"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2022

Jurisprudência 2022 (34)


Citação; efeitos;
interpelação para cumprimento


1. O sumário de STJ 27/1/2022 (1522/12.6TBMTJ-B.L1.S1) é o seguinte:

I – A citação do devedor na acção executiva deve considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade, em sentido forte, por aplicação da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 610.º CPCiv, solução essa conforme aos fins da acção executiva e a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 714.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 874.º).

II – O mesmo era de aplicar na vigência da redacção de 61 do art.º 804.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv.

III - No mútuo liquidável em prestações, a lei admite o reembolso antecipado do capital se o devedor não pagar as prestações ou quotas de amortização, pelo que a mesma lei não faz depender o reembolso antecipado da resolução do contrato (art.º 781.º CCiv) – passa a existir, tão só, a imediata exigibilidade de todas as prestações.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I

Portanto, e em função do adrede decidido, a questão de direito a apreciar situa-se em saber se a obrigação exequenda se tornou exigível em virtude da citação para a execução do Embargante, na qualidade de mutuário, para efeitos do art.º 781.º CCiv e nos termos conjugados dos art.ºs 805.º n.º 1 CCiv e 610.º n.º 2 al. b) CPCiv, como se decidiu no acórdão recorrido, ou se a falta de interpelação do devedor, antes da execução, afecta a validade ou a suficiência do título executivo.

Outro aspecto relevante, para citar o acórdão da Formação, será o de saber em que termos é que deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação de prestações vincendas, para que a citação do executado possa equivaler a uma interpelação, para efeitos da norma do art.º 781.º CCiv.

II

Sobre o primeiro aspecto, cita-se o argumentário jusconclusivo do acórdão recorrido:

“Importa ter presente que a acção executiva de que estes autos constituem a oposição, deu entrada em 2012, logo as normas processuais aplicáveis no que concerne aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória é aplicável o CPC/95, por força do artº 6º nº 3 da Lei nº 41/2013, que aprovou o actual CPC, cuja entrada em vigor ocorreu a 1/09/2013 (cf. Artº 8º da Lei nº 41/2013).”

“Donde, a questão suscitada deverá ser apreciada à luz do CPC/95, nomeadamente a forma de processo e tramites processuais, principalmente a circunstância de a citação ter sido antecipada em relação à penhora e não nos termos constantes da lei adjetiva actual, como defende o apelante.”

“Importa ter presente o constante da decisão recorrida: «(…) no caso, não foi convencionado regime diferente do previsto no art.º 781.º do Código Civil, nada tendo sido acrescentado ao sentido de que sendo a dívida liquidada em prestações a falta do pagamento de uma delas importa o vencimento de todas, ou seja, o vencimento dos empréstimos. Ora, a mera exigibilidade imediata não pode confundir-se com vencimento automático de todas as prestações, o qual só ocorrerá por força da interpelação do devedor pelo credor. Com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Com efeito, tem-se entendido, maioritariamente, que, no caso de obrigação pecuniária pagável em prestações sucessivas, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma delas, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, constitui um caso de exigibilidade antecipada, mero benefício que a lei concede ao credor e que há-de ser exercido mediante interpelação do devedor, ficando aquele com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as restantes prestações, cujo prazo ainda se não tenha vencido. Assim, se o mutuante/exequente queria ver imediatamente vencidas todas as prestações subsequentes às não realizadas, devia ter interpelado o devedor (no caso, o embargante) para proceder ao respectivo pagamento. Só com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Em suma, para o vencimento imediato de todas as prestações, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, o credor tem de interpelar o devedor.».

“Ao contrário do defendido pelo apelante o direito executivo que a exequente pretende fazer valer na acção reporta-se ao vencimento antecipado das obrigações assumidas, sem que resulte invocada a resolução. Com efeito, o vencimento e a exigibilidade de todas as prestações acordadas no contexto dos contratos de mútuo dados à execução resultaram da verificação do que ficou contratualizado na cláusula 9, alínea a) dos respetivos documentos complementares e, bem assim, do disposto no artigo 781.º do CC, e não da resolução contratual que não constitui agasalho do direito invocado pela exequente.”

“O busílis da questão reside nesta problemática: saber se a citação vale como interpelação.”

“A resposta é, em nosso entender, neste caso positiva, pois toda a construção jurídica efectuada no âmbito do recurso pelo apelante assenta nas normas do CPC actual e não das que advém da aplicação do CPC, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12.”

“Sob aplicação da lei adjetiva vigente à data da interposição da acção, a citação do Recorrente ocorreu antes do início das diligências executivas, pois o agente de execução, com data de 13-07-2012, informou e certificou nos autos que foi concretizada a citação do executado, sendo que a penhora do imóvel hipotecado apenas ocorreu em 02.08.2018.”

“Ora, é certo que o então artigo 804.º, n.º 3 do CPC/95, até 2003, acautelava expressamente a possibilidade de a interpelação ser substituída pela citação, operando-se então o vencimento da obrigação com a citação no processo executivo. Possibilidade que está de igual modo hoje prevista no artigo 610.º, n.º 2, alínea b) do CPC.”

“A reforma de 2003 suprimiu o nº 3 do artº 804º, que dispunha que se considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”. Tal ocorreu com a redação introduzida no artigo 804.º pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.3, situação que se manteve inalterada na redação decorrente do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20.11, e assim permaneceu até ao atual CPC de 2013.”

“Comentando essa eliminação, Carlos Lopes do Rego sublinhou que «no essencial, tal regime se mantém, por força do estipulado no artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.» (Requisitos da Obrigação Exequenda, publicado na Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, 2003, Almedina, pp. 70-71).”

“Realçou, porém, a estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 38/2003: «não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.» (obra e pp. citadas).”

Tem-se por adequada a exposição supra, à qual se adere, sem prejuízo de outros argumentos que juntamos infra.

III

É certo que, tendo em conta a redacção do art.º 802.º CPCiv61, que permaneceu vigente até à reforma de 2013, não poderia promover-se uma execução enquanto a obrigação não fosse exigível – como afirma o acórdão recorrido, e é inteiramente de subscrever, é tão inexigível a obrigação que ainda não está vencida, como aquela que depende, para a sua exigibilidade (em sentido forte) de um comportamento adicional, interpelativo, do credor.

E não menos certo é que a reforma de 2003, que suprimiu o n.º 3 do art.º 804.º (o qual considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”), veio aproximadamente repor a redacção dos n.ºs 1 e 2 do art.º 804.º CPCiv, tal como existente antes da reforma de 95/96.

Ora, mesmo na vigência da redacção de 61 dada ao art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, a quase generalidade da doutrina sempre entendeu que valia como interpelação a citação para a acção executiva, como interpelação judicial que é, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv – assim, Castro Mendes, Acção Executiva, Lições de 69/70, pg.9, e Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1986, pgs. 202 e 206ss. – na jurisprudência, p.e., o Ac.R.P. 26/6/90 Col.III/227 (Matos Fernandes), optando pelo que considerou “a opção menos conceptualista e literal, em salvaguarda do desejável princípio da economia processual”.

Mesmo José Alberto dos Reis, no seu Processo de Execução, 1.º. 1985, pg.467, defendendo embora que, requerida pelo credor, antes da interpelação do devedor, a execução para pagamento de uma dívida sem prazo certo, se infringia o disposto no art.º 802.º CPCiv (promovia-se a execução sem que a obrigação se tivesse tornado exigível – e, portanto, cabia ao juiz indeferir liminarmente a petição), também entendia que não existia fundamento decisivo para que a citação, posto que tivesse sido efectuada, não produzisse, na acção executiva, o efeito que as normas dos art.ºs 481.º al. c) (na redacção de 39 – 485.º al. c), na redacção de 61) e 662.º n.º2 al. b) CPCiv produziam na acção declarativa.

E acrescentava – “Não há fundamento decisivo para que a citação não produza, na acção executiva, o efeito que as alíneas citadas lhe atribuem na acção declarativa. O credor devia interpelar o devedor antes de entrar na via da execução; mas desde que o executado é citado para pagar dentro de dez ou cinco dias, não se vê razão para que a citação não haja de substituir a interpelação e equivaler a ela, uma vez que recaia sobre o exequente a responsabilidade pelas custas e honorários do advogado do executado”.

Elucidativamente, escrevia Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, pg.11, ao pronunciar-se sobre se as regras do processo declarativo ofendiam o preceito categórico do art.º 802.º CPCiv: “Deve dizer-se que, em princípio, a solução negativa é a que melhor se ajusta ao texto do art.º 802.º: se a execução só pode promover-se sendo exigível a obrigação, o que só sucede quando esta está vencida, nas obrigações puras, em que o devedor só fica constituído em mora depois de interpelado, a execução só pode promover-se após aquela interpelação.”

“Mas talvez não seja a de seguir.”

“Efectivamente, parece demasiado formal.”

“Não se vê razão para não se considerar, neste caso, a citação como a interpelação judicial a que se refere o n.º 1 do art.º 805.º do Código Civil.”

Por outro lado, Artur Anselmo de Castro (A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, pg.53), criticando a posição de José Alberto dos Reis quanto ao inicial dever de o juiz indeferir in limine a petição, entendia que a citação do devedor deveria considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade na acção executiva, por não haver razão que justifique a não aplicação em processo executivo da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 662.º CPCiv, acrescentando: “aliás, esta solução, já de si mais conforme com os fins da acção executiva, quando se sabe que o devedor não quer pagar, é a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 803.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 939.º)”. [..]

V

A posição que adoptámos, tal como exposto em III da presente fundamentação, é a que decorre da larga maioria das decisões disponíveis para consulta, dos tribunais superiores, salientando-se entre outras (mutatis mutandis, sobretudo na destrinça entre notificação do devedor e notificação necessária do fiador): [...]

Acresce que, no caso dos autos, nem sequer se pode discutir, por apoio na posição de Lopes do Rego (Requisitos da Obrigação Exequenda, Themis, n.º 7, 2003, pgs. 70-71), que, “pela estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.”

Na verdade, a citação do Embargante e Executado no processo foi efectuada em momento anterior e prévio à realização da penhora, pelo que outros considerandos nesta matéria resultariam em ostensivo obiter dictum.

Não deixe de se salientar, porém, que certas decisões têm aceitado o efeito de interpelação da citação efectuada após a penhora – nesse sentido, veja-se o Ac. S.T.J. 16/2/2020, pº 5995/03.0TVPRT-B.P1.S1 (desta mesma Secção do S.T.J., relatado pela Consª Catarina Serra).

VI

Quanto à questão de saber em que termos deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação das prestações vincendas, para que a citação possa equivaler a uma interpelação.

Pensamos que o Exequente se houve dentro dos limites da cláusula 9.ª, al.a), do contrato, onde se lê que a hipoteca poderá ser executada se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas.

Trata-se, manifestamente, de uma cláusula de estilo, que não afasta, e apenas reforça, o regime geral do art.º 781.º CCiv.

Nesse sentido, o teor do petitório executivo líquida o valor em dívida, por acordo com a citada cláusula do contrato e com a norma legal aplicável.

Não se trata, assim, como afirmámos, de exercitar o direito potestativo relativo à resolução do contrato, mas apenas interpelar quanto à perda de benefício do prazo, decorrente do contrato.

Nesse sentido, não se impunha a comprovação da interpelação prévia (art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv03 ou actual art.º 715.º n.ºs 1 e 2 CPCiv), ou mesmo o pedido de citação com especificações diversas daquelas que constam da liquidação efectuada, por aplicação da norma do art.º 781.º CCiv."

[MTS]



29/09/2022

Jurisprudência 2022 (33)


Superior interesse da criança;
recurso de revista; poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 27/1/2022 (19384/16.2T8LSB-A.L1.S1) é o seguinte:

I. O superior interesse da criança traduz-se num conceito jurídico indeterminado que visa assegurar a solução mais adequada para a criança no sentido de promover o seu desenvolvimento harmonioso físico, psíquico, intelectual e moral, especialmente em meio familiar, sendo, por isso, aferível em função das circunstâncias de cada caso.

II. Para a consecução desse objetivo é essencial o empenhamento partilhado de ambos os progenitores, o que requer a manutenção de relações de estreita convivência ou proximidade entre pais e filhos.

III. O artigo 1906.º, n.ºs 6 e 8, do CC elege o modelo de guarda conjunta e residência alternada do filho com os dois progenitores como meio privilegiado de proporcionar uma ampla convivência entre o filho e cada um dos progenitores, bem como a partilha das responsabilidades parentais. Só assim não será se, atentas, nomeadamente, as aptidões, as capacidades e a disponibilidade de cada progenitor, o superior interesse do filho o não aconselhar.

IV. O superior interesse do filho não é alheio a uma adequada inserção dele no meio familiar de cada um dos progenitores mediante aprendizagem dos novos modos de relacionamento e de respeito mútuo pelos direitos e legítimos interesses de cada pessoa que passe a integrar esses agregados familiares.

V. Não cabe ao tribunal de revista sindicar a ponderação da Relação sobre a conveniência e oportunidade de reatamento de um regime de residência alternada dantes estabelecido, mas apenas aferir da estrita legalidade com que, para tanto, foram observados o superior interesse da criança e os direitos e interesses legítimos dos progenitores.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Da questão prévia sobre a admissibilidade e efeito da revista

Quanto à questão prévia da admissibilidade da revista, não obstante estarmos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, em que não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, nos termos do art.º 988.º do CPC, o certo é que, no caso, a Recorrente invoca violação de lei, especialmente do disposto no artigo 1906.º, n.ºs 6 e 8, do CC (no respeitante ao alcance do “superior interesse da criança”), nos artigos 2.º, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, 111.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição e ainda dos artigos 3.º, 5.º, 8.º e 18.º da Convenção sobre os Direitos das Crianças.

Nessa sede de estrita legalidade, impõe-se tomar conhecimento do objeto da revista. [...]

III – Fundamentação

[...] 2. Do mérito do recurso

Estamos no âmbito de uma ação intentada pelo pai contra a mãe de CC, nascida a .../.../2009, que tem por objeto a alteração da respetiva regulação do exercício das responsabilidades parentais estabelecida mediante acordo homologado por sentença de 24/01/2017, conforme certidão de fls. 25-27/v.º

Nos termos desse regime e no que aqui releva, foi estabelecida a residência da menor junto de ambos os progenitores por semanas sucessivas alternadas com o exercício conjunto das responsabilidades parentais.

Todavia, em 16/07/2018, o pai da menor instaurou a presente ação sob a alegação de que ela se queixava de, quando se encontrava com a mãe, ser importunada pelo namorado/companheiro desta, nomeadamente com “beliscões, empurrões e pontapés”, e de o mesmo, por vezes, lhe bater.

No decurso do processo foi fixado um regime provisório que sofreu sucessivas alterações [...]

E, em sede de fundamentação fáctico-jurídica, ponderou a Relação o seguinte:

«Em concreto, está em questão saber se deve manter-se a residência alternada da CC com o pai e com a mãe ou se, ao invés, deve estabelecer-se a residência da CC com o pai e um regime de convívio com a mãe. Ou o contrário, porque não está vedada regulação não preconizada pelos pais.

A residência alternada foi o regime acordado pelos pais e sufragado pelo Tribunal em 24 de Janeiro de 2017. Tal regime foi fixado na vigência do artigo 1906.º, do Código Civil, na redacção anterior à actual, a decorrente da entrada em vigor da Lei 65/2020, de 4 de Novembro. Esta lei deu mais um passo no sentido de estabelecer a residência alternada como regime geral, dispensando o acordo dos pais nesse sentido, desde que o tribunal entendesse que o superior interesse da criança o exigia.

A residência alternada não provou ser desadequada à CC até aos acontecimentos que deram origem a este processo. Importa saber se o deixou de ser, o que passa por analisar os factos provados relacionados com a alteração de circunstâncias da menor que podem influir em tal desadequação superveniente.

Entre eles os seguintes [pontos de facto 36 a 41, 47, 48 54, 56 a 58] (…)

Em suma, o que resultou provado nos autos é que a CC experimenta dificuldade na interacção com o namorado da mãe, que se queixou a diversas pessoas da maneira como é por ele tratada e que também a relação com a mãe é difícil por a CC se sentir insegura com as oscilações de temperamento e com as “zangas” da mãe.

Mais resulta dos próprios autos que dura desde 4 de Dezembro de 2018 a alteração da residência da CC (deixando de alternar entre o pai e a mãe e ficando a residir com aquele) e o afastamento da CC do convívio com o namorado da mãe, mesmo nos períodos em que convive com esta e permanece na residência da mãe.

Resulta também que a CC rejeita o convívio com o namorado da mãe e o alargamento do convívio com esta pela insegurança que sente nessas interacções.

Desta factualidade decorre que não se apurou exatamente o que ocorreu no convívio com o namorado da mãe, mas apurou-se que a CC rejeita esse convívio e reage com temor ao reatar da relação.

Estas são circunstâncias da criança supervenientes ao acordo a atender na ponderação da manutenção da regulação anterior ou da sua alteração. E são circunstâncias que militam a favor da alteração, nomeadamente de modo a permitir à CC a adaptação à relação e a vivência dela com sentimentos de segurança e bem-estar essenciais ao seu desenvolvimento.

Outras circunstâncias existem, por isso que se provou igualmente o seguinte [factos 19 a 32, 63, 78 a 81, 86 a 89, 91 a 94] (…)

Desta factualidade (…) decorre que a CC tem uma relação afectiva forte com a mãe, que passam juntas momentos gratificantes para ambas, que a mãe se empenha efectivamente na educação e apoio à CC e que o faz de modo adequado e altruísta.

Salienta-se que prescindiu da vivência com o seu companheiro, nos termos “normais” e que constituíam o projecto de ambos, privilegiando o convívio com a filha e aceitando o afastamento do namorado durante os períodos de convívio entre ambas; teve em atenção os receios dela em relação ao seu namorado mesmo numa situação de enorme desgosto pela morte da mãe e nas próprias exéquias; que teve o cuidado de, após as cerimónias fúnebres, proporcionar à CC momentos de descontração; em suma que sabe colocar a filha em primeiro lugar e adequar a sua vida às necessidades dela.

Estes factores são de grande relevância sobretudo se considerarmos a pressão a que a mãe tem estado sujeita e que bem exprimiu nas suas declarações em audiência, aliás em consonância com o que a generalidade das pessoas experimentaria se colocada no seu lugar.

Factos que militam no sentido de que é imperioso estabelecer um regime que permita um convívio alargado com a mãe e que possibilite que esta tenha efectivamente um lugar na vida e acompanhamento da filha. (…)

Mais relacionados com o pai da CC, estes factos indicam-nos que foi confrontado com as queixas da criança, demorou a dar-lhes crédito, mas acabou por o fazer e agiu em conformidade com esse crédito solicitando medida provisória de alteração da regulação das responsabilidades parentais, tendo acompanhado a filha ao longo deste percurso com preocupação com a educação e protecção da CC.

Está também assente que neste momento o pai e a mãe não confiam um no outro.

Em conclusão:

- A CC tem um pai e uma mãe que têm todas as competências necessárias para exercerem as responsabilidades parentais em favor da filha;

- Os vínculos afectivos entre a CC e o pai e a CC e a mãe são fortes, investidos e gratificantes.

- A CC rejeita o convívio com o companheiro com quem a mãe coabita e sente insegurança com as mudanças de temperamento da mãe quando contrariada. [...]

Conclui-se, em consequência, que se verificam circunstâncias supervenientes que aconselham a ponderação da adequação do regime de residência alternada.»

Em resumo, a 1.ª instância não relevou as queixas de CC que estiveram na origem desta ação, considerando que não punham em causa o regime de residência alternada estabelecido em 24/01/2017 e interrompido, a título provisório, com a propositura da ação em 16/07/2018, e concluiu que aquele regime poderia ser retomado de imediato e nos mesmos termos.

Diferentemente, a Relação considerou verificado um relacionamento conturbado entre CC e o companheiro da mãe, que a levam a rejeitar o convívio com este, a par de algum ressentimento pelo temperamento impulsivo da mãe, concluindo que tais condições dificultavam a retoma imediata e sem mais do regime de residência alternada, mas que, apesar disso, se impunha providenciar pela retoma plena daquele regime, de forma gradual e calendarizada, mormente no sentido de fazer cessar a restrição ao convívio da menor com o companheiro da mãe, em conformidade com prévio parecer favorável por parte dos técnicos que acompanham a menor, a mãe e o companheiro desta. [...]

Nessa base, foram fixadas três etapas [...]:

Para tanto, foi determinado que este regime de transição fosse acompanhado pela Equipa Tutelar Cível de ...da Santa Casa de ..., sem prejuízo das alterações necessárias a estabelecer pela 1.ª instância no decurso desse acompanhamento, envolvendo os pais, os seus companheiros e a CC, mas ainda com a reserva de ulterior apreciação de recusa incidente sobre o regime agora estabelecido.

Em face disso, a Recorrente questiona a legalidade deste regime de transição e das suas condicionantes, sustentando que o mesmo viola o interesse superior da criança, mormente quanto a uma equilibrada inserção desta no seio das duas famílias dos progenitores, bem como os direitos e interesses legítimos da mãe, em especial no respeitante a uma concomitante convivência com o seu companheiro, à luz do disposto nos artigos 1906.º, n.ºs 6 e 8, do CC, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, da Constituição e ainda dos artigos 3.º, 5.º, 8.º e 18.º da Convenção Sobre os Direitos das Crianças.

E questiona também a sujeição daquelas medidas a meros pareceres técnicos favoráveis sem a necessária intermediação judicial, em violação do disposto nos artigos 3.º, 111.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição.

Vejamos.

Quanto à legalidade do regime de transição fixado no acórdão recorrido

O artigo 1906.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 65/2020, de 04-11, sob a epígrafe exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio (…), prescreve, no que aqui releva, o seguinte:

5 – O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.

6 – Quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente do mútuo acordo nesse sentido (…)

7 – (…)

8 – O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidade entre eles.

É assim que a lei consigna a prevalência do superior interesse do filho menor como critério decisório orientador na regulação do regime das responsabilidades parentais entre os progenitores separados.

O superior interesse da criança encontra-se também inscrito como vetor fundamental no artigo 7.º da Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU, de 20/11/1959, nos artigos 9.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque, a 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12-09, e no artigo 6.º, alínea a), da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança, adotada em Estrasburgo, a 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13-12-2013 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27-01.

Nessa conformidade, o superior interesse da criança traduz-se num conceito jurídico indeterminado que visa assegurar a solução mais adequada para a criança no sentido de promover o seu desenvolvimento harmonioso físico, psíquico, intelectual e moral, especialmente em meio familiar, sendo, por isso, aferível em função das circunstâncias de cada caso.

Para a consecução desse objetivo é essencial o empenhamento partilhado de ambos os progenitores, o que requer a manutenção de relações de estreita convivência ou proximidade entre pais e filhos.

Todavia, no caso de progenitores separados, nem sempre se mostra fácil estabelecer um modo de convivência concomitante do filho com ambos os pais, levando, não raras vezes, a que o filho tenha de residir com um deles, assegurando-se um regime de visitas ou de convívio com o outro.

É precisamente para esse tipo de situações que o artigo 1906.º, n.ºs 6 e 8, do CC elege o modelo de guarda conjunta e residência alternada do filho com os dois progenitores como meio privilegiado de proporcionar uma ampla convivência entre o filho e cada um dos progenitores, bem como a partilha das responsabilidades parentais por parte destes. Só assim não será se, atentas, nomeadamente, as aptidões, as capacidades e a disponibilidade de cada progenitor, o superior interesse do filho o não aconselhar.

Na ponderação entre o interesse superior do filho e os direitos e interesses legítimos dos progenitores, no acórdão do STJ, de 17/12/2019, proferido no processo n.º 1431/ 17.2T8MTS.P1.S1, citado pela Recorrente e disponível no site da dgsi, foi afirmado o seguinte:

“O interesse superior da criança define-se como o interesse que se sobrepõe a qualquer outro interesse legítimo, seja o dos pais, seja o dos adultos terceiros.

Mas o interesse superior da criança não é incompatível com a satisfação de interesses legítimos de qualquer dos progenitores desde que não sejam meros interesses egoísticos e a pensar exclusivamente no bem-estar do progenitor."

A progenitora, cumprindo os seus deveres parentais, como mãe, proporcionando a estabilidade à filha, não tem de prescindir dos seus direitos; pode e deve, depois da separação, reorganizar a sua vida pessoal e profissional.

De resto, o superior interesse do filho não é alheio a uma adequada inserção dele no meio familiar de cada um dos progenitores mediante aprendizagem dos novos modos de relacionamento e de respeito mútuo pelos direitos e legítimos interesses de cada pessoa que passe a integrar esses agregados familiares, só assim se proporcionando uma sã convivência entre todos.

Ora, no caso dos autos, os progenitores de CC, aquando da sua separação, acordaram no regime de guarda conjunta com residência semanal alternada e que teve início em 24/01/2017.

Porém, a Requerida constituiu outro agregado familiar, o que veio introduzir o relacionamento de CC com o companheiro da mãe e que deu azo às queixas desta, despoletando a presente ação com os contornos acima relatados.

Sucede que a perturbação revelada por CC com tal relacionamento, nos termos dados como provados, e o subsequente afastamento entre ela e o companheiro da mãe, entretanto determinado, no decurso do processo, a título de regime provisório, foram considerados pela Relação de molde a não permitirem optar sem mais e de imediato pela retoma do regime de residência alternada, muito embora reconheça que:

«A relação de cada um dos progenitores com a filha, as competências parentais de cada um e o modo como são exercidas, o vínculo afectivo da CC com o pai e com a mãe, a proximidade das residências e a complementaridade das intervenções, tudo aconselha a residência alternada como regime adequado para a CC.»

A tal propósito, no acórdão recorrido, foi ainda ponderado o seguinte:

«Neste contexto e no longuíssimo período de pendência dos autos, gerou-se ainda uma situação de dificuldade no convívio entre a mãe e a filha decorrente da pressão sentida pela mãe, das reacções da mesma que a criança sentiu como intempestivas e geradoras de insegurança, apesar de a relação mãe/filha ser gratificante e afectiva.

Não é claro se tal era prévio aos factos que deram origem ao processo ou foi desencadeado por este. Mas é claro que existe e que perturba a CC. Nessa medida, tem de ser tido em conta. E a própria mãe o tem vindo a ter em conta com esforços no sentido de ultrapassar esta dificuldade. Esforços que é necessário apoiar para o bem da filha.

No que ao pai diz respeito o processo é muito mais omisso. Mas a relação deste com a filha e o modo como perspectiva a relação da CC com a mãe são essenciais e implicam esforços da sua parte que igualmente necessitam de apoio.

O envolvimento do companheiro da mãe é uma decorrência da relação entre ambos estabelecida que carece de suporte que permita ultrapassar sentimentos pretéritos e seu enquistamento, evoluindo para uma situação de relação familiar inclusiva, satisfatória, que dê segurança e enriqueça a CC e a sua família.

Em suma, tudo isto apenas pode ser alcançado com um apoio efectivo, de longa duração, com todos os envolvidos e com um regime de evolução até à residência alternada que provou bem nos primeiros tempos de vida da CC após a separação dos pais, alterando-se o regime fixado concretizando a gradualidade como meio de o retomar plenamente.»

Trata-se, claramente, de um juízo de conveniência e de oportunidade sobre a retoma imediata do regime de residência alternada, o que é da competência das instâncias, cuja sindicância está, como tal, vedada a este tribunal de revista, como decorre do disposto no art.º 988.º, n.º 2, do CPC.

Resta saber se o regime de transição gizado pela Relação viola o superior interesse de CC e os direitos e interesses legítimos da Requerida, inclusive, na esfera da sua convivência com o companheiro, ou seja, aferir somente da estrita legalidade com que, para tanto, foram observados aquele superior interesse da criança e os direitos e interesses legítimos dos progenitores.

[...] não cabendo aqui sindicar tal avaliação, mas apenas aferir da estrita legalidade do regime transitório adotado, não se divisa que este regime ofenda o invocado superior interesse de CC, antes permitindo que a retoma do pleno regime da guarda conjunta e residência alternada se faça com as devidas cautelas de modo a recuperar a confiança daquela no reatamento dos convívios com o companheiro da mãe, com o necessário apoio e orientação psicológica.

Por outro lado, é assegurada, no essencial, a relação de proximidade e convivência entre CC e a sua mãe, mediante um alargamento tecnicamente acompanhado dessa convivência, com vista a superar as hesitações e os receios de CC - que, no entender da Relação, ainda persistem - no preconizado reatamento do regime de residência alternada.

Neste quadro, afigura-se que o superior interesse da criança foi respeitado na sua dimensão normativa, mormente na perspetiva da reinserção plena de CC no agregado familiar da Requerida, e compatibilizado, na medida do possível, com os direitos e legítimos interesses desta, tanto em relação à sua filha como no que concerne à sua convivência familiar com o companheiro.

Termos em que não se têm por violadas as invocadas disposições dos artigos 1906.º, n.ºs 6 e 8, do CC nem os indicados normativos da Convenção Sobre os Direitos das Crianças, nem tão pouco o núcleo dos direitos fundamentais consagrado nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República."


*3. [Comentário] O STJ afirma no acórdão que, cabendo "apenas aferir da estrita legalidade do regime transitório adotado, não se divisa que este regime ofenda o invocado superior interesse de CC, antes permitindo que a retoma do pleno regime da guarda conjunta e residência alternada se faça com as devidas cautelas de modo a recuperar a confiança daquela no reatamento dos convívios com o companheiro da mãe, com o necessário apoio e orientação psicológica."

Salvo o devido respeito, isto ultrapassa o controlo da legalidade que o STJ pode fazer no recurso de revista. O que incumbe ao STJ é controlar se as instâncias seguiram o critério legal do superior interesse da criança, não controlar como as instâncias aplicaram esse critério legal de modo a prosseguir aquele superior interesse. De outra forma, perde-se qualquer fronteira entre o controlo da legalidade da decisão recorrida e o controlo da conveniência e oportunidade dessa decisão.

MTS


28/09/2022

Jurisprudência 2022 (32)


Facto complementar;
interpretação do pedido*


1. O sumário de STJ 27/1/2022 (3777/17.0T8VFR.P1.S1) é o seguinte:

I. A insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que o autor estriba a pretensão deduzida não gera o vício de ineptidão da petição inicial.

II. Relativamente ao autor, permite o artigo 588º, do Código de Processo Civil, que a alegação superveniente de factos constitutivos, se destine a completar a causa de pedir inicial, como implique uma efetiva alteração ou modificação da causa de pedir, sendo a superveniência critério bastante para afastar as restrições fixadas nos artigos 264º e 265º, do mesmo código.

III. Não tendo a autora alegado na petição inicial, como fundamento dos pedidos de indemnização das alegadas benfeitorias e de reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel em causa, formulados nos termos dos artigos 1129.º, 1138.º, nº 1 e 1273.º, 754 e 755º, nº 1, al. e), todos do Código Civil, factos evidenciadores da cessação da relação jurídica emergente do invocado contrato de comodato, impõe-se considerar suprida essa falta de alegação pela invocação de tais factos em sede de articulado superveniente, à luz do disposto nos artigos 5º, nº 2, b), 588º, nºs 1 a 3, e 611º, todos do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

Em face da pretensão de indemnização por benfeitorias alegadamente realizadas pela autora no imóvel por ela habitado no âmbito de um pretenso contrato de comodato, considerou o Tribunal de 1ª Instância, em sede de despacho saneador, que não se encontravam alegados os factos essenciais "nucleares" ou "principais" estruturantes da causa de pedir no respeitante à cessação dessa relação jurídica e à caracterização das obras "elencadas" como benfeitorias necessárias ou úteis, pressupostos de facto tidos por indispensáveis à constituição do direito invocado nos termos dos artigos 216º, 1138º, nº. 1 e 1273º, do CC.

Mais sustentou que a alegação da vigência do contrato de comodato era incompatível com tal pedido, na medida em que este supunha precisamente a extinção, por algum modo, daquela relação jurídica, considerando irrelevante, para esse efeito, o invocado facto superveniente da penhora do imóvel em causa, no âmbito do processo executivo nº. 4674/17.....

Nesta base, ali se concluiu pela verificação da falta de causa de pedir e pela contradição/incompatibilidade entre o pedido e a própria alegação da vigência do contrato, vícios que seriam insupríveis por via de aperfeiçoamento, implicando, portanto, a ineptidão da petição inicial, determinativa da absolvição dos réus da instância, tal como se decidiu.

Por sua vez, o Tribunal da Relação, em linha convergente com o assim ajuizado, confirmou aquela decisão com a seguinte fundamentação, que se transcreve apenas quanto aos segmentos mais relevantes:

«(…) Ingressando agora no âmago do caso, verifica-se que a autora pede a condenação dos réus no pagamento da quantia de 102.706.626, acrescida de juros de mora bem como o reconhecimento de que beneficia, em garantia do pagamento de tal crédito, de direito de retenção sobre o imóvel que identifica.

Alega para o efeito, em síntese, que reside nesse imóvel, propriedade dos réus, que são seus pais, em virtude de um comodato sem prazo. Que, entre 2012 e 2015, face ao estado degradado do referido imóvel, procedeu à realização de várias obras de manutenção e conservação, autorizadas e solicitadas pelos réus junto do órgão licenciador. Que a dita quantia lhe é devida a título de benfeitorias. (…)

De acordo com o disposto no artigo 1138°, n.° 1, do C. Civil, o comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má-fé.

E estatui o artigo 1273° do C. Civil que: "1. Tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.'

Assim visto o enquadramento jurídico percebe-se que a pretensão da autora ao crédito por benfeitorias realizadas no imóvel tem um núcleo factual em torno da existência do contrato de comodato, da realização das benfeitorias, mas também da cessação do comodato, condição da indemnização pelas benfeitorias.

Ora, relativamente a esta base factual alusiva ao termo do contrato a petição é completamente omissa.

Com efeito, o direito a indemnização por benfeitorias não se confunde com o reembolso das respectivas despesas.

Como comentam Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, III, págs. 42 e 43: "nos termos do art. 479° (objecto da obrigação de restituir), a indemnização há-de corresponder ao valor daquilo que o titular tiver obtido à custa do empobrecido. A medida da   restituição continua, pois, a estar sujeita àqueles dois limites - o do custo, que neste caso consistirá em regra no empobrecimento do possuidor, e o do enriquecimento do titular do direito (valor actual)."

Esta indemnização só tem sentido quando se verifica o desapossamento, ou seja, quando aquele que incorporou valor na coisa tiver de abrir mão dela.

Como se disse o comodato ou tem estipulado um prazo ou o comodatário só será obrigado a restituir a coisa quando tal lhe for exigido.

Não se mostra alegada a factualidade referente ao termo do comodado, factualidade esta essencial para configurar a pretensão formulada.

A exigência da restituição tem de ser reportada à parte da relação jurídica para qual vai ingressar o bem valorizado pois é em relação a esta que se dá o enriquecimento. A penhora do imóvel num processo executivo não consta da petição inicial e, além disso, é completamente estranha ao objecto do processo aí configurado, não tendo, patentemente, qualquer virtualidade de representar uma exigência de restituição no contrato de comodato.

Não estamos perante meras imprecisões ou lacunas de exposição dos factos, mas perante uma substanciação imperfeita, uma deficiência estrutural da causa de pedir. Vale, assim, dizer que existe omissão de um núcleo essencial da causa de pedir e que, por isso, a petição inicial é inepta, como se ajuizou no despacho recorrido.» [...]

São [...] três as questões suscitadas pela recorrente e que consistem em saber se:  

i) ocorre o vício de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, como tal, insuprível e determinativa da absolvição dos réus da instância, ou se ocorre apenas um vício de petição meramente deficiente suscetível de aperfeiçoamento ou de sanação ulterior, à luz das disposições conjugadas dos artigos 5º, nºs 1 e 2, alínea b), 7º, nº 2, 186º, nºs 1, 2, alínea a), e 3, 552º, nº 1, alínea d), e 590º, nºs 1. 2, alínea b), e nº 4, do CPC; [...]

3.2.1.1. Vejamos, então, se deve subsistir a solução jurídica adotada para o litígio no acórdão recorrido, para o que importa definir, ainda que em traços gerais, o modo como se encontra estruturada a causa de pedir na ação declarativa.

Sabendo-se, tal como resulta do disposto nos arts. 3º, nº 1 e 581º, nºs 3 e 4, ambos do CPC, que o objeto da ação reside na pretensão que o autor pretende ver tutelada e que a identificação do direito que se pretende fazer valer em juízo consubstancia-se não só através do seu próprio conteúdo e objeto (o pedido) como por meio do ato ou fato jurídico que se considere que lhe deu origem (causa de pedir), bem se compreende que o art. 552.º, nº 1, al. d), do mesmo código, faça recair sobre o autor o dever de «expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção».

Está em causa a denominada teoria da substanciação que assume assento no nosso ordenamento jurídico e que exige sempre a indicação do título em que se fundamenta o direito firmado pelo autor. [...]

Por outro lado, e assentando o nosso sistema jurídico no princípio do dispositivo, consagrado no art. 5.º, nº 1, do CPC, é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos «factos essenciais que constituem a causa de pedir».

Mais problemática é, porém, no que respeita ao substrato factual da causa de pedir, o que se deve entender por “factos essenciais” e estabelecer a diferença entre estes e os «factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado», previstos no nº 2, al. b) do citado art. 5º. [...]

Cientes de que nem sempre é fácil fazer a distinção entre as duas categorias de factos, vejamos, então, se no caso dos autos, a autora alegou, na petição inicial, os factos estruturantes da causa de pedir por ela invocada como fundamento do efeito jurídico que a mesma pretende obter com a presente ação, ou seja, a condenação dos réus no pagamento da quantia de €102.706,62€, correspondente ao valor das benfeitorias realizadas no bem imóvel comodatado, propriedade dos réus [al. a) da petição inicial] e o reconhecimento de que a mesma beneficia em garantia do pagamento de tal crédito, com preferência relativamente a qualquer outro credor e com carácter de direito real e assim com sequela, de direito de retenção sobre o sobredito imóvel [al. b) da petição inicial].

E a este respeito, diremos, desde logo, que, ainda que se reconheça  algumas deficiências  na exposição dos factos pertinentes, afigura-se-nos, contrariamente ao afirmado pelas instâncias,  que a alegação feita pela autora  na petição inicial de que  habita, há mais de 30 anos, numa casa  que os pais lhe emprestaram, na qual  realizou, entre os anos de 2012 a 2015 e as expensas suas, as obras destinadas a evitar a deterioração do imóvel, que discrimina nos artigos  3.º a 10.º da petição inicial,  e nas quais  despendeu os valores aí também referidos, permite  identificar a causa de pedir invocada não só em termos  de definir o quadro ou o núcleo factológico, mas também de  divisar o quadro normativo aplicável, ou seja, o disposto nos  arts. 1129º, 1138º, nº 1 e 1273º, todos do Código Civil, constituindo já a base factual mínima para alicerçar o pedido formulado de indemnização das alegadas benfeitorias.

E se é certo nada ter a autora alegado no respeitante à cessação da relação jurídica emergente do invocado contrato de comodato, tida pelas instâncias como essencial, nos termos dos citados artigos 1138º, nº 1, e 1273º, do C. Civil em conjugação com os artigos 5º, nº 1, 186º, nºs 1 e 2, a), e 552º, nº l, d), do CPC, certo é também, na nossa maneira de ver, que tais factos revestem a natureza de factos essenciais complementares, pelo que a sua falta de alegação apenas constitui, no caso vertente, uma mera deficiência de alegação, suscetível de ser suprida, mediante convite à autora, ao aperfeiçoamento do respetivo articulado, ao abrigo do disposto nos arts. 7º, nº 2 e 590º, nº 2, al. b) e nº 4, ambos do CPC.    

De realçar que, apesar do poder de iniciativa do juiz de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados ser, de algum modo, discricionário, sempre se dirá que, inspirada como está a nossa lei processual civil no princípio da cooperação judiciária proclamado no citado art. 7º e dada a maior latitude que, atualmente, a mesma confere ao suprimento de factos essenciais à procedência da ação, como se alcança do preceituado nos citados arts. 5º, nº 2, al. b) e 590º, nº 2, al. b) e nº 4, um tal poder não deverá ser omitido nos casos em que a prevalência de razões de ordem formal sobre o conteúdo substancial da petição, ainda que imperfeitamente expresso, acaba por remeter as partes, desnecessariamente, para a propositura de uma nova ação [Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01.06.2010 (proc. nº 405/07.6TVLSB.L1), acessível in www.dgsi.pt/jtrl.].

Mas a verdade é que, no caso dos autos, o Tribunal de 1ª Instância  não só não efetuou um convite  ao aperfeiçoamento da petição inicial, como, não obstante ter admitido o articulado superveniente apresentado pela autora,  não equacionou a possibilidade de os novos factos alegados neste articulado poderem constituir sanação do denunciado vício de petição meramente deficiente, à luz das disposições conjugadas dos arts 5º, nºs 1 e 2, alínea b), 7º, nº 2, 186º, nºs 1, 2, alínea a), e 3, 552º, nº 1, alínea d), e 590º, nºs 1. 2, alínea b), e n.° 4, todos do CPC.

Assim sendo e porque o acórdão recorrido, seguindo a mesma linha de entendimento do Tribunal de 1ª Instância, confirmou  a existência do vício de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, sem também equacionar essa possibilidade, impõe-se-nos indagar, se, à luz do disposto nos artigos 5º, nº 2, b), 588º, nºs 1 a 3 e 611º do CPC, no caso dos autos se deve considerar preenchido o quadro factológico descrito na petição inicial em virtude dos factos novos invocados pela autora através do referido  articulado superveniente, ou seja, da ocorrência da  superveniente da penhora e subsequente venda executiva do imóvel no âmbito do processo executivo n.° 4674/17.....

E a este respeito, diremos, desde logo, que a nossa resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Senão vejamos.

O art. 588º do CPC, distingue, nos articulados supervenientes, o articulado posterior, que deve ser oferecido na própria fase dos articulados, porque a superveniência objetiva ou subjetiva verifica-se ainda nessa fase, e o novo articulado, que é apresentado fora da fase dos articulados. 

Fundamental, num e noutro caso é, tal como decorre dos nºs 1 e 4 do art. 588º e dos nºs 1 e 2, do art.  611º, ambos do CPC, que os factos a alegar como supervenientes sejam factos essenciais, isto é, «factos constitutivos, modificativos e extintivos», que «segundo o direito substantivo aplicável» tenham «influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida», quer por constituírem a causa de pedir, quer por ancorarem as exceções deduzidas pelo réu. 

Na verdade, conjugando-se intimamente com a regra estabelecida no art. 611º, do CPC, de acordo com a qual a sentença deverá tomar em consideração todos os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão, e porque tais factos supervenientes à propositura da ação hão-de  ser introduzidos no processo mediante alegação da parte a quem aproveita, permite o art. 588º, do CPC, que as partes aleguem tais factos, supervenientemente,  em articulado posterior ou em novo articulado.

De salientar, neste campo, que a doutrina [...] vem admitindo, de forma cada vez mais pacífica, a possibilidade de através de articulado poder ser invocada uma nova causa de pedir fora das condições prescritas   nos arts. 264º e 265º, do CPC, ou seja, sem as limitações impostas nestes artigos. [...]

Fundamental é, como já se deixou dito, que os factos supervenientemente alegados se mantenham no âmbito da mesma relação controvertida. 

Ora, revertendo ao caso dos autos, verifica-se, por um lado, ter a autora formulado, no pedido primitivo:

i)  a condenação dos réus no pagamento da quantia de €102.706,62€, correspondente ao valor das benfeitorias realizadas no bem imóvel comodatado, propriedade dos réus [al. a) da petição inicial] e

ii)  o reconhecimento de que a mesma beneficia em garantia do pagamento de tal crédito, com preferência relativamente a qualquer outro credor e com carácter de direito real e assim com sequela, de direito de retenção sobre o sobredito imóvel [al. b) da petição inicial],

Como fundamento destes pedidos invocou o disposto nos arts. 216º, 1273º, 754º e 755º, nº 1, al. e), todos do C. Civil e alegou que habita, há mais de 30 anos, numa casa que os pais lhe emprestaram, na qual realizou, entre os anos de 2012 a 2015 e as expensas suas, as obras destinadas a evitar a deterioração do imóvel, que discrimina nos artigos 3.º a 10.º da petição inicial, e nas quais despendeu os valores aí também referidos, sem, porém, nada ter alegado no respeitante à cessação da relação jurídica emergente do invocado contrato de comodato.

Por outro lado, no articulado superveniente já admitido, alegou que o imóvel em causa foi penhorado no processo executivo n.° 4674/17.... que corre termos no Juízo de Execução ... e que, no âmbito da venda aí ordenada, licitou este mesmo prédio em leilão eletrónico pelo valor de € 121.693.40 e depositou a quantia de € 18.986.78 correspondente ao preço excedente ao crédito que tinha reclamado na ação executiva, tendo-lhe sido adjudicado o imóvel pela agente de execução.

E, em consequência disso e com vista a obter título executivo que sirva de base àquela reclamação de crédito, requereu a alteração do pedido inicial no sentido de:

i) - serem condenados os réus   a pagar-lhe a quantia de € 102.706.62, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento;

ii) - ser reconhecido que a autora beneficia em garantia do pagamento de tal crédito, com preferência relativamente a qualquer outro credor, incluindo o interveniente BCP e da penhora realizada no processo executivo n.° 4674/17…, do direito de retenção sobre o imóvel em causa, agora, após a sua venda e transmissão na referida execução, sobre o produto dessa venda.

Mas se assim é, evidente se torna que a causa de pedir num e noutro pedido é precisamente a mesma, reportando-se, num e noutro caso, à indemnização das alegadas benfeitorias e ao reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel em causa por via da cessação da relação jurídica emergente do invocado contrato de comodato, nos termos dos arts. 1129º, 1138º, nº 1 e 1273º, 754º e 755º, nº 1, al. e), todos do Código Civil, pelo que não há dúvida de que a invocação dos factos superveniente da penhora e subsequente venda executiva do imóvel no âmbito do processo executivo n.° 4674/17…, contém-se nos limites da relação jurídica controvertida inicial.

E se é certo a autora não ter alegado, no pedido primitivo, quaisquer factos evidenciadores da cessação da relação jurídica emergente do invocado contrato de comodato, a verdade é que este contrato extinguiu-se com a aquisição, por parte da autora, do direito de propriedade do prédio comodatado, pelo que não podemos deixar de considerar suprida aquela falta de alegação pela invocação dos factos supervenientes da venda do imóvel no âmbito do processo executivo n.° 4674/17.... e subsequente aquisição pela autora, à luz do disposto nos artigos 5º, nº 2, b), 588º, nºs 1 a 3, e 611º, do CPC.

Vale tudo isto por dizer que a originária insuficiência de alegação de factos constitutivos, que o tribunal recorrido notou, no que concerne à cessação do mencionado contrato de comodato, foi completada através dos factos invocados pela autora no seu articulado superveniente.

E, completada, deste modo, a causa de pedir inicial, inexiste, consequentemente, razão válida para considerar estar-se em presença do vício de ineptidão apontado na decisão sob censura."


3. [Comentário] No relatório do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. AA instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, pedindo a condenação destes réus a pagar-lhe a quantia de € 102.706.62, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento, e que se reconheça que a mesma beneficia de direito de retenção sobre o dito imóvel.

Alegou, para tanto e em síntese, que reside e habita numa casa, propriedade dos réus, seus pais, por comodato sem prazo e que, entre 2012 e 2015, face ao estado degradado do referido imóvel, realizou várias obras de manutenção e conservação, as quais foram autorizadas e requeridas pelos réus junto do órgão licenciador, tendo sido ela a suportar o custo dessas obras."

Tendo presente os pedidos formulados pela autora, a cessação do contrato que comodato pode ser considerada um facto complementar (art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC). Aliás, se se entende -- como entenderam as instâncias -- que o direito ao ressarcimento das benfeitorias só é possível se o comodato tiver cessado, então bastaria ter interpretado os pedidos da autora (e, em especial, aquele que respeita ao pedido de retenção) em função dessa circunstância para se concluir que a própria autora entende que o comodato cessou.

MTS


27/09/2022

Jurisprudência 2022 (31)


Gestão processual;
adequação formal


I. O sumário de RE 10/2/2022 (1620/21.5T8STB.E1) é o seguinte:

1 - Constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova indicado pela parte, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se aquela antecipação for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo.

2 - Tratando-se da prova pericial o artigo 476.º, n.º 1, do CPC permite ao juiz indeferir a perícia se a mesma for impertinente ou tiver fins dilatórios. No caso o autor requereu a realização de perícia, através da colheita de ADN de ambas as partes (autor e réu), sendo este um meio de prova expressamente admitido nas ações relativas a filiação (artigo 1801.º do Código Civil) pelo que dúvidas não há que se trata de um meio de prova pertinente para aquilatar se o réu é efetivamente filho do autor.

3 - O artigo 612.º do CPC trata da questão da simulação de um litígio mediante prévio acordo entre as partes processuais, pressupondo, por conseguinte, um conluio entre elas para obterem um resultado proibido por lei. No caso, não se tratará de um caso de uso indevido do processo previsto naquele preceito legal na medida em que resulta das próprias alegações de recurso que não existe qualquer conluio entre autor e réu. Na verdade, o que o apelante invoca é uma (suposta) má-fé processual do autor (artigo 542.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), do CPC), ou seja, que o autor visa obter um objetivo ilegal com a propositura da presente ação, um fim não tutelado pela lei. Na medida em que a paternidade jurídica não resulta diretamente da fecundação, sendo aquela determinada por meios indiretos, e assentando a paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe numa presunção de fidelidade da primeira relativamente ao segundo com quem teve relacionamento sexual na época da conceção, surgindo dúvidas sobre a exclusividade das relações de sexo – e na sua petição inicial o autor invoca essa dúvida – não se vislumbra como pode defender-se que a instauração da presente ação de impugnação da paternidade presumida em relação ao marido da mãe deve ser considerada um ato de má-fé processual.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O apelante defende que o despacho recorrido é ilegal porquanto:

(i) foi determinada a realização de exame pericial de ADN às partes sem que tenham sido previamente apreciadas as exceções de caducidade do direito de ação e de ineptidão da petição ou falta de factualidade material concreta alegada invocadas na contestação;
(ii) foi desvalorizada e não valorada a declaração de parte / confissão do réu vertida na contestação, a qual, caso tivesse sido valorada determinaria a inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, a desnecessidade da prova pericial cuja realização foi ordenada;
(iii) foi ignorada a recusa fundamentada e perentória do réu em submeter-se ao exame pericial, sendo a realização de exame pericial ao réu/apelante ofensiva dos seus direitos de personalidade, identidade pessoal, familiar e patrimonial, os quais foram invocados pelo réu/apelante na contestação;
(iv) permite que o autor se sirva do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei.

Apreciando.

Invocando a violação dos artigos 591.º, alíneas b) e d), 595.º e 596.º, todos do CPC, o apelante defende que o tribunal de primeira instância não podia ordenar a realização de exames periciais sem antes conhecer das exceções invocadas por ele na respetiva contestação, nomeadamente a caducidade do direito de ação e a ineptidão da petição inicial. Ou seja, na perspetiva do apelante só após a prolação do despacho saneador, onde o tribunal teria de conhecer das exceções por si invocadas e acima referidas, e apenas se a ação houvesse de prosseguir, poderia o tribunal a quo ordenar a realização de exame pericial às partes.

Porém, desde já se adianta que o apelante carece de razão.

Está em causa a realização (antecipada) de exame pericial às partes através da colheita do respetivo ADN.

Exame pericial que foi, de facto, ordenado pelo tribunal a quo antes da prolação do despacho saneador, sede própria para o conhecimento das exceções invocadas pelo réu (cfr. artigos 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).

A produção antecipada da prova está expressamente contemplada no artigo 419.º, do Código de Processo Civil, o qual dispõe o seguinte:

«Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação».

Tal preceito legal permite a produção dos meios probatórios nele referidos antes do momento processual em que normalmente seriam produzidos desde que estiver em risco a conservação da fonte de prova (impossibilidade) ou a facilidade de a produzir (grande dificuldade) – assim, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 231.

Já Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª Edição, 1950, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, pp. 331 e seguintes.] ensinava que «os princípios de orientação a que o Código obedeceu nesta matéria foram dois:

1.º Tratando-se de prova por depoimento de parte ou de testemunhas, o momento oportuno ou desejável para a produção é a audiência de discussão e julgamento;
2.º Tratando-se de prova por inspeção (exames, vistorias, avaliações, inspeção judicial), o período normal de produção começa com a abertura da instrução propriamente dita (…).
Pode, porém, suceder que a produção de determinada prova apresente caráter de urgência, incompatível com a espera do momento normal ou oportuno; pode dar-se o caso de haver risco de perda de prova, se houver de aguardar-se o momento próprio para a sua produção.
A lei provê a este perigo, permitindo a produção antecipada. (…) O fundamento legal da antecipação está assim designado: justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de inspeção ocular» [...]

A partir de uma primeira leitura das disposições conjugadas dos artigos 419.º (o qual prevê o fundamento da produção antecipada de prova) e 420.º (o qual estatui a forma da antecipação da prova), ambos do CPC, poderia resultar a conclusão de que a antecipação da produção dos meios de prova ali previstos teria de ser requerida pela(s) parte(s).

Julgamos, porém, que a antecipação da produção de prova pode ser oficiosamente determinada pelo tribunal desde que, na pendência da causa, aquele constate que existe um justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a produção de determinado meio probatório, no período normal da instrução do processo.

É que se o tribunal pode determinar oficiosamente qualquer diligência que às partes seja lícito requerer, como se depreende do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, parece-nos que também poderá determinar oficiosamente a antecipação de produção de um meio probatório que aquelas hajam indicado, verificado o respetivo fundamento legal. E julgamos, até, que o próprio dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do Código de Processo Civil – e que foi invocado pelo tribunal a quo no despacho recorrido – o exigirá.

O dever de gestão processual implica uma direção ativa e dinâmica do processo com vista a alcançar quer uma rápida e justa composição do litígio quer uma melhor organização do trabalho do tribunal. Como referem João Correia / Paulo Pimenta / Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, p. 23, «a satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual» [...].

Também Paulo Ramos / Ana Luísa Loureiro [Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, 2014, Almedina, pp. 47 e seguintes.] referem que a norma do artigo 6.º, n.º 1, do CPC é uma norma habilitadora de caráter abrangente concebida para permitir ao juiz temperar ou mitigar o formalismo processual, autorizando a modificação da tramitação processual normal através de uma adequação formal (esta consagrada no artigo 547.º do CPC [...]), desde que sejam respeitados os princípios processuais.

Assim, constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se essa for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo."

[MTS]


26/09/2022

Jurisprudência europeia (TJ) (271)


Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Procedimento europeu de injunção de pagamento – Regulamento n.° 1896/2006 – Artigo 16.°, n.° 2 – Prazo de 30 dias para apresentar uma declaração de oposição à injunção de pagamento europeia – Artigo 20.° – Procedimento de reapreciação – Artigo 26.° – Aplicação do direito nacional às questões processuais não reguladas expressamente por este regulamento – Pandemia da COVID‑19 – Regulamentação nacional que previu uma interrupção de algumas semanas dos prazos processuais em matéria cível


TJ 15/9/2022 (C‑18/21, Uniqa Versicherungen/VU) decidiu o seguinte:

Os artigos 16.°, 20.° e 26.° do Regulamento (CE) n.° 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento, conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.° 2015/2421 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015,

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional, adotada por ocasião da ocorrência da pandemia da COVID‑19 e que interrompeu durante cerca de cinco semanas os prazos processuais em matéria cível, ao prazo de 30 dias fixado pelo artigo 16.°, n.° 2, deste regulamento ao requerido para deduzir oposição a uma injunção de pagamento europeia.


Jurisprudência 2022 (30)


Recurso de revisão;
documento novo; prova pericial*


1. O sumário de RG 27/1/2022 (1000/20.0T8VCT-A.G2é o seguinte:

I – A força vinculativa do caso julgado só pode ser afastada nos casos excepcionais em que o próprio legislador ordinário previu a possibilidade de não vigorar o princípio da intangibilidade do caso julgado, tal como acontece nos casos de admissão do recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696º do CPC.

II – O recurso extraordinário de revisão faculta a quem tenha definitivamente ficado vencido na causa a possibilidade de a reabrir mediante a invocação de fundamentos taxativamente previstos no art. 696º do CPC, as quais se referem à actividade material do juiz, à situação das partes, à formação do material probatório e à preterição do caso julgado.

III – Na primeira fase da tramitação do recurso de revisão – a fase rescindente –, verifica-se se existe ou não fundamento para a revisão, mantendo-se ou revogando-se, em consonância, a decisão recorrida. Na eventualidade do recurso ser julgado provido, segue-se a fase rescisória em que se procede à ressuscitação da instância (expurgada da falsidade que a inquinou) em que se produziu o caso julgado e se julga a mesma acção, mantendo-se intocáveis a causa de pedir, o pedido, os sujeitos e o valor da causa.

IV – O fundamento previsto na al. c) do art. 696º do CPC refere-se a um documento escrito dotado de força probatória plena que seja suficiente para, por si só (alheando-se assim da margem de apreciação do julgador – trata-se de um julgamento produzido pela lei, embora com reflexo na matéria de facto), destruir a prova em que se fundou a decisão.

V – Constitui documento escrito autêntico (cfr. arts. 362º, 363º, 369º e 370º do CC), dotado de força probatória plena (cfr. art. 371º do CC), relatório do INMLCF com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Entende o recorrente que a sentença recorrida enferma de um clamoroso erro de julgamento, ao concluir que “Real e efetiva possibilidade de exercer o direito ao esclarecimento da verdade biológica teve J. M. na acção de investigação, bastando-lhe para tanto haver litigado com o mínimo de diligência”, e, tendo o recorrente invocado a alínea c) do artigo 696° do CPC para o recurso de revisão, ao não considerar como documento os relatórios de exame de ADN: “O relatório dos exames de ADN não corresponde propriamente a documento, sendo habitualmente o resultado de prova pericial e esta é produzida no decurso da causa, não antes desta, e é-o por determinação do tribunal (art. 467º CPC)”.

Quid iuris?

São duas as questões que o recorrente questiona e que estiveram na base da improcedência da acção recorrida: a intangibilidade do caso julgado e não estarmos perante um caso excepcional em que é facultada a reversão (art. 696º do CPC), pois não se verifica a invocada alínea c) do art. 696º do CPC, em virtude de pôr em causa a aceitação de relatórios de exames de ADN como equivalentes a documentos.

Ora, não se questionando a intangibilidade do caso julgado e a existência de casos excepcionais em que é facultada a reversão, já se discute a conclusão de que, in casu, "Real e efectiva possibilidade de exercer o direito ao esclarecimento da verdade biológica teve J. M. na acção de investigação, bastando-lhe para tanto haver litigado com o mínimo de diligência (é no processo que a parte tem de colocar todo o esforço em defesa da respectiva posição, por não existir segunda oportunidade), bem como que "O relatório dos exames de ADN não corresponde propriamente a documento, sendo habitualmente o resultado de prova pericial e esta é produzida no decurso da causa, não antes desta, e é-o por determinação do tribunal (art. 467º CPC)".

Com efeito, perante a transitada decisão de 26-11-1982 proferida na acção de investigação de paternidade e que declarou ser J. M. pai de A. M., não está agora em causa a instauração por aquele de uma nova acção com o mesmo objecto, atento que a decisão definitiva nela proferida constitui caso julgado impeditivo da instauração de uma segunda acção, fazendo precludir o direito daquele de, através desta nova acção e com recurso a novos meios de prova, impugnar a paternidade judicialmente estabelecida. Concordando-se, tal como defendido no Ac. do STJ proferido em 7-03-2019 [In Proc. nº 749/17.9T8GRD.C1.S1 e acessível in www.dgsi.pt.], que “A prevalência do princípio da intangibilidade do caso julgado sobre o direito fundamental à verdade biológica e à identidade e integridade pessoal, inferível do artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa, decorre da própria opção feita pelo legislador constitucional, plasmada no nº 3 do citado art. 282º, que proclama categoricamente o princípio da ressalva dos “casos julgados”, apenas admitindo as exceções previstas nesta norma, todas elas ligadas ao domínio do direito penal e do direito sancionatório público, e, nessa medida, insuscetíveis de aplicação analógica a outras áreas do ordenamento jurídico.”. Fazendo, pois, aqui sentido dizer, tal como se refere na sentença recorrida, que é no processo que a parte tem de colocar todo o esforço em defesa da respectiva posição, por não existir segunda oportunidade. Valendo tal entendimento para as situações em que o autor não contestou a acção de investigação de paternidade contra ele proposta pelo Ministério Público ou não se empenhou convenientemente. [...]

Ora, o que está aqui em causa é um recurso extraordinário de revisão.

Como já se escreveu [Neste sentido, vide, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares, Coimbra Editora, 1979, págs. 306 e 318], “O recurso extraordinário de revisão é um expediente processual que faculta a quem tenha ficado vencido num processo anteriormente terminado a sua reabertura, mediante a invocação de certas causas taxativamente invocadas na lei, no artigo 696º do Código de Processo Civil.

Podem agrupar-se em quatro categorias, consoante se referem

1) - à atividade material do juiz;
2) - à situação das partes;
3) - à formação do material instrutório;
4) - à preterição do caso julgado.

Normalmente, a marcha do processo reparte-se por duas fases.

A fase rescindente, que se destina a apreciar o fundamento do recurso, isto é, a reconhecer ou não como verificado o fundamento da revisão, de acordo com uma das situações elencadas no referido artigo 696º, mantendo-se ou revogando-se a decisão contestada.

Se o recurso não for provido, termina então aqui a revisão.

A fase rescisória existe se o recurso for provido, reabrindo-se a anterior instância onde foi produzido o caso julgado, expurgada da falsidade que inquinou aquele e com a finalidade de, agora, uma outra vez, se julgar a mesma ação. Não se trata de uma nova instância, mas do ressuscitar da mesma instância, mantendo-se, pois, quanto ao valor, sujeitos, pedido e causa de pedir.

No caso concreto em apreço, está em causa a terceira categoria de causas da revisão, ou seja, a formação do material instrutório, prevista na alínea c) do citado artigo 696º.

Nos termos do corpo deste artigo e da alínea em questão, “a decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando (…) se apresente um documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”

Deste normativo, ressalta à evidência que o que está em causa é a existência de um documento e de um documento em sentido estrito, ou seja, de um documento escrito.

Por outro lado, e conforme é unânime na doutrina e na jurisprudência, o “documento há-de ser tal, que por si só tenha força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença; quer dizer, o documento deve impor um estado de facto diverso daquele em que a sentença assentou” – Alberto dos Reis “in” Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, página 356.

Dito doutro modo “estamos, em suma, no patamar da prova legal e vinculada – da prova plena – à qual é, em absoluto alheio qualquer tipo de julgamento de facto produzido pelo julgador, à luz da sua liberdade de apreciação (…). O julgamento – quanto ao pertinente documento – se bem que com reflexo no facto, é de direito, produzido pela própria lei” – Brites Lameiras “in” Notas Práticas ao Regime dos Recurso em Processo Civil, 2ª edição, página 295.”.

Vejamos, agora, a outra questão do recurso: o documento invocado pelo recorrente.

Como já supra referido, o recurso de revisão de sentença regulado nos arts. 696º e ss. do CPC é o meio processual destinado a impugnar decisões que já tenham transitado em julgado. Trata-se de um recurso extraordinário, como bem se compreende. Só em situações muito delimitadas é que é possível pôr em causa, o princípio da estabilidade e segurança jurídica inerente ao trânsito em julgado de uma decisão, assentando o recurso de revisão no princípio da justiça material, permitindo a alteração de uma decisão que se encontra errada.

O recorrente requereu ao abrigo do disposto no art. 696º, c) do CPC, a revisão da sentença proferida em 26-11-1982, apresentando como documento o relatório do INMLCF datado de 27-01-2020, com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram.

Como assertivamente refere o recorrente nas suas alegações, trata-se inequivocamente de documento escrito autêntico (cfr. arts. 362º, 363º, 369º e 370º do CC), que faz prova plena dos factos aí atestados pela entidade documentadora (cfr. art. 371º do CC).

Dispõe a al. c) do art. 696º do CPC, que “a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

A procedência do pedido de revisão depende assim de três requisitos:

- que se apresente documento novo;
- que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento dele;
- que, por si só, o documento seja suficiente para modificar a decisão em sentido para si mais favorável.

A “novidade” significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele e desde que não tenha podido juntá-lo ao processo por facto que não lhe seja imputável.

In casu, o documento ainda não existia, até porque à data em que a acção foi julgada - princípios dos anos 80 -, ainda não existiam exames de ADN [...], que apenas surgiram em meados da década de 90.

Conforme resulta claramente do texto legal não é qualquer documento que pode fundamentar um recurso de revisão, mas só aquele que por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, devendo ser suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou. Se o documento, quando relacionado com os demais elementos probatórios produzidos em juízo, não tiver força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença, não há razão para abrir um recurso de revisão [Cfr. Ac. da RL de 2-06-2004, proferido no Proc. nº 619/2004-4 e disponível em www.dgsi.pt.].

A este propósito veja-se o que afirma Rodrigues Bastos [Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 3ª ed., pág. 319.] que “não preenche este fundamento a apresentação de documento com interesse para a causa que, relacionado com outros elementos probatórios produzidos em juízo, fosse susceptível de determinar uma decisão mais favorável para o vencido; para servir de fundamento à revisão, é necessário que o documento, além do carácter de superveniência, faça prova de um facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por ele se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito.”

Por sua vez Luís Filipe Brites Lameiras [Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, p.197.] que defende que o documento que for junto para fundamentar a revisão tem de possuir “uma força probatória qualificada, auto-suficiente e impossível de destruição – só por si ele é suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável. Estamos em suma, no patamar da prova legal e vinculada – da prova plena – à qual é, em absoluto alheio, qualquer tipo de julgamento de facto produzido pelo julgador, à luz da sua liberdade de apreciação (artº 655º). O julgamento – quanto ao pertinente documento -, se bem com reflexo no facto, é de direito, produzido pela própria lei”.

Quanto à suficiência, o Código de 1939 exigia que o documento tivesse a virtualidade de “destruir” a prova em que a decisão revidenda se havia fundado.

O Código de 1961, e as alterações ulteriores, vieram “aligeirar” esse requisito: - não se exige já que o documento altere radicalmente a situação de facto em que assentou a sentença [acórdão] revidenda, basta que lhe implique uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida [Neste sentido, vd. Acórdão do STJ de 17-09-2009, in Proc. nº 09S0318, disponível em www.dgsi.pt.].

Ainda, a propósito da suficiência, no Ac. do STJ de 18-12-2013 [In Proc. nº 3061/03.7TTLSB-B.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.], entendeu-se que:

“O requisito da suficiência tem de ser entendido como exigência de que o documento apresentado disponha de total e completa suficiência probatória, no sentido de que, se esse documento tivesse sido tomado em consideração pelo tribunal que proferiu a decisão revidenda, essa decisão nunca poderia ter sido aquela que foi – e isto sem fazer apelo a outros elementos de prova, sejam eles documentais, testemunhais ou periciais –, por constituir prova plena de um facto inconciliável com a decisão a rever”. Para decidir se um documento é suficiente, “importa colocarmo-nos nas vestes do tribunal que apreciou a factualidade trazida para os autos com vista a saber, se estando na posse desta declaração, a mesma iria alterar o sentido fáctico da decisão. Não se pondo em causa a autenticidade da mesma, outro tanto já não se pode dizer da credibilidade tendo em vista o objectivo que se pretende atingir”.

“Alberto dos Reis (Código do Processo Civil Anotado, Vol. VI, pág. 357) também ensina: “O magistrado para julgar se o documento é decisivo, deverá pô-lo em relação com o mérito da causa, deverá proceder ao exame do mérito e indagar qual teria sido o êxito da causa se o documento houvesse sido apresentado. Feito este exame, ou o magistrado se convence de que se o documento estivesse no processo, a sentença teria sido diversa e, neste caso, deve admitir a revogação; ou se convence de que, não obstante a produção do documento, a sentença seria a mesma, porque assenta sobre outras bases e está apoiada em razões independentes do documento – e neste caso deve repelir a revogação” [Como se defende no Ac do STJ de 20-03-2014, in Proc. 2139/06.0TBBRG-G.G1.S1, de onde foi retirado o extracto transcrito.].

Tendo o apelante junto relatório do INMLCF datado de 27-01-2020, com o resultado de exclusão do A. da paternidade da R., na sequência de testes de ADN a que ambos voluntariamente se submeteram, é bom de ver que tal documento, só por si, tem força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença que se pretende rever.

Concluímos, assim, relativamente à fase rescindente, que existe fundamento para o recurso ser provido, com a consequente revogação da decisão contestada.

Termos em que será julgado procedente o recurso.

*[Comentário] Nada se tem a objectar à solução propugnada no acórdão. A mesma encontra-se expressamente defendida em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (2022), 213.

MTS