"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/03/2022

Jurisprudência 2021 (146)


Processo executivo;
intervenção principal; admissibilidade


1. O sumário de RG 15/6/2021 (283/10.8TBVLN-E.G1) é o seguinte:

I- São pressupostos de admissibilidade da demanda comum que haja um estado de comunidade jurídica a respeito do objecto litigioso, ou que os litisconsortes sejam titulares de um direito ou obrigação pela mesma causa de facto e jurídica, ou que as pretensões dos litisconsortes sejam da espécie e se baseiem em causas de facto e de direito equivalentes.

II- Sendo certo que os incidentes de intervenção de terceiros estão vocacionados e estruturados em função da acção declarativa, não existe qualquer justificação para que se conclua, em termos gerais e absolutos, pela inadmissibilidade legal desses incidentes no âmbito da acção executiva, ou seja, e dito de outro modo, não se descortina fundamento para que um terceiro não possa ser chamado no decurso da execução, sabido que a admissibilidade, em geral, da intervenção principal provocada é aceite quanto a pessoas com legitimidade para a acção executiva.

III- Destarte, e por decorrência, a admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro no âmbito da acção executiva e respectiva oposição tem que ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessas circunstâncias, estão ou não verificados os respectivos pressupostos legais, se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante e se a intervenção implica ou não com a estrutura e a finalidade da acção executiva.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é consabido, a intervenção provocada consubstancia-se, em regra, no chamamento ao processo, por qualquer das partes, dos terceiros interessados na intervenção, seja como seus associados, seja como associados da parte contrária.

No que concerne à modificação das partes no processo, dita modificação subjectiva, o Código prevê as seguintes possibilidades: chamamento do terceiro que falta para assegurar a legitimidade de alguma das partes [artigo 261.º]; a substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio [alínea a do artigo 262.º] e os incidentes da intervenção de terceiros [alínea b) do artigo 262.º].

Relativamente à intervenção de terceiros, que é a situação que está em causa nos autos, a lei faz uma distinção entre intervenção principal e acessória.

Na intervenção principal, o terceiro é chamado a ocupar na lide a posição de parte principal, ou seja, a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio (artigo 312.º), podendo apresentar articulados próprios (artigo 314.º) e sendo a final condenado ou absolvido na sequência da apreciação da relação jurídica de que é titular efectuada na sentença, a qual forma quanto a ele caso julgado, resolvendo em definitivo o litígio em cuja discussão (artigo 320.º).

Na intervenção acessória o terceiro é chamado a assumir na lide uma posição com estatuto de assistente (artigo 323.º, n.º 1) e por isso a sua intervenção circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento (artigo 321.º, n.º 2) e a sentença final não aprecia a acção de regresso mas constitui caso julgado às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, com as limitações do artigo 332.º (artigo 323.º, n.º 3). [...]

Incontroverso resulta, assim, que:

- Por um lado, a violação do litisconsórcio necessário gera a ilegitimidade das partes desacompanhadas de outrem que deveria intervir na relação processual, pese embora daí não resulte que elas não tenham interesse na lide, mas sim que o interesse não pode ser declarado judicialmente sem a presença de todos os titulares.

- Por outro, o litisconsórcio é voluntário – e é-o, como regra – quando a lei material deixa na disponibilidade das partes a sua constituição, ou seja, e não obstante, a relação material controvertida respeitar a mais do que um interessado, não se exige a intervenção no pleito de todos os titulares da relação jurídica. (Vide José Lebre de Freitas – C.P.C. anotado, V. 1º, Ed. Coimbra, pág. 56.)

Assente o exposto em tese geral e reportando agora ao processo executivo, temos que, como se refere na decisão recorrida, “nos termos do disposto no artigo 745º, nº 2, do mesmo Código, instaurada a execução apenas contra o devedor subsidiário e invocando este o benefício da excussão prévia, pode o exequente requerer, no próprio processo, execução contra o devedor principal, que será citado para integral pagamento, dispondo ainda o artigo 54º, nº 2, ainda do mesmo diploma, que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser demandado o devedor”.

Em razão destes elementos normativos, e como igualmente aí se refere, ”se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra o terceiro (n.º 2 do art. 54.º), muito embora as normas processuais referentes aos incidentes de intervenção de terceiros estejam estruturadas em função da acção declarativa, não se descortina fundamento para que ele não possa ser chamado no decurso da execução, sabido que a admissibilidade, em geral, da intervenção principal provocada é aceite quanto a pessoas com legitimidade para a acção executiva. (…)

De facto, o fim perseguido pela execução não aparenta constituir obstáculo à requerida intervenção, até porque o art. 551.°, n.° 1 manda aplicar subsidiariamente ao processo de execução, com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a acção executiva, e o n.º 2 do artigo 316.º permite, nos casos de litisconsórcio voluntário, que o autor provoque a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do art. 39.º.

No âmbito do litisconsórcio voluntário admite-o em quatro situações. São elas, o chamamento do devedor nos termos já enunciados no art. 54.º, nº 3, a demanda do devedor subsidiário, se instaurada a execução apenas contra o devedor principal os bens deste se revelarem insuficientes (art. 745.º, nº 3), a demanda do devedor principal, se instaurada a execução apenas contra o devedor subsidiário este invocar o beneficio da excussão prévia (art. 745.º, nº 2), e o chamamento à demanda do cônjuge do executado não obrigado no título, para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida (741.º, nºs 1 a 5).

Em suma, como se vê, não se descortina na dogmática processual algum princípio geral e absoluto que vede o incidente de intervenção principal no âmbito da acção executiva. [...]

Esclarecida em tese, admissibilidade do incidente em causa no processo executivo, passemos então à análise e enquadramento da concreta situação.

Ora, como fundamento da sua pretensão recursória alegam, em síntese, os Recorrentes que não tendo eles legitimidade para figurar como executados na presente execução, por não serem proprietários dos bens executados, inexiste uma situação de litisconsórcio necessário ou voluntário entre os executados e a chamada, do que, em seu entender, decorre não ser admissível o chamamento e intervenção da última, à luz do que dispõe o artigo 316º nº 2 do CPC.

Com efeito, a circunstância de a chamada ter passado a ser, entretanto, a proprietária do bem executado, não chega para conferir alguma utilidade à sua intervenção, porquanto, quando se concretizar tal chamamento, já o bem executado e que lhe pertence, foi há muito tempo objecto de venda judicial, a qual, realizada à revelia do proprietário da coisa vendida, será ilegal, à luz do disposto no artigo 817º do CC, segundo a qual apenas em execução movida contra o devedor, poderá o seu património ser executado.

Salvo o muito e devido respeito não se nos afigura que isto assim seja.

Na verdade, como com pertinência e acerto se aduz na decisão recorrida, a admissibilidade do incidente de intervenção provocada, colocada em crise por via do presente recurso, “deverá estar condicionada a uma análise da sua necessidade em face das circunstâncias de cada caso concreto, se, porventura, se mostram verificados os necessários pressupostos legais, e se tal intervenção tem a virtualidade de satisfazer um interesse legítimo e relevante que se coadune com os fins e limites da acção executiva (cfr. art.10.º, n.ºs 4 e 5)”

Ora na presente situação, se nada obstava a que pudesse ter sido demandada ab initio a devedora Y – Sociedade de Construção Promoção Imobiliária Lda -, também nada obsta a que o Exequente, na pendência dos autos, possa provocar a intervenção da mesma para, e contra ela dirigir o seu pedido, na dupla de qualidade de devedora e actual proprietária do imóvel penhorado, uma vez que o princípio geral consagrado no art.º 817.º do Código Civil (C.C.) é o de que o credor só pode executar o património do devedor para se fazer pagar do seu crédito, sendo excepção, a da execução de bens de terceiro desde que estes estejam vinculados à garantia do crédito ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este tenha precedentemente impugnado, nos termos permitidos pelo art.º 818.º do C.C..

Como e correctamente refere a Recorrida, os referidos princípios e excepção foram adjectivados no nº 1, do art.º 735.º do C.P.C., nos termos do qual podem ser penhorados (“estão sujeitos à execução”) todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, de acordo com a lei substantiva, respondem pela dívida exequenda (n.º 1), estatuindo, por sua vez, o n.º 2, desse dispositivo que podem ainda ser penhorados bens de terceiro nos casos especialmente previstos na lei, desde que a execução tenha sido movida contra ele.

E é assim que, o art.º 54.º do C.P.C., num desvio à regra geral da determinação da legitimidade pela figuração no título executivo, consagrada no art.º 53.º, reconhece a legitimidade passiva na execução ao titular do direito de propriedade dos bens onerados com a garantia real, mesmo que não seja o devedor, nem, sequer, sujeito da relação obrigacional, podendo, assim, ser demandado:

- Apenas o devedor, prescindindo da garantia;
 
- Apenas o terceiro, fazendo valer a garantia;
 
- Ou directamente o terceiro para também fazer valer a garantia, e demandar o devedor, no início ou depois de reconhecida a insuficiência dos bens onerados.

Como e bem refere igualmente a Recorrida, o actual artigo 54, do C.P.C., reproduz, sem grandes alterações, o art.º 56.º do anterior Código, na redacção que lhes deu a reforma de 1995/1996 (Dec.-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro), sendo que, justificando o legislador a opção por esta solução referiu no respectivo preâmbulo do diploma o seguinte:

(…) “No que concerne ao complexo e controverso problema da definição da legitimidade das partes na acção executiva, quando o objecto desta seja uma dívida provida de garantia real, procurou tomar-se posição clara sobre a questão da legitimação do terceiro, possuidor ou proprietário dos bens onerados com tal garantia. Assim, concede-se tanto a um como a outro legitimidade passiva para a execução, quando o exequente pretenda efectivar tal garantia, incidente sobre bens pertencentes ou na posse de terceiro, sem, todavia, se impor o litisconsórcio necessário, quer entre estes – proprietário e possuidor dos bens – quer com o devedor.

Considera-se, na verdade, que cumpre ao exequente avaliar, em termos concretos e pragmáticos, quais as vantagens e inconvenientes que emergem de efectivar o seu direito no confronto de todos aqueles interessados passivos, ou de apenas algum ou alguns deles, bem sabendo que se poderá confrontar com a possível dedução de embargos de terceiro por parte do possuidor que não haja curado de demandar.” (In Preâmbulo do Dec.-Lei n.º 329-A/95)

Isto posto, é também nosso entendimento o de que "a admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro no âmbito da acção executiva e respectiva oposição tem que ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessas circunstâncias, estão ou não verificados os respectivos pressupostos legais, se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante e se a intervenção implica ou não com a estrutura e a finalidade da acção executiva” (Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 19/11/2009, proferido no processo nº 181-C/1995.P1, in www.dgsi.pt).).

Na presente situação, tendo a acção sido movida contra os Apelantes na estrita qualidade de adquirentes que eram do bem imóvel dado em garantia do crédito exequendo, e tendo estes, na pendência da execução deixado de ser proprietários do imóvel que reverteu para a esfera patrimonial da devedora, temos de concluir que se não vislumbra qualquer impedimento a que o Exequente possa requerer, neste mesmo processo, o prosseguimento da execução quanto a esta que - naturalmente não deixará de ser citada para os termos da execução – para completa satisfação do crédito exequendo.

Assim sendo, e como se refere na decisão recorrida, “a presente execução foi proposta, de início, não contra o devedor, mas ao abrigo do renumerado artigo 56º, nº 2, do revogado Código de Processo Civil (hoje, artigo 54º, nº 2, do NCPC) contra os proprietários do bem onerado”, e “tendo ocorrido uma vicissitude consubstanciada em sentença, transitada em julgado, que retirando os efeitos da resolução do contrato de compra e venda, implicou a restituição do que havia sido prestado, o bem onerado encontra-se, actualmente, sob a titularidade da devedora originária.

Destarte, e como aí igualmente se conclui, “se esta podia ter sido demandada logo de início, e de molde a evitar-se a multiplicação de acções executivas, o princípio da economia processual aconselha a sua intervenção nos autos a título principal, na posição de executada”.

Pelo exposto, julga-se improcedente a presenta apelação, e, em consequência, mantem-se, na íntegra a decisão recorrida."

[MTS]