Divórcio sem consentimento;
alimentos provisórios
1. O sumário de RG 13/7/2021 (594/21.7T8VRL.G1) é o seguinte:
I. O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à acção principal) significa que este é um instrumento ao serviço da acção judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respectiva decisão (art. 364.º, n.º 1, do CPC).
II. Os alimentos definitivos podem ser pedidos por um cônjuge contra outro, ou na própria acção de divórcio (como pedido acessório, do principal de dissolução do casamento), ou em acção declarativa autónoma, sob a forma de processo comum (como pedido principal ou único da mesma); e, em qualquer um destes casos, uma vez que se verifica o nexo de instrumentalidade ou dependência exigido por lei, estará o cônjuge carenciado de alimentos autorizado a lançar mão da providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384.º, do CPC.
III. Não sendo acessoriamente pedidos alimentos definitivos em acção de divórcio, e pretendendo o cônjuge carenciado obter alimentos provisórios do outro na pendência da dita acção, terá necessariamente de se socorrer da especialíssima providência prevista no n.º 7, do art. 931.º, do CPC (isto é, requerer a sua fixação na própria acção de divórcio).
IV. Na inversão do contencioso, pressupõe-se que se haja discutido na providência cautelar o mesmo direito que seria discutido na futura acção definitiva (cuja propositura aquele, precisamente, dispensa), por ali se ter adquirido a convicção segura acerca da existência do «direito acautelado» (art. 369.º, n.º 1, do CPC).
V. O caso julgado traduz-se na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu (art. 628.º, do CPC); e, ocorrendo casos julgados contraditórios, valerá a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tenha transitado em primeiro lugar, e ainda que ambas tenham sido proferidas dentro do mesmo processo (art. 625.º, do CPC).
VII. A proibição de decisões surpresa (manifestação especial do princípio do contraditório, e pressuposta no direito constitucional a um processo equitativo), tem primordial aplicação face às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, impondo que, antes de as decidir, o juiz as convide a pronunciarem-se sobre elas (art. 3.º, n.º 3, do CPC, e art 20.º, n.º 4, da CRP).
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"4.1. Fixação de alimentos provisórios na pendência de divórcio
4.1.1.1. Providência cautelar de alimentos provisórios (art. 384.º, do CPC)
4.1.1.1.1. Definição
Lê-se no art. 384.º, do CPC, que o «titular de direito a alimentos pode requerer a fixação da quantia mensal que deva receber, a título de alimentos provisórios, enquanto não houver pagamento da primeira prestação definitiva».
Logo, pressupõe-se que, noutra sede, se discutirão os alimentos definitivos (cuja atribuição e concreta medida justificará a posterior «primeira prestação definitiva»).
Compreende-se, por isso, que se afirme que, sendo «uma providência tipicamente antecipatória, a fixação de alimentos provisórios está, em regra, na dependência direta de uma ação em que, a título principal ou acessório, se pretende o reconhecimento do direito a uma prestação alimentícia e a condenação do devedor no seu pagamento (...). O pedido corresponderá a uma quantia certa, de periodicidade mensal, representando a antecipação do que provavelmente será reconhecido na ação principal, podendo envolver também a inversão do contencioso (...)» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 458 (...)).
4.1.1.1.2. Instrumentalidade versus Inversão do contencioso
Com efeito, lê-se no art. 364.º, n.º 1, do CPC, que, excepto «se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva».
O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à acção principal) significa que este «é um instrumento ao serviço da acção judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respectiva decisão. Daqui decorre que a acção cautelar não constitui um fim em si mesma. Constitui apenas um meio, um instrumento, que permite alcançar a utilidade da decisão, objecto de outro processo, a que se encontra acoplada» (Rita Lynce de Faria, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003, págs. 34 e 35 (...) (...).
Compreende-se, por isso, que se afirme que as providências cautelares não constituem meio adequado para se criarem e definirem direitos; visam tão só acautelar e proteger os que já existem (Ac. do STJ, de 21.04.1953, RLJ, n.º 86, pág. 111). A não ser assim, a providência substituir-se-ia à acção adequada para obter tal efeito (Ac. do STJ, de 14.06.1957, BMJ, n.º 68, pág. 542).
Precisando a dita instrumentalidade (perante a acção principal), ocorre a mesma: quer quanto ao objecto, na medida em que o juiz não pode «alocar ao requerente uma vantagem excedente dos limites do que, a título principal, lhe poderia ser acordado»; quer quanto à sua utilidade, porquanto «não se pode retirar, por esvaziamento, utilidade à decisão final ou atacar esta, ou seja, a medida cautelar não pode antecipar a medida final», pelo que «o tribunal deve decretar a medida sem pré-julgar o fundo da questão» (Rui Pinto, A questão de mérito na tutela cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 235 e 236).
Assim, constitui jurisprudência reiterada que uma providência cautelar nunca pode substituir o efeito jurídico que dimanará da acção principal: terá sempre efeitos provisórios cuja subsistência exige a confirmação daquilo que sumariamente se apure relativamente aos requisitos específicos das providências cautelares. De outro modo, estaria descoberto o sistema de, por esta via, dar imediata e directa realização ao direito substancial e alcançar-se a satisfação desse direito que só através da respectiva acção principal se deve concretizar (Neste sentido, Ac. da RL, de 26.06.2008, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 5235/2008, Ac. da RL, de 01.10.2009, Ferreira de Almeida, Processo n.º 83/09, ou Ac. da RL, de 02.02.2010, Maria Rosário Barbosa, Processo n.º 1214/09.). O efeito útil que o autor (requerente do procedimento) pretende prosseguir não deverá revelar-se autonomamente cumprido por via do procedimento cautelar porque, assim sendo, este desenvolveria uma função substitutiva e não de garantia do processo principal (Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra Editora, 2009, pág. 135 (...)).
Lê-se, porém, no art. 369.º, n.º 1, do CPC (numa intencional mitigação desta exigência) que, mediante «requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio».
Logo, pressupõe-se na inversão do contencioso que se haja discutido na providência cautelar o mesmo direito que seria discutido na futura acção definitiva (cuja propositura aquele, precisamente, dispensa), por ali se ter adquirido a convicção segura acerca da existência do «direito acautelado» (o mesmo direito, ali discutido e por isso aqui com dispensada discussão).
Precisa-se, porém, que, através «deste normativo, em vez de se permitir a convolação ex officio da tutela cautelar numa tutela definitiva, possibilita a lei que, no procedimento cautelar, que tem natureza instrumental e provisória, o requerente da providência, verificadas certas condições, seja dispensado do ónus de propositura da acção principal, destinada a confirmar a tutela cautelar, atribuindo-se ao requerido o ónus de instaurar uma acção de impugnação, com a finalidade de obstar à consolidação da providência decretada» (Ac. da RL, de 20.11.2014, Ondina do Carmo Alves, Processo n.º 1972/13.0TVLSB.L1-2 (...).
Precisa-se, ainda, no art. 376.º, n.º 4, do CPC, que o «regime da inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permite realizar a composição definitiva do litígio».
4.1.1.1.3. Direito a alimentos de cônjuge e ex-cônjuge
Lê-se no art. 2009.º, n.º 1, al. a), do CC que estão «vinculados à prestação de alimentos» o «cônjuge ou o ex-cônjuge»; e precisa-se, no art. 2015.º, do CC, que, na «vigência da sociedade conjugal, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do art. 1675.º» do mesmo diploma (lendo-se no seu n.º 1 que o «dever de assistência», que nos termos do art. 1672.º do CC recai sobre os cônjuges, «compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encaros a vida familiar»).
Mais se lê, no art. 2016.º, n.º 2, do CC que qualquer «dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio».
Logo, quer o cônjuge (na pendência do casamento), quer o ex-cônjuge, após a sua dissolução) tem o direito de exigir do cônjuge ou do ex-cônjuge alimentos, uma vez verificados os pressupostos legais que a lei impõe para o efeito, nomeadamente a necessidade de quem os requer e as possibilidades de quem os haja de prestar (conforme art. 2004.º, do CC).
Por fim, e adjectivando este regime substantivo, lê-se no art. 555.º, n.º 2, do CPC que, nos «processo de divórcio ou de separação sem consentimento do outro cônjuge é admissível a dedução de pedido tendente à fixação do direito a alimentos».
Logo, os alimentos definitivos podem ser pedidos por um cônjuge contra outro, ou na própria acção de divórcio (como pedido acessório, do principal de dissolução do casamento), ou em acção declarativa autónoma, sob a forma de processo comum, nos termos gerais.
Em qualquer um destes casos, e uma vez que se verifica o nexo de instrumentalidade ou dependência exigido por lei, estará o cônjuge carenciado de alimentos autorizado a lançar mão da providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384.º, do CPC (No mesmo sentido, Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf, onde se lê que, como «dependência da ação principal em que se peça a prestação de alimentos, pode o interessado requerer a fixação da quantia mensal que deva receber a esse título, enquanto não for paga a primeira prestação definitiva – artigo 384.º do CPC»; e este mecanismo «pode ser usado, quer na ação autónoma de alimentos, quer na ação de divórcio onde tenha sido formulado o pedido de alimentos definitivo, quer previamente a qualquer uma destas duas acções». Enfatiza-se, porém, que, dado «tratar-se de procedimento cautelar a providência depende da ação principal de alimentos, ou da ação de divórcio em que se cumule esse pedido»).
4.1.1.2. Incidente de alimentos provisórios (art. 931.º, n.º 7, do CPC)
Lê-se no art. 931.º, do CPC, pertinente à acção especial de divórcio e separação sem consentimento do outro cônjuge, no seu n.º 7, que em «qualquer altura do processo o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos (…); para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considere necessárias».
Está-se perante uma providência especial, que assume uma natureza híbrida, «comungando de características próprias, quer do procedimento cautelar, quer dos incidentes da instância. A conexão com as regras dos incidentes decorre da agilização e do carácter sumário que o preceito incute, designadamente na sua parte final, devendo o juiz cercear as diligências probatórias que não se coadunem com essa natureza sumária. Comungando das características próprias do procedimento cautelar de alimentos provisórios, pode ocorrer uma situação de litispendência entre a decisão provisória e o procedimento tipificado no art. 384.º» do CPC (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2020, Reimpressão, págs. 375 e 376) (No mesmo sentido, Ac. da RP, de 18.02.2019, Fernanda Almeida, Processo n.º 2914/17.0T8MTS.P1, onde se lê que, na «ação de divórcio pode suceder, a requerimento da parte interessada ou por iniciativa do juiz que, nesse caso, terá que justificar qual a razão da conveniência dessa solução, seja enxertado um incidente em tudo semelhante ao procedimento cautelar de atribuição de alimentos provisórios»).
Contudo, e ao contrário do que sucede no procedimento cautelar de alimentos provisórios, previsto no art. 384.º, do CPC, os alimentos provisórios que aqui sejam fixados vigorarão apenas na pendência da acção de divórcio (se e enquanto ela perdurar) (Neste sentido, Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf, onde se lê que, no caso do art. 931.º, n.º 7, do CPC; «os alimentos fixados apenas se mantêm durante a pendência do processo de divórcio. Se pretender para além daquela data, deverá o requerente lançar mão da providência cautelar de alimentos do artigo 384.º do CPC». Na jurisprudência, Ac. da RE, de 12.10.2017, Manuel Bargado, Processo n.º 2521/16.4T8PTM.E1, onde se lê que o «art. 931º, nº 7, do CPC consagra tão só uma providência cautelar, de carácter especialíssimo, como preliminar ou incidente enxertado na própria ação de divórcio, com a finalidade de garantir a satisfação das necessidades essenciais de sustento, habitação e vestuário do cônjuge carecido»; e, uma «vez fixado o regime provisório de alimentos, mantém-se o decidido até ser definitivamente julgada a ação de divórcio, sendo certo que transitada em julgado essa decisão e seja qual for o seu desfecho - procedência ou improcedência – cessam os alimentos provisoriamente fixados ao cônjuge carecido»).
4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.1.2.1. Alimentos provisórios - Erro na forma de processo
Concretizando, verifica-se que, encontrando-se pendente entre a Requerente (S. M.) e o Requerido (V. J.) uma acção especial de divórcio sem consentimento do cônjuge demandado (no caso, o Requerido), a Requerente na mesma não pediu, acessoriamente ao pedido principal (de dissolução do casamento), a fixação de alimentos definitivos.
Ora, não o tendo feito, e face à necessária instrumentalidade ou dependência de qualquer procedimento cautelar (face a prévia ou posterior acção), carecendo de alimentos provisórios na pendência da dita acção de divórcio, deixou de os poder pedir na providência cautelar de alimentos provisórios prevista no art. 384.º, do CPC (ao contrário do que sucederia, se tivesse chegado a formular aquele pedido acessório, na dita acção de divórcio).
Assim, e pretendendo de facto obter alimentos provisórios do seu ainda cônjuge, na pendência da acção de divórcio, teria necessariamente de se socorrer da especialíssima providência prevista no n.º 7, do art. 931.º, do CPC, isto é, requerer a sua fixação na própria acção de divórcio.
Não o tendo feito, e socorrendo-se indevidamente para esse fim da providência cautelar de alimentos provisórios prevista no art. 384.º, do CPC, ocorre um erro na forma de processo; e, sendo o mesmo insuprível (por não se poder, nesta sede, aproveitar o processado para aquela outra), determina a absolvição do Requerido da instância (conforme arts. 193.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC).
Falece, assim, o primeiro fundamento do recurso interposto pela Requerente (a inexistência de qualquer erro na forma de processo usada, para a pretendida fixação de alimentos provisórios, a obter do seu ainda cônjuge, na pendência de acção especial de divórcio sem consentimento).
4.1.2.2. Alimentos definitivos - Manifesta improcedência
Concretizando novamente, verifica-se que, pretendendo ainda a Requerente (S. M.) que se viessem a fixar alimentos definitivos, então a cargo do seu ex-cônjuge, quis fazê-lo por meio de futura inversão do contencioso, nesta providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384.º, do CPC.
Contudo, e tal como já referido, não só esta concreta providência não pode prosseguir (permitindo assim uma - eventual e futura - inversão do contencioso), como o direito que nela se discute é de alimentos provisórios a obter de cônjuge, e não o de alimentos definitivos a obter de ex-cônjuge.
Dir-se-á ainda que, pretendendo aproveitar-se a mesma providência para este outro efeito (de alimentos provisórios, antecipatórios de alimentos definitivos a obter de ex-cônjuge), como prévia de uma futura acção comum de alimentos a ex-cônjuge (cuja posterior propositura viria a ser eventualmente dispensada, precisamente pela impetrada inversão do contencioso), manifestamente falece um dos seus exigíveis pressupostos, isto é, a condição de ex-cônjuges da demandante e do demandado.
Logo, formulando a Requerente (S. M.) esse pedido (de alimentos provisórios, a obter de ex-cônjuge), quando ainda se encontra casada com o Requerido (V. J.), ocorre a respectiva manifesta improcedência; e a mesma determina a absolvição do Requerido do dito pedido.
Falece, assim, o segundo fundamento do recurso interposto pela Requerente (a inexistência de qualquer manifesta improcedência do pedido de fixação de alimentos provisórios, por dependência de alimentos definitivos, a obter do seu ex-cônjuge)."
[MTS]