Processo de inventário;
remessa das partes para os meios comuns
1. O sumário de RL 10/3/2022 (3136/20.8T8FNC.L1-2) é o seguinte:
I) A Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), veio proceder a uma desjudicialização mitigada do processo de inventário que, antes, era tramitado em todos os seus termos junto dos tribunais judiciais, tendo passado, com tal Lei, a competência-regra para a tramitação deste processo para os cartórios notariais, ressalvados alguns aspetos em que se manteve a intervenção judicial.
II) No âmbito do RJPI, a generalidade das decisões interlocutórias do notário, porque apenas passíveis de impugnação no recurso interposto da decisão da partilha, apenas formam caso julgado material após decorrer o prazo para tal impugnação ou com o trânsito em julgado da decisão que, sobre ela, seja tomada.
III) A decisão recorrida, não se inscrevendo no regime de recurso de decisão notarial tomada no processo de inventário, mas inserindo-se em ação autónoma deste - na sequência da remessa das partes para os meios comuns relativamente a questão que não foi decidida no inventário - não sindicou a decisão notarial que, num primeiro momento considerou tempestivo o exercício do direito pela ora recorrente e, depois, perante reclamação dos demais interessados do inventário, em sede de reclamação sobre o mapa da partilha, veio a remeter a decisão da questão para os meios comuns, por a considerar juridicamente complexa.
IV) Não estando em confronto duas decisões judiciais dotadas de autoridade judicativa, mas a prolação de uma decisão notarial e de uma decisão judicial ulterior atinente ao objeto do processo em apreço, não se mostra violado, por esta última, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional a que se refere o n.º 1 do artigo 613.º do CPC, nem a autoridade do caso julgado, por o Tribunal recorrido apreciar questão que foi remetida para os meios comuns no âmbito do processo de inventário.
V) O direito do cônjuge sobrevivo ao encabeçamento no direito de habitação da casa de morada de família e no uso do recheio da casa, em conformidade com o previsto no artigo 2103.º-A do CC, só opera no “momento da partilha”, pelo que, não estando concluída a partilha, é tempestiva a manifestação de vontade do respetivo titular com vista ao referido encabeçamento, podendo esta ter lugar até ao momento de ser proferido o despacho determinativo da partilha.
VI) Não se encontra, assim, precludido o direito a que se refere o artigo 2103.º-A do CC, se o mesmo não foi manifestado em sede de conferência preparatória ou apenas o foi em sede de pronúncia das partes sobre a forma à partilha em conformidade com o previsto nos n.ºs. 1 e 2 do artigo 57.º do RJPI, mas, ainda, em momento anterior ao da decisão sobre a partilha.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"[...] resulta da informação colhida junto do cartório notarial e junta aos presentes autos em 07-04-2021 (cfr. fls. 129-130 dos presentes autos) que:
“(…) A nossa decisão foi no sentido de, atendendo ao normativo legal (artigo 2103.º-A do Código Civil) e o entendimento doutrinal, atender àquela pretensão, adjudicando à viúva o direito de habitação do prédio urbano. Foi, nesse pressuposto, dado despacho sobre a forma da partilha.No dia 17/04/2019, os herdeiros BB, CC, DD e EE impugnaram, por recurso, o despacho sobre a forma à partilha (nos termos do artigo 57.º da Lei n.º 23/2013), sendo exercido o respetivo contraditório pela herdeira AA, conforme requerimento apresentado nos autos de inventário no dia 17/05/2019.Por decisão proferida no dia 23/09/2019 pelo Tribunal Judicial ... – Juízo de Competência Genérica ..., foi indeferida a indicada impugnação.Retomados os autos a 20/02/2020 foi elaborado o mapa da partilha, contra o qual foi apresentada reclamação, no dia 09/03/2020, pelos indicados herdeiros, BB, CC, DD e EE. Face esta impugnação, foi proferido despacho no dia 16/04/2020, remetendo as partes para os meios comuns, por estar em causa uma questão complexa que, do ponto de vista jurídico, extravasa a competência deste Cartório Notarial.No dia 17/08/2020 foi intentada, pelos reclamantes BB, CC, DD e EE, ação judicial, que deu origem ao processo 3136/20..... Por considerarmos que a decisão que será proferida nesses autos judiciais influirá, diretamente, na partilha, foi ordenada a suspensão do processo de inventário (…)”.
A decisão recorrida, atento o exposto, considerou prejudicada a alegação apresentada de violação do caso julgado, ponderando o objeto da alegação apresentada e o decidido quanto à competência para o conhecimento das questões precedentemente apreciadas pelo Tribunal recorrido.
Ora, não nos parece que este juízo, tomado no concreto conspecto referenciado dos autos recorridos, mereça alguma censura.
De facto, importa sublinhar que não está em questão, relativamente ao thema decidendum da decisão recorrida, algum recurso relativamente à decisão notarialmente dada. A decisão recorrida insere-se, antes e contrastantemente, no âmbito de uma ação autónoma face ao processo de inventário, tendo tido por génese, precisamente, a remessa das partes para os meios comuns relativamente a questão que não foi decidida no inventário (a da reclamação apresentada pelos interessados BB, CC, DD e EE contra o mapa da partilha).
E, neste sentido, não se pode concluir que possa o Tribunal recorrido sindicar – fora do mecanismo de impugnação de decisões, que constitui o sistema recursório – o sentido da decisão do Cartório Notarial que, num primeiro momento considerou tempestivo o exercício do direito pela ora recorrente e, depois, perante reclamação dos demais interessados do inventário, em sede de reclamação sobre o mapa da partilha, veio a remeter a decisão da questão para os meios comuns, por a considerar juridicamente complexa.
Esse recurso foi interposto pelos mencionados interessados BB, CC, DD e EE e deu origem ao processo que correu termos no Tribunal Judicial ... – Juízo de Competência Genérica ... – Processo n.º 160/19.....
Neste sentido, a questão que se coloca é a de saber se ocorre exceção de caso julgado ou se encontrava esgotado o poder jurisdicional do juiz do Tribunal recorrido para apreciar a questão atinente ao pedido deduzido pelos autores dos presentes autos, na alínea e) do petitório (sendo que, quanto às demais alíneas b), c), d), f), g) e h) do pedido formulado na petição inicial, o Tribunal recorrido se julgou incompetente, decisão essa que, não foi, de algum modo, colocada em crise) face à decisão previamente tomada pelo Notário?
Ora, neste ponto, cumpre considerar o seguinte:
1.º) Desde logo, não estão em confronto duas decisões judiciais dotadas de autoridade judicativa, mas sim, a prolação de uma decisão notarial, contingente ou passível de recurso a interpôr com o que seja interposto da decisão homologatória da partilha, e uma decisão judicial ulterior, relativamente à qual não se encontrava esgotado algum poder jurisdicional, antes de inscrevendo no objeto do processo em apreço, por o Tribunal recorrido apreciar questão que foi remetida para os meios comuns no âmbito do processo de inventário;2.º) O recurso interposto relativamente ao despacho sobre a forma à partilha, em conformidade com o disposto no artigo 57.º, n.º 4, do RJPI, não obteve provimento, não colidindo com o objeto do presente processo (cfr. fls. 125 a 128 dos presentes autos), não violando o conhecimento operado pelo Tribunal recorrido com o caso julgado;3.º) A decisão determinativa da remessa das partes para os meios comuns sobre a questão que foi suscitada no inventário, não colide com o âmbito da decisão proferida pelo Tribunal recorrido (nem com a mesma colide a decisão tomada em julho de 2020, no processo n.º 160/19...., do Juízo de Competência Genérica ... – cfr. fls. 151-152 dos presentes autos), sendo que, relativamente àquela foi proferido precisamente despacho de remessa para os meios comuns e declarado suspenso o processo de inventário, pelo que, ficou este a aguardar a decisão que o Tribunal viesse a tomar sobre a mesma, não comportando o conhecimento efetuado pelo Tribunal recorrido, violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
Em face do exposto, podem retirar-se as seguintes conclusões:
- A Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), veio proceder a uma desjudicialização mitigada do processo de inventário que, antes, era tramitado em todos os seus termos junto dos tribunais judiciais, tendo passado, com tal Lei, a competência-regra para a tramitação deste processo para os cartórios notariais, ressalvados alguns aspetos em que se manteve a intervenção judicial;- No âmbito do RJPI, a generalidade das decisões interlocutórias do notário, porque apenas passíveis de impugnação no recurso interposto da decisão da partilha, apenas formam caso julgado material após decorrer o prazo para tal impugnação ou com o trânsito em julgado da decisão que, sobre ela, seja tomada;- A decisão recorrida, não se inscrevendo no regime de recurso de decisão notarial tomada no processo de inventário, mas inserindo-se em ação autónoma deste - na sequência da remessa das partes para os meios comuns relativamente a questão que não foi decidida no inventário - não sindicou a decisão notarial que, num primeiro momento considerou tempestivo o exercício do direito pela ora recorrente e, depois, perante reclamação dos demais interessados do inventário, em sede de reclamação sobre o mapa da partilha, veio a remeter a decisão da questão para os meios comuns, por a considerar juridicamente complexa; e- Não estando em confronto duas decisões judiciais dotadas de autoridade judicativa, mas a prolação de uma decisão notarial e de uma decisão judicial ulterior atinente ao objeto do processo em apreço, não se mostra violado, por esta última, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional a que se refere o n.º 1 do artigo 613.º do CPC, nem a autoridade do caso julgado, por o Tribunal recorrido apreciar questão que foi remetida para os meios comuns no âmbito do processo de inventário.
Nestes termos, conclui-se que a questão enunciada deve receber resposta negativa, não se afigurando que a decisão recorrida tenha violado o princípio do esgotamento do poder jurisdicional ou a autoridade do caso julgado."
[MTS]