"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/11/2022

Jurisprudência 2022 (63)


Ampliação do objecto do recurso;
convolação


1. O sumário de STJ 24/2/2022 (1238/20.OT8PTG.E1.S1) é o seguinte: 

I. Nas situações em que foram deduzidos um pedido principal e um pedido subsidiário, a parte vencedora da ação se pretender sindicar a decisão do pedido principal, que foi julgado improcedente, deverá fazê-lo através da interposição de um recurso independente ou subordinado, nos termos do artigo 633º, do Código de Processo Civil e não mediante uma ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636º, do mesmo código.

II. O artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Civil, tem por objeto a correção do erro cometido pela parte quanto ao meio processual utilizado para a prática de determinado ato, caso em que se impõe ao tribunal a convolação oficiosa do ato indevidamente qualificado pela parte para o meio processual de que deveria ter-se socorrido, desde que o seu conteúdo seja adequável com este último.

III. Tendo a autora, por erro de qualificação, requerido nas alegações da sua resposta a ampliação do âmbito do recurso quanto ao pedido principal de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, cuja decisão lhe foi desfavorável, mas resultando claro do teor dessas alegações que a mesma pretendia a reapreciação daquele pedido, recai sobre o tribunal o dever de convolar, oficiosamente, a requerida ampliação do âmbito do recurso em recurso subordinado, a não ser que tal convolação se venha a traduzir na prática de um ato inútil.

IV. O contrato de arrendamento rural de prédio rústico pertença de dois comproprietários não é afetado pela extinção da compropriedade operada por via de ação de divisão de coisa comum.

V. É relativamente à totalidade do prédio objeto do contrato de arrendamento rural e não apenas a uma parte dele que se poderá fazer valer a oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, tal como resulta do estabelecido no artigo 19º, nº 2, do DL n.° 294/2009, de 13/10.

VI. É que se assim não fosse deixaríamos nas mãos do locador a possibilidade de reduzir unilateralmente o objeto do contrato de arrendamento rural, nomeadamente a área do prédio locado, o que, para além de frustrar o resultado prático que se pretendeu alcançar com a celebração do contrato de arrendamento, sempre redundaria na modificação unilateral do objeto do contrato, em violação do princípio da pontualidade inserto no artigo 406.° n.° 1 do Código Civil e numa extinção parcial do contrato através de oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, não consentida pelo  nº 2 do citado artigo 19º.

VII. A interpretação da norma deste artigo 19º, nº 2 no sentido de que o âmbito da cessação por oposição à renovação e por denúncia de uma das partes abrange obrigatoriamente todo o objeto do contrato, não podendo a oposição à renovação do contrato nem a denúncia ser invocadas de forma parcial, não interfere com o núcleo essencial do direito de propriedade dos senhorios que continuam a extrair do imóvel o proveito económico que corresponde a uma forma típica de exploração dos prédios rústicos, não constituindo, por isso, violação do princípio constitucional do direito à propriedade privada consagrado no artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.


"2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"3.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, o objeto do recurso interposto pela autora prende-se, essencialmente, com as questões de saber se sobre o Tribunal da Relação recaía a obrigação de convolar a ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela autora em sede do recurso de apelação, em recurso subordinado e se é válida a oposição à renovação do contrato de arrendamento operada pela autora.

3.2.1. Convolação da ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela autora em sede do recurso de apelação, em recurso subordinado.

Sustenta a autora que, tendo formulado o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas e, subsidiariamente, o pedido de denúncia deste mesmo contrato, perante os considerandos por ela expendidos, a folhas 1 (parte final), 2, 3, 4, 5 e 6, das suas alegações de resposta, em sede de recurso de apelação, impõe-se concluir que a mesma, no plano técnico-jurídico, não se limitou a analisar e a colocar em causa simples “fundamento” ou questão “lateral” da decisão proferida em 1ª instância, tendo, antes, impugnado a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que julgou improcedente aquele pedido principal da ação, pelo que, nos termos do disposto no art. 5º, nº 3 do CPC, deve este Tribunal determinar que a “ampliação da apreciação do recurso” por ela requerida ao abrigo do art. 636º, nº 1, do CPC corresponde e configura a interposição de um “recurso subordinado”, nos termos do artº 633º, nº 2 do CPC e, consequentemente, conhecer desse recurso ou remeter, para esse efeito, os autos ao Tribunal da Relação ....

Vejamos.

Não há dúvida que, na sequência do recurso de apelação interposto pela ré do despacho saneador/sentença proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, na parte em que julgou procedente o pedido subsidiário deduzido pela autora, condenando a ré a ver cessado o contrato de arrendamento rural por oposição à renovação por parte da senhoria com efeitos reportados a 31 de Dezembro de 2021, no que respeita à área rústica que pertence à A., com 215,9950 hectares, a qual se localiza na parte poente da EN ..., a autora requereu nas suas contra-alegações a ampliação do objeto do recurso, nos  termos do disposto no art. 636º, nº 1, do CPC, afirmando, nas respetivas conclusões, que:

«(…)  4- Assiste direito à A. recorrida, nos termos do Artº 636, nº 1 do C.Proc.Civil, de solicitar ao Tribunal de recurso, neste caso ao Tribunal da Relação ..., a ampliação de apreciação do recurso interposto pela R. recorrente quanto ao pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural, formulado pela A. recorrida, com fundamento na falta de pagamento das rendas, em mora por período superior a seis meses, relativamente ao que a A., vencedora na acção, “decaiu”(…)

7- A Sentença recorrida deve ser nesta parte revogada e o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural, cuja reapreciação ora se vos solicita nos termos do Artº 636, nº 1 do C. Proc. Civil, ser julgado procedente, decretando-se a resolução imediata do contrato com fundamento na falta de pagamento pela Ré das rendas devidas por período de tempo e mora superior a seis meses, tudo nos termos dos Artigos 13 nº 3 e 17 nº 2 alínea a), ambos, do Dec. Lei 294/2009 de 13.10, com todas as consequências, legais, incluída a entrega da área rustica arrendada à A., em 31.12.2021 sem prejuízo do disposto no Artº 15 nº 2 do Dec. Lei Nº 294/2009 de 13.10. (…)

Nestes termos e nos demais de direito que este Tribunal Superior doutamente suprirá deve o recurso interposto pela Ré, Sociedade Agrícola das Algueireiras e Anexos, S.A. ser julgado completamente improcedente por total falta de fundamento das motivações de recurso invocadas, outrossim, se julgando procedente, em sede de ampliação da apreciação deste recurso (Artº 636, nº 1 do C.Proc.Civil), o pedido principal formulado pela A. Recorrida decretando-se a resolução imediata do contrato de arrendamento rural, revogando-se/alterando-se a sentença recorrida nos termos e pela forma que se faz constar das conclusões antecedentes.» .  

De realçar, por outro lado, que a ampliação do recurso a requerimento do recorrido prevista no citado art. 636º e o recurso subordinado previsto no art. 633º, ambos do CPC, são realidades completamente distintas uma da outra.

A ampliação do recurso, tal como ensina Abrantes Geraldes [In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 127], não se apresenta como um verdadeiro recurso, pois «afinal sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado final do processo que serve de critério aferidor da legitimidade, através do segmento decisório, nos termos dos arts. 631º, nº 1 e 633º, nº 1», pelo que o vencedor que se prevalecer desta faculdade não terá o estatuto próprio do recorrente» e só serão apreciadas «as questões suscitadas se porventura forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou de que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida».

No dizer deste mesmo autor [In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 123], a ampliação do objeto do recurso corresponde à solução legal prevista para situações de sucumbência circunscrita aos fundamentos da ação ou da defesa e que proporciona à parte vencedora «a possibilidade de suscitar perante o tribunal ad quem a reapreciação de questões cuja resposta tenha sido desfavorável, esconjurando os riscos derivados de uma total adesão do tribunal de recurso aos fundamentos apresentados pelo recorrente para alcançar a revogação ou anulação da decisão».

Diversamente, o recurso subordinado é interposto pela parte sobre o segmento decisório em que ficou vencida, ficando a apreciação do mérito do recurso subordinado dependente das vicissitudes formais do recurso independente interposto pela contraparte (art. 633º, nº 3 do CPC), mas uma vez admitido este último recurso, permite à parte vencida quanto ao resultado da ação, ou seja, quanto a um pedido ou a um segmento do pedido, confrontar o tribunal ad quem com a impugnação da decisão recorrida, na parte em que a mesma lhe foi desfavorável, possibilitando a alteração do respetivo resultado.

Abarca os casos em que « uma das partes faz depender a sua atuação da posição adotada pela parte contrária: optando por se abster de recorrer na parte em que a decisão lhe é desfavorável, reserva, contudo, o exercício do direito para a eventualidade de a parte contrária, também vencida, interpor recurso» ou em que, « atento o valor da sucumbência, a lei impede a parte de interpor recurso autónomo (art. 629º, nº1)» [Cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 98.].

Não pode, pois, como adverte Abrantes Geraldes [In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 100. No mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 30.09.2009, (proc. nº 09S0233), acessível in www.dgsi/stj.pt.] «confundir-se a interposição de recurso subordinado com a ampliação do objeto do recurso», pois, «para além de serem diferentes os objetivos que se pretendem alcançar com um e com outro instrumento processual, são diversas as circunstâncias que os motivam, já que o recurso subordinado implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado  na sentença, ao passo que a ampliação do objeto do recurso pressupõe apenas  que não foi acolhido o fundamento (ou fundamentos) invocado pela parte para sustentar a decisão que, apesar disso, lhe foi favorável ou se verifica alguma  nulidade da decisão».

De sublinhar ainda que, quando o citado art. 636ª fala em «fundamentos da ação ou da defesa» está a reportar-se a causas de pedir inerentes a determinado pedido, aos fundamentos de facto e de direito que sustentam a defesa ou a verificação de alguma nulidade decisória que não tenha interferido (ainda) no resultado [Neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 125.] e que a referência feita, no art. 633º, a decisões desfavoráveis reporta-se a pedidos julgados improcedentes.

Decorre, assim, com bastante clareza da leitura destes dois preceitos que nas situações em que foram deduzidos dois pedidos – um principal e um subsidiário – a possibilidade que a parte vencedora terá de fazer reapreciar o pedido principal que foi julgado improcedente é interpor recurso independente ou recurso subordinado.

De resto, foi precisamente na esteira deste entendimento que o acórdão recorrido decidiu que, não tendo a autora, no caso dos autos, ficado vencedora relativamente ao pedido de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas, já que em lª instância se decidiu pela impossibilidade superveniente da lide quanto a este pedido, nem tendo interposto recurso desta decisão da 1ª Instância, «não tem cabimento a apreciação dos fundamentos esgrimidos pela Recorrida relativamente a tal pedido, relativamente ao qual resultou vencida».

Ora, resultando claro das 4ª e 7ª conclusões das contra-alegações ter a autora requerido a reapreciação da decisão de 1ª instância, na parte em que julgou improcedente o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas pela ré das rendas devidas por período de tempo superior a seis meses, nos termos dos arts. 13º, nº 3 e 17º, nº 2, al. a), ambos do Dec. Lei 294/2009 de 13.10, e ter a mesma, por erro de qualificação, formulado esta sua pretensão ao abrigo do disposto no art. 636º, nº 1 do CPC, vejamos, então, se sobre o Tribunal da Relação recaía a obrigação de convolar a requerida ampliação do objeto de recurso na interposição de recurso subordinado, nos termos do art. 633º, nº 1, por ser, a par do recurso independente, o meio concreto de que deveria ter-se socorrido.

E a este respeito diremos, desde logo, que, contrariamente ao defendido pela recorrente, uma tal convolação não encontra suporte legal no art. 5º, nº 3 do CPC, mas, antes, no art. 193º, nº 3, do mesmo código, que dispõe que «o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinado que se sigam os termos processuais adequados».

Trata-se de  uma norma inovatória, introduzida pela revisão do Código de Processo Civil operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Julho, com o objetivo de, conforme consta da  Proposta de Lei nº 113/XII, aprovada em Conselho de Ministro, em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma e em conjugação com o reforço dos poderes de direção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, se orientar toda a atividade processual «para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».

Estamos, assim, ante uma norma que já não respeita ao erro na forma de processo, mas antes ao erro relacionado com o meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato com vista a evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo.

Daí, em tais circunstâncias, impor-se ao juiz, em lugar do decretamento puro e simples da nulidade do ato, o dever de proceder à sua correção oficiosa, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados [Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 5ª edição, 2018, Almedina, pág. 233.].

Ora, resultando claro ser o conteúdo da pretensão formulada pela autora/recorrida, nas 4ª e 7ª conclusões das suas contra-alegações, adequado ao recurso subordinado, temos por certo impor-se à Senhora Juíza Desembargadora relatora convidar a recorrida a efetuar tal correção ou fazê-lo oficiosamente, por forma a permitir a reapreciação do pedido de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas em sede de julgamento do recurso de apelação.

Porém, não o tendo feito, a verdade é que, neste momento, uma tal convolação já não é suscetível de produzir o efeito pretendido pela ora recorrente.

Com efeito, tendo o acórdão recorrido reconhecido que a autora carecia de legitimidade ativa para instaurar a presente ação, só não tendo decretado a absolvição da ré da instância por ter optado preferencialmente pela decisão do mérito da causa, nos termos do disposto no art. 278º, nº 3 do CPC, e não tendo a autora impugnado, por via do presente recurso, a questão da sua ilegitimidade, evidente se torna que o trânsito em julgado do acórdão recorrido, nesta parte, obsta à reapreciação do referido pedido principal, tornando a requerida convolação na prática de um ato totalmente inútil, não consentido pelo art. 130º do CPC.

Daí inexistir fundamento para ordenar a requerida convolação, improcedendo, nesta parte, o recurso da autora."

[MTS]