"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2022

Jurisprudência 2022 (57)


Processo de expropriação;
meio processual; arbitragem


I. O sumário de RG 24/2/2022 (134/21.8T8GMR.G1) é o seguinte:

1. Nos termos do disposto no § 2.º do artigo 38º do Decreto-Lei n.º 43335 de 19.11.1960, o valor da indemnização devida ao proprietário, na falta de acordo, será determinado por arbitragem, desde que um dos interessados o requeira, e tal requerimento solicitando a arbitragem impede a propositura de acção nos tribunais competentes sobre o objecto dela.

2. Esta interpretação não ofende o texto Constitucional, nomeadamente o art. 20º,1 CRP.

3. Não obstante, se o particular desprezar a arbitragem que está em curso, e for posteriormente intentar acção no Tribunal competente com o mesmo objecto, estará verificada uma excepção dilatória inominada (inadmissibilidade do meio processual utilizado), que implica a absolvição do réu da instância (artigos 576º,2, 577º e 578º CPC).


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III O teor integral da decisão recorrida é este:

Da inadmissibilidade do meio processual utilizado pelas Autoras

Veio a Ré X – Rede Eléctrica ..., S.A.”, na sua contestação (fls. 11 e ss.) invocar a inadmissibilidade de propositura da presente acção judicial, ao abrigo do disposto no artigo 38º do Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, por estar em curso a realização de arbitragem requerida pela Ré X, à Direcção de Energia e Geologia, nos termos e para os efeitos previstos para o número 2 daquele artigo.

Notificadas, na sequência dos despachos proferidos a 17.01.2021 (fls. 275) e 30.06.2021 (fls. 284) para se pronunciarem sobre a matéria de excepção em apreço, as Autoras nada disseram.

Resulta do teor da certidão do procedimento de arbitragem junta aos autos no dia 14 de Junho de 2021 (fls. 285 e ss. dos autos) pela Direcção-Geral de Energia e Geologia que:

- Por requerimento datado de 30 de Maio de 2016, remetido pela X – Rede Eléctrica ..., S.A. ao Sr. Director Geral de Energia e Geologia, foi requerida arbitragem, a realizar após a conclusão dos trabalhos, para fixação do valor da indemnização a liquidar a R. N. e a M. N., na qualidade de comproprietárias do …Prédio n.º .. – Terreno rústico, com aptidão e uso florestal, localizado em tapada, na freguesia de ..., do concelho de ..., compreendido entre os apoios nºs 34 e 35, onde será constituída uma faixa de protecção de 2319m2 em terreno com inclinação compreendida entre 10% e 15%, ocupado com povoamento de eucaliptos 2º corte de regeneração natural, com algumas falhas, contabilizando-se vários eucaliptos com (Diâmetro à Altura do Peito) DAP entre 10 e 20.

- Foi remetida pela Direcção-Geral de Energia e Geologia, a R. N. e a M. N., a carta subscrita pela Sr.ª Directora dos Serviços de Energia Eléctrica, datada de 17 de Junho de 2016, cujo teor se reproduz a fls. 294 dos presentes autos, onde, entre outras coisas, se deu conta de que foi requerida pela X – Rede Eléctrica ..., S.A. a arbitragem destinada a fixar a indemnização a satisfazer pelos prejuízos causados com a instalação da linha aérea Terras Altas de ... – ..., para a futura subestação de ...… no prédio mencionado no parágrafo anterior, e solicitando que indicassem …nome e morada do árbitro que representará V. Ex. na respectiva Comissão Arbitral.

- Por carta registada com A/R, datada de 14 de Julho de 2016, subscrita por M. C., na qualidade de Procuradora de R. N. e M. N., remetida à Direcção-Geral de Energia e Geologia, com o teor que se reproduz a fls. 188 dos presentes autos, foi, entras coisas: negada a existência de Convenção de Arbitragem entre as partes; invocada …a nulidade da mesma V/ “Convenção de Arbitragem” nos termos e para os efeitos da legislação aplicável, nomeadamente nos do artigo 3º da Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro (…); declarado que …em face do exposto, não indicaremos Árbitro algum para a V/ Comissão Arbitral (…); e que …iremos, isso sim, intentar Acção Judicial no respectivo Tribunal Estadual.

Entre as normas jurídicas aplicáveis à questão em apreço temos, em primeira linha, o artigo 38º do Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, com o seguinte teor:

O valor das indemnizações será determinado de comum acordo entre as duas partes e, na falta de acordo, poderá ser fixado por arbitragem, desde que assim o requeira um dos interessados. (…)

§ 2.º O requerimento solicitando a arbitragem impede a propositura de acção nos tribunais competentes sobre o objecto dela, mas a arbitragem não terá lugar se, quando for requerida, já houver acção pendente acerca do mesmo objecto.

A norma em apreço encontra-se integrada no DL n.º 43335 de 19.11.1960, regulador da Lei n.º 2002 de 26.12.1944 que definiu a doutrina dentro da qual se enquadra a execução da política nacional de electrificação.

Como anuncia o preâmbulo do DL n.º 43335, prevê-se a imposição aos proprietários, com algumas restrições, o dever de suportar a servidão de passagem das linhas, mediante justa indemnização dos prejuízos causados.

O supracitado artigo 38º do DL n.º 43335 é claro quando determina a realização da arbitragem …na falta de acordo (…) desde que assim requeira um dos interessados… (sublinhados meus).

Aí se prevê também (cfr. § 2.º) que a mera apresentação daquele requerimento por um dos interessados, … solicitando a arbitragem impede a propositura de acção nos tribunais competentes sobre o objecto dela (sublinhados meus).

Isto significa que estamos perante um procedimento legal de arbitragem que se realiza na falta de acordo das partes, a requerimento de apenas uma delas, contrariamente à Convenção de arbitragem que constitui acordo voluntário prévio, sujeito a forma escrita, pelo qual as partes acordam entre si sujeitar a apreciação de determinado litígio a um ou vários (em número ímpar) árbitros independentes e imparciais (cfr. artigos 1º, 2º, 8º e 9º da Lei da Arbitragem Voluntária – Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro).

A arbitragem prevista pelo artigo 38º do DL 43335 de 19.11.1960, requerida pela X, é uma arbitragem decorrente de lei especial que, como a própria norma prevê, se despoleta a impulso de um dos interessados, distinta do regime jurídico da Lei da Arbitragem Voluntária – Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro, pelo que R. N. e M. N. não encontram respaldo no artigo 3º da mesma L.A.V. para oporem nulidade, por falta de acordo, ao procedimento de arbitragem em curso na Direcção-Geral de Energia e Geologia.

O entendimento acabado de apresentar não é inédito, tendo sido sufragado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, relatado pelo Juiz Desembargador Moreira do Carmo no processo n.º 6500/16.3T8VIS.C1 (in www.dgsi.pt), sumariado pelo seu relator nos seguintes termos: (…)

2. No tocante a servidões administrativas de linhas eléctricas e atribuição da respectiva indemnização mantêm-se em vigor as disposições do DL 43.335, de 19.11.1960, designadamente o seu art. 37º.

3. Em caso de desacordo sobre o montante a atribuir o art. 38º do mesmo DL faculta aos interessados recurso a arbitragem.

4. Requerida a arbitragem, fica impedida a propositura de acção nos tribunais sobre o objecto dela, assim como a arbitragem não terá lugar se, quando for requerida, já houver acção pendente acerca do mesmo objecto.

 5. O requerimento para a arbitragem apresentado por um interessado à DGEG (Direcção Geral de Energia e Geologia) dá início ao processo arbitral, a ser conduzido por tal entidade, não sendo obrigatório a prévia concordância do outro interessado(s) ou prévia notificação ao mesmo(s). [...]

 Razões pelas quais se entende que, face ao preceito legal do § 2.º do artigo 38º do Decreto-Lei n.º 43335 de 19.11.1960, as Autoras estão impedidas de propor a presente acção judicial, por força da precedência do procedimento de arbitragem requerido pela X à Direcção Geral de Energia e Geologia.

Deste modo, a propositura da presente acção comum declarativa constitui meio processual vedado por lei às Autoras para fazerem valer o direito indemnizatório alegadamente titulado.

Termos em que, declaro verificada a excepção dilatória inominada da inadmissibilidade do meio processual utilizado pelas Autoras para fazerem valer o direito fundado na factualidade que constitui a causa de pedir da presente acção, absolvendo as Rés da instância (cfr. artigos 576º, n.º 2, 577º e 578º, todos do CPC).

Custas pelas Autoras, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário.

Registe e notifique”.

IV Conhecendo do recurso.

Cumpre então averiguar se, face ao preceito legal do § 2.º do artigo 38º do Decreto Lei n.º 43335 de 19.11.1960, as autoras estavam impedidas de propor a presente acção judicial, por força da precedência do procedimento de arbitragem requerido pela X à Direcção Geral de Energia e Geologia.

Vejamos então o texto legal de onde resultou o presente litígio e de onde irá emergir a solução:

Art. 38.º
 
O valor das indemnizações será determinado de comum acordo entre as duas partes e, na falta de acordo, poderá ser fixado por arbitragem, desde que assim o requeira um dos interessados.
§ 1.º A faculdade de requerer a arbitragem cessa um ano depois da data em que tiver sido efectuada pela fiscalização do Governo a primeira vistoria das linhas referidas no artigo anterior.
§ 2.º O requerimento solicitando a arbitragem impede a propositura de acção nos tribunais competentes sobre o objecto dela, mas a arbitragem não terá lugar se, quando for requerida, já houver acção pendente acerca do mesmo objecto.
 
O texto do preceito legal não é particularmente feliz: o legislador começa por dar a entender que quer que o valor da indemnização seja, de preferência, determinado por acordo das partes, e, na falta de acordo, basta que só um dos interessados requeira a fixação por arbitragem, para ser esse o meio seguido. Mas do parágrafo segundo, com uma redacção ainda menos feliz, resulta que, afinal, seguir-se-á a arbitragem ou uma acção nos tribunais competentes, consoante a primeira a ser instaurada.

Tal como se afirma na decisão recorrida, do teor da certidão do procedimento de arbitragem junta aos autos no dia 14 de Junho de 2021 (fls. 285 e ss. dos autos) pela Direcção-Geral de Energia e Geologia resulta que, e agora em síntese, em 30 de Maio de 2016 foi requerida arbitragem pela X, a realizar após a conclusão dos trabalhos, para fixação do valor da indemnização a liquidar a R. N. e a M. N., as ora recorrentes. E resulta ainda que a Direcção-Geral de Energia e Geologia remeteu-lhes carta solicitando que indicassem “…nome e morada do árbitro que representará V. Ex. na respectiva Comissão Arbitral”. E em resposta, as ora recorrentes vieram invocar a nulidade da referida “Convenção de Arbitragem”, declararam que não irão indicar Árbitro algum, e que irão isso sim, intentar acção judicial no respectivo Tribunal Estadual.

Daqui já resulta que, se as ora recorrentes afirmaram na altura que não queriam arbitragem e por isso não iriam sequer indicar o seu árbitro para a comissão arbitral, mas que iriam, sim, intentar acção judicial no respectivo Tribunal Estadual, então é óbvio que a arbitragem foi requerida antes de ter sido proposta qualquer acção judicial com o mesmo objecto, pelo que, nos termos da disposição legal supracitada, teria ficado impedida a propositura da acção nos Tribunais Estaduais.

E, com efeito, a acção judicial foi intentada em 19.12.2016, data em que já fora apresentado o requerimento solicitando a arbitragem, o que, por força da lei citada, impede a propositura de acção nos tribunais competentes sobre o objecto dela.

Tudo isto parece linear, sem qualquer complicação que se vislumbre.

As recorrentes vêm alegar nas conclusões j), k) e r) que o Tribunal andou mal na interpretação e aplicação que fez do parágrafo 2º do citado art. 38º. Mas não conseguimos entender a lógica das recorrentes. Elas afirmam que sempre poderiam ter intentado a acção judicial que intentaram, não ficando coarctada a sua liberdade e o seu direito de acesso aos Tribunais. Mas, como já vimos, isso vai directamente ao arrepio do parágrafo segundo supra citado, que, apesar de redigido de forma ínvia, é claro ao estatuir que o litígio será resolvido por arbitragem ou por acção judicial consoante a primeira via a ser intentada.

E assim, é incontroverso do que resulta dos autos que a arbitragem foi requerida em 30 de Maio de 2016, pela X – Rede Eléctrica ..., S.A. E é igualmente incontroverso que as ora recorrentes se recusaram a indicar árbitro para a Comissão Arbitral, anunciando ao invés que iriam intentar acção em tribunal estadual, o que fizeram cerca de 7 meses depois.

É linear que a arbitragem foi intentada muito antes da acção judicial, e que ficou paralisada por culpa exclusiva das ora recorrentes, que não colaboraram com a mesma.

Assim, a argumentação das recorrentes, no sentido de um qualquer erro interpretativo do Tribunal recorrido, não colhe, manifestamente."

[MTS]