"O objeto da presente revista (a correr termos, lembra-se, num apenso de verificação e graduação de créditos duma ação especial de insolvência) – o mesmo é dizer, o foco da divergência recursiva da recorrente – circunscreve-se à questão do lugar que o crédito reconhecido à recorrente deve ter na parte em que na decisão se procede à graduação de todos os créditos reconhecidos, questão cujo desfecho depende essencialmente da qualificação jurídica do crédito reconhecido à recorrente: como comum, como foi considerado pelas instâncias, ou como garantido por direito de retenção (nos termos do art. 755.º/1/f) do C. Civil), como é sustentado pela recorrente.
Podemos, pois, dizer, abreviando e simplificando, que a questão que cumpre solucionar está em saber/dizer se deve ou não ser reconhecido à recorrente o direito de retenção (se o seu crédito goza do direito de retenção, com a consequente prevalência decorrente do art. 759.º/2 do C. Civil). [...]
[...] em síntese, a propósito da impugnação da FF, está já decidido – estando de todo vedado a este Supremo proceder a qualquer tipo de reapreciação sobre tais matérias – que o contrato-promessa estava já resolvido quando foi declarada a insolvência da promitente-vendedora[---], que houve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido e que o crédito de tal impugnante ascende ao montante reconhecido de € 275.000,00.
E estando isto, sem censura, decidido, entenderam as Instâncias que, para ser reconhecido o direito de retenção à impugnante (garantindo o crédito que lhe foi reconhecido), tinha esta que demonstrar a sua qualidade de consumidora e, uma vez que a mesma (sendo tal demonstração do seu ónus da prova) o não fez, concluíram, identicamente, que o crédito da impugnante não goza de direito de retenção (nos termos do art. 755.º/1/f) do C. Civil) e, em consequência, que é um crédito comum, tendo como tal sido graduado.
Concluíram identicamente, repete-se, mas seguiram um percurso não totalmente sobreponível.
O acórdão recorrido limitou-se a observar que são ao caso aplicáveis “as orientações que fizeram vencimento nos dois referidos Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência [AUJ 4/2014 e AUJ 4/2019], sendo a posição correta, por parte das instâncias, o acatamento da jurisprudência uniformizada”, pelo que, não tendo a impugnante demonstrado a sua qualidade de consumidora (na aceção do AUJ 4/2019), “sem necessidade de outras considerações”, confirmou a sentença recorrida.
A 1.ª Instância procurou fundamentar a sua conclusão na própria interpretação do art. 755.º/1/f) do C. Civil, argumentado que “a solução introduzida pelo Decreto-lei n.º 236/80 de 18 de julho [ou seja, a concessão do direito de retenção ao beneficiário da promessa] teve uma razão de ser fundamental: a proteção dos particulares no mercado da habitação, procurando garantir a aquisição definitiva de habitação em virtude de as instituições financeiras, como profissionais, se poderem precaver através de critérios de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”; “que a norma do artigo 755º/1/f) do Código Civil é uma norma material de proteção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele”; e que tal entendimento – segundo o qual a al. f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil conduz a que “apenas se encontre protegido pela prevalência conferida pelo direito de retenção o promissário da transmissão de imóvel que, obtendo a tradição da coisa, seja simultaneamente um consumidor” – foi sufragado no AUJ 4/2014, de 20/03/2014, e, posteriormente, no AUJ 4/2019, de 12/02/2019, que acolheu o conceito restrito e funcional de consumidor.
Pois bem, que dizer?
Em 1.º lugar, que a hipótese dos autos é diferente da hipótese sobre que se debruçou o AUJ 4/2014, de 20/03/2014, razão pela qual não pode ser dito ser ao caso dos autos aplicável o segmento uniformizador “tirado” em tal AUJ 4/2014.
Repare-se que em tal segmento uniformizador se disse (uniformizando a jurisprudência) que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, ou seja, um dos pressupostos da uniformização constante de tal segmento é, repete-se, não ter sido o contrato-promessa cumprido pelo administrador de insolvência e, como é evidente, só se pode dizer que um AI não cumpre o contrato-promessa quando o AI ainda está em condições de o poder cumprir, o que já não acontece quando o contrato-promessa, antes da declaração de insolvência (antes do AI assumir os seus poderes de administração), cessou por resolução (o que já não acontece quando o AI, ao assumir os seus poderes de administração, já não tem nem o que cumprir nem o que não cumprir, por o contrato-promessa estar já em “relação de liquidação”).
Interpretação esta que nada tem de especioso: como claramente resulta da fundamentação de tal AUJ 4/2014, tal pressuposto do segmento uniformizador – não ter sido o contrato-promessa cumprido pelo AI – está associado à discussão havida no AUJ sobre a interpretação/articulação do que se dispõe nos arts. 102.º/1 e 106.º/1 do CIRE.
Como resulta do art. 102.º/1 do CIRE, ficam sujeitos ao princípio geral da suspensão do cumprimento aí estabelecido, os contratos bilaterais (como é, fora de dívida, o caso dos contratos de promessa de compra e venda) que ainda não tenham sido integralmente cumpridos nem pelo insolvente nem pela outra parte; podendo/devendo assim dizer-se, “a contrario sensu”, que ficam excluídos do regime de suspensão de cumprimento os contratos que tenham sido, previamente à declaração de insolvência, resolvidos com fundamento em incumprimento por uma das partes, como é/foi o caso do contrato-promessa da aqui impugnante/recorrente.
Sendo apenas em relação aos contratos/negócios ainda não integralmente cumpridos, mas que ainda são passíveis de o poder ser[---] (por, designadamente, não estarem resolvidos) – em relação aos contratos/negócios “em curso” na expressão da epígrafe do Capítulo IV do CIRE – que, depois, licitamente[---], o AI pode recusar o cumprimento, com exceção, quanto aos contratos-promessa ainda em curso, daqueles que tenham eficácia real e em que tenha havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador (hipótese em que não pode haver recusa por parte do AI, como resulta do art. 106.º/1 do CIRE),
E sendo apenas em relação a tais contratos-promessa em curso, e em que seja lícita a recusa do cumprimento por parte do AI, que se dirige a uniformização jurisprudencial do AUJ 4/2014, pelo que, encurtando razões, o segmento uniformizador em causa não é ao caso dos autos aplicável por o contrato-promessa em que a recorrente é promitente-compradora já não ser, quando da declaração de insolvência da promitente-vendedora, um “negócio em curso”.
Em poucas palavras, em linha com a jurisprudência dominante neste Supremo[---]: a uniformização de jurisprudência constante do AUJ 4/2014[---] não é diretamente aplicável às situações em que estamos, como sucede no caso dos autos, perante contratos-promessa que foram resolvidos antes da declaração de insolvência da promitente-vendedora.
O que não impede, evidentemente, que (sem ser por direta aplicação do AUJ 4/2014) não se possa (ou deva) chegar à mesma solução e que, identicamente, não se considere, em relação aos contratos-promessa resolvidos antes da declaração de insolvência, que, para ser reconhecido o direito de retenção ao promitente-comprador, tem que ficar demonstrada a sua qualidade de consumidor (e na aceção restrita sufragada no AUJ 4/2019).
Não é, porém, este o nosso entendimento (mais uma vez de acordo com a referida jurisprudência dominante deste Supremo).
Vejamos:
O AUJ 4/2014 – o que nele se discutiu e decidiu – gerou, como resulta dos inúmeros votos de vencido e das inúmeras declarações de voto, enorme controvérsia no seio dos Exmos. Juízes Conselheiros que, à época, formavam o Pleno das Seções Cíveis[---].
E um dos temas que ali gerou polémica foi exatamente a restrição do direito de retenção (consagrado no art. 755.º/1/f) do CC) ao consumidor.
Deu até lugar a um pedido de nulidade do primitivo AUJ – no qual o segmento uniformizador proposto não restringia o direito de retenção ao consumidor (dizendo tão só que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”) – nulidade que, segundo alguns Conselheiros, devia ser suprida pela retirada da alusão, na fundamentação[---], ao consumidor e não pela inclusão de tal restrição (ao direito de retenção) no segmento uniformizador.
[MTS]