandatário, ficará sem efeito a defesa (art.º 41.º).

Nos casos em que é obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato por parte do mandatário do autor implica a suspensão da instância se este não constituir um novo mandatário no prazo de 20 dias; já se a falta for do réu, o processo segue os seus termos, aproveitando-se os atos anteriormente praticados; se a falta for do requerente, opoente ou embargante em procedimento ou incidente inserido na tramitação de qualquer ação, extingue-se o procedimento ou o incidente (art.º 47.º n.º 3).

É evidente que se a falta de mandatário provier da parte demandante, o processo terá de findar, pois o processo não pode ser impulsionado (no processo civil ainda vigoram os princípios do dispositivo e da igualdade das partes! – cfr. artigos 3.º n.º 1, 4.º, 5.º n.º 1, 6.º n.º 1 – “sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes” -, 281.º, 608.º n.º 2, 609.º n.º 1) e a parte demandada e o tribunal não podem ficar indefinidamente à espera que a parte ativa constitua novo advogado. Já se a falta da constituição de advogado ocorrer do lado da parte demandada, a ação prosseguirá os seus termos, impulsionada (sem prejuízo do dever de gestão processual que recai sobre o juiz -art.º 6.º do CPC) pela parte demandante, sofrendo o réu as eventuais consequências negativas decorrentes da sua inércia. De igual modo se passam as coisas em relação ao chamado nos incidentes de intervenção principal provocada: uma vez citado, ainda que nada faça nem constitua mandatário forense (supondo que na causa o patrocínio é obrigatório), a ação prosseguirá e a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa apreciará a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado (art.º 320.º do CPC). [...]

Reportemo-nos ao caso dos autos.

Os AA., sem oposição das RR., atribuíram à ação o valor de € 30 000,01. Por outro lado, com esta ação pretende-se pôr termo a relações jurídicas de arrendamento. Assim, as partes só podem atuar nesta causa através de mandatário forense (artigos 40.º n.º 1 al. a) e al. b), 629.º n.º 1 e n.º 3 al. a) do CPC, 44.º n.º 1 da LOSJ).

Por outro lado, aceita-se que a resolução do litígio exige a intervenção dos arrendatários e dos herdeiros da herança em que se integram os locados, por força de norma legal e para que a decisão, uniforme quanto aos litisconsortes necessários co-herdeiros, produza o seu efeito útil normal (artigos 2091.º n.º 1 e 2078. n.º 1 do Código Civil).

Tais exigências de legitimação por força da intervenção na causa de todos os titulares da relação jurídica controvertida foram satisfeitas pelo incidente de intervenção principal requerido e deferido, adicionado à própria propositura da ação por dois desses titulares (Armando (…) e Maria (…)) contra as duas arrendatárias do edifício pertencente à herança.

Aquando da propositura da ação ambos os AA. estavam patrocinados por advogado. Assim, a instância iniciou-se validamente e estabilizou-se quanto aos sujeitos processuais, inexistindo qualquer preterição de litisconsórcio necessário.

Posto isto, a dado passo (em 02.9.2019) a mandatária dos AA. renunciou ao mandato que lhe havia sido conferido pela A. Maria (…). A tal renúncia não terá sido alheia a cedência (em 02.01.2020) do seu quinhão hereditário que esta demandante veio a operar a favor de F Lda.

Quando o mandatário de qualquer das partes renuncia ao mandato, a parte deverá ser disso notificada pessoalmente, a fim de que possa suprir a falta de patrocínio (art.º 47.º n.º 2 do CPC).

Se a constituição de advogado for obrigatória e a parte não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias, o processo seguirá os seus termos, “se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os atos anteriormente praticados” (al b) do n.º 3 do art.º 47.º do CPC). Assim será também relativamente às partes intervenientes principais. Também delas não depende a prossecução do processo, sendo certo que a decisão final produzirá força de caso julgado nos termos do art.º 320.º do CPC, tenham ou não advogado constituído.

Já se a falta de constituição de novo advogado, nos casos em que ela é obrigatória, for do “autor” ou do “exequente”, a lei impõe a suspensão da instância (al. b) do n.º 3 do art.º 47.º do CPC).

E naturalmente que se essa paragem do processo ultrapassar o prazo de seis meses, sem que se demonstre que tal omissão não resulta de negligência do demandante, a instância extinguir-se-á, por deserção, nos termos do art.º 281.º do CPC.

Porém, a lei refere-se ao demandante autor ou exequente no singular.

E no caso de pluralidade das partes no lado ativo, em que apenas uma das partes demandantes não constituiu novo mandatário após a renúncia do anterior?

Reportemo-nos à ação declarativa, que é a espécie de ação que interessa ao caso destes autos.

Em caso de coligação ativa, o demandado será absolvido da instância quanto ao peticionado pelo coligado que não constitua novo mandatário forense. Mas a ação continuará quanto aos restantes coligados (cfr. art.º 38.º n.º 3).

Assim, a falta superveniente de patrocínio judiciário por um dos autores não determinará, pelo menos necessariamente (desde logo em caso de coligação de autores), a suspensão da instância e, em caso de persistência da inércia do coautor, a extinção da instância.

E em caso de litisconsórcio voluntário?

Atendendo à posição de relativa autonomia de cada litisconsorte voluntário à luz do direito substantivo e adjetivo, já acima caracterizada, não se lobriga que a ação se deva suspender e/ou extinguir em virtude da inação de um dos coautores, penalizando os restantes que estejam devidamente patrocinados e ativamente interessados na prossecução da ação. Assim se entendeu, v.g., no acórdão da Relação do Porto, de 24.01.2013, processo 3128/07.2TVPRT-C.P1 e no acórdão da Relação de Évora, de 21.3.2013, processo 94/06.5, ambos consultáveis em www.dgsi.pt. Acórdãos esses que se fundaram em razões de economia processual e de identidade com as situações decorrentes da intervenção principal, ponderando-se, no citado acórdão da Relação do Porto, que é de presumir, “a partir da passividade do co-autor não patrocinado, que ele aceita a causa nos termos em que esta se encontra actualmente e se conforma com seu resultado (ainda que porventura possa a sua revelia prejudicá-lo), sem, todavia, desistir dos seus direitos nem do processo e dos actos nele praticados em sua representaçãonão se descortinando motivo bastante para, analogamente ao que prevê o art.º 328.º n.º 1 do CPC de 1961 (correspondente ao art.º 320.º do CPC de 2013) “não viabilizar o prosseguimento dos termos da causa, evitando os prejuízos referidos, sobretudo para o Autor que se mantém devidamente patrocinado, mas propiciando a apreciação na sentença, com possíveis efeitos de caso julgado, do direito do autor revel, e assim a resolução do litígio, com todas as vantagens daí advenientes para a pacificação das partes desavindas e para a eficácia e credibilidade do sistema de justiça”.

Ora, igual solução se impõe, a nosso ver, no caso de litisconsórcio necessário.

A A. Maria (…) deu início à ação validamente, juntamente com o A. Armando (…), ambos devidamente patrocinados por ilustre advogada. A circunstância de a referida advogada ter renunciado ao mandato que lhe havia sido conferido pela A. Maria (…) e de a A. Maria (…) não ter constituído novo mandatário não “tira” a A. Maria (…) do processo nem paralisa este, na medida em que o outro A. continua a estar patrocinado e em condições de impulsionar a ação. No fundo, a A. permanece na ação em situação idêntica à dos outros intervenientes principais para ela chamados, sujeitando-se ao veredito final, sendo certo que aquilo que foi processado enquanto estava patrocinada permanece nos autos.

Mesmo que a A. Maria (…) desistisse da instância ou do pedido tal não poderia afetar a posição do outro autor (e, afinal, dos outros chamados que declararam aceitar o teor da petição inicial, aderindo aos termos da ação tal como fora proposta – caso dos chamados Pedro (…), Carlie (…) e Eamonn (…)), como decorre do citado art.º 288.º n.º 2.

E, como parece ser evidente, o A. Armando (…) não pode ser penalizado por omissão pela qual não é responsável.

Aliás, no decurso do prazo de suspensão decretado pelo tribunal a quo deu-se início a um incidente de habilitação de cessionário dos direitos da A. Maria (…), o que indiciaria que a questão do patrocínio judiciário dessa autora iria ser ultrapassada. Este é um detalhe que, afora o atrás exposto, não seria despiciendo na ponderação da negligência imputada às partes na paragem do processo, tanto mais que o dito incidente de habilitação foi julgado extinto exatamente na mesma data em que foi proferida a recorrida decisão que julgou a instância extinta por deserção.

Cremos, pois, que a apelação merece provimento e a sentença recorrida deve ser revogada, determinando-se a prossecução da ação."

*3. [Comentário] a) O acórdão tem um voto de vencido, mas, salvo melhor opinião, decidiu bem.

Pense-se na intervenção provocada de um litisconsorte activo (art. 316.º, n.º 1, CPC). O chamado a intervir pode não vir a ter nenhuma actuação na acção. Contudo, isso não significa que a acção se torne inadmissível por preterição de litisconsórcio necessário e não impede que o tribunal aprecie o mérito da causa, inclusivamente com valor de caso julgado em relação ao interveniente que nada praticou em juízo (art. 320.º CPC).

Tudo isto mostra que a "revelia" de um dos autores iniciais ou de um autor subsequente não obsta à admissibilidade e à continuação da acção. No fundo, a lei não concede -- e bem -- qualquer "poder de veto" ao autor "revel".

b) Agradece-se a atenção dispensada ao CPC online (última publicação aqui).

MTS