"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/11/2022

Jurisprudência 2022 (75)


Competência internacional;
critério da coincidência; pacto de jurisdição*


1. O sumário de STJ 30/3/2022 (1457/20.9T8STR.E1.S1) é o seguinte:

I. - A ação em que se peticiona o pagamento do preço de compra de imóveis tendo como causa de pedir a nulidade da declaração confessória de pagamento/recebimento do preço não se inscreve nas ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 70.º, Cód. Proc. Civil.

II. - Para a aplicação do critério da causalidade, previsto al. b) do artigo 62.º do Cód. Proc. Civil, exige-se que os factos integrantes da causa de pedir tenham sido praticados em território português.

III. - Para aplicação do critério da necessidade, previsto na al. c) do art. 62 do CPC exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

IV. - A circunstância de os representantes de uma sociedade brasileira e os réus eventualmente residirem em Portugal não satisfaz as exigências do princípio da necessidade do art. 62 al. c) do CPC quando a declaração de pagamento e recebimento do preço que se pretende anular com a ação foi proferida em escritura pública realizada num cartório notarial brasileiro e em que a declarante/contraente vendedora uma sociedade brasileira. A comodidade de a ação ser proposta em Portugal exorbita o princípio da necessidade e apenas poderia ser fundamento a que as partes estabelecem [sic] um pacto privativo de jurisdição nos termos do art. 94 do CPC caso se respeitassem os requisitos aí prescritos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Apreciando o mérito do recurso, a competência internacional consiste na atribuição do poder de julgar aos tribunais portugueses, no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros e a questão apenas se suscita quando uma causa concreta revele alguma conexão com outra ordem jurídica estrangeira. Se qualquer dos seus elementos como sejam, as partes, o pedido, ou a causa de pedir tiverem somente conexão com uma ordem jurídica o problema não se coloca. Existindo essa conexão, importará ainda decidir se uma determinada questão deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou pelos tribunais estrangeiros, isto é, a competência internacional dos tribunais portugueses incide sobre as situações que apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

Sem embargo dos casos em que o nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade de a justiça de outro Estado ser igualmente competente para julgar a causa numa aceitação de competência concorrente, podendo a prestação jurisdicional estrangeira ser incorporada nacionalmente através dos mecanismos de revisão de decisão estrangeira, outros casos são estabelecidos (no art. 63 do CPC) em que a autoridade judiciária portuguesa é a competente de forma absoluta, excluindo-se a competência de outra autoridade judiciária estrangeira. Isso significa que, para os processos indicados no referido dispositivo legal, a lex fori reconhece como internacionalmente competente apenas os seus juízes e tribunais, impedindo o reconhecimento da decisão estrangeira.

Centrando a atenção na competência internacional concorrente - a que admite a possibilidade de ocorrência de atividade jurisdicional paralela à exercida pela jurisdição nacional a respeito da mesma causa - podendo cada país estabelecer os elementos de conexão que considere relevantes para se atribuir a competência para julgar determinados litígios, dispõe o art. 59 do CPC que sem prejuízo do firmado em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os tribunais são competentes internacionalmente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos no art. 62º CPC e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94º CPC.

O art. 62 al. a) fixa o critério da coincidência: é atribuída competência internacional aos tribunais portugueses, quando a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência internacional estabelecidas em lei portuguesa e tais regras (da competência internacional) constam do art. 70 e ss CPC. Quando de acordo com as regras da competência territorial previstas na ordem interna, a ação deva ser instaurada em Portugal, os tribunais portugueses terão competência internacional para julgar essa ação, mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Assim, conforme a alínea a) do art. 62 conjugada com o que dispõe do art. 70 do CPC, as ações relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis devem ser propostas no tribunal da situação dos bens. Se os bens estão situados em Portugal, os tribunais portugueses terão competência, não só interna, como internacional, por aplicação do referido princípio da coincidência. Se o elemento de conexão utilizado na norma de competência territorial apontar para um lugar situado no território português os tribunais portugueses competentes são internacionalmente competentes - Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, t. I, AAFDL Ed., 2019, p. 337.

Um outro critério é o da causalidade, previsto na al. b) do art. 62 do CPC. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a propositura da ação quando tiver sido praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir ou algum dos factos que a integram.

Por último, o critério da necessidade com regulação na al. c) do art. 62 citado, alcança não só a impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas com as quais ele apresenta uma conexão relevante, como também a impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente. Exige-se que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real e que, segundo o princípio da necessidade, o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável. Configura-se este critério como um último recurso que previne a denegação de justiça que resultaria da circunstância de não ser possível ou ser muito difícil propor uma ação no estrangeiro.

No caso em decisão, discute-se a declaração confessória constante de contratos de compra e venda celebrados no ... entre a autora e o réu marido, declaração que estes querem ver declarada nula. Não se trata de uma ação real, sequer de uma das previstas no nº1 do art. 70 do CPC, antes identifica uma ação de anulação de uma declaração confessória em que se pretende que, continuando o negócio celebrado válido, seja apenas a declaração negocial incidente no pagamento do preço que seja considerada nula, o que afasta o primeiro elemento de conexão estabelecido no art. 62 al. a) do CPC.

Procurando-se nos restantes critérios enunciados nesse preceito se existe entre o objeto do litígio antes delimitado e a ordem jurídica portuguesa algum elemento atributivo de competência adverte-se que a mesmo que a nacionalidade dos representantes da autora e dos réus fosse portuguesa e a sua residência em território português, tal não seria relevante para essa atribuição. A previsão da al. b) desse normativo atribui aos tribunais nacionais competência para julgarem a causa se os factos integrantes da causa de pedir foram praticados em território português – factos esse que podem consistir não só na própria celebração do negócio como também nas negociações tendentes à sua realização ou na aceitação de proposta negocial, desde que estas façam parte do elenco dos factos relevantes que servem a pretensão – cfr. Lima Pinheiro, ob. cit., p. 348 e 349.

No caso em apreciação, o facto essencial, a causa de pedir, é a declaração confessória produzida numa escritura pública de compra e venda celebrada no ..., sendo de todo indiferente a esta causa a nacionalidade das partes envolvidas, a sua residência, o lugar onde tenham ocorrido as negociações tendentes à celebração da aludida escritura, razão para que não se encontre na al. b) do art. 62 do CPC fundamento para considerar o tribunal português como internacionalmente competente.

Por último, a recorrente invoca o critério da necessidade constante da al. c) do normativo em estudo que, como vimos, só terá aplicação quando o “direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.

Para sufrágio desta conexão o recorrente sustenta que tem de reconhecer-se “uma apreciável maior dificuldade na propositura da ação, no ...” e fornece como razão serem os réus e os legais representantes da autora residentes em Portugal. Não seria assim exigível a instauração da ação fora de Portugal porque a conexão pessoal resultante da residência das partes inscreveria a atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses com base no princípio da necessidade.

Como se observa com propriedade na decisão recorrida, não é a circunstância de haver maior comodidade na propositura da ação em Portugal que constitui critério de fixação da competência internacional e menos ainda por critérios de necessidade. Aliás, essa comodidade por razões de conveniência pessoal poderia ter sido prevenida através de um pacto atributivo de competência internacional nos termos e com respeito das prescrições do art. 94 do CPC e não foi. Não sendo o domicílio e a nacionalidade das partes suficientes para determinar a competência internacional de um tribunal português, diz-se ainda por acréscimo que a residência dos representantes das partes não substitui, para efeitos de configuração da nacionalidade e residência, a nacionalidade e a residência da própria parte representada.

Não existe no caso em decisão qualquer alegação de impossibilidade prática decorrente de ocorrências anómalas e impeditivas do funcionamento da jurisdição competente (a brasileira) para que a ação seja julgada em Portugal e sem estas fica afastada qualquer ideia de necessidade atributiva de competência para que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou para que a propositura da ação no estrangeiro representasse para o autor dificuldade apreciável."


*3. [Comentário] Se bem se percebe o caso e salvo o devido respeito, o STJ não enquadrou devidamente a questão da competência internacional dos tribunais portugueses. Possivelmente, o mesmo sucedeu com as partes.

Do relatório do acórdão consta o seguinte:

"Silma - Construções, Comércio e Serviços, Ltda., pessoa coletiva de direito brasileiro, intentou a presente ação contra AA, e mulher BB, pedindo que seja declarada a nulidade da declaração confessória constante dos contratos de compra e venda celebrados no ... entre a A., Silma, Ltda. e o Réu marido, nos termos da qual a A. afirmou: “pelo preço certo e ajustado de … importância essa recebida do outorgado comprador, … em moeda corrente nacional, pelo que dão plena e geral quitação de pago e recebido …”, e os Réus condenados a pagarem-lhe a quantia de € 509.815,98, dos quais € 420.000,00 relativo ao preço da venda dos imóveis, acrescido de € 16.800,00 de juros e a que acrescem juros de mora vincendos, à taxa legal, contados desde 26 Junho de 2020.

Alegou que vendeu ao R. imóveis constando da respetiva escritura que o preço foi recebido quando, afinal e por erro sobre os motivos, o não foi.

Os RR. contestaram invocando a violação do pacto privativo de jurisdição, por preterição da convenção do foro brasileiro como o competente para dirimir o conflito, nos termos acordados na cláusula 9.ª do contrato de sociedade de conta em participação – SCP."

Nas alegações de recurso, a Autora afirma o seguinte:

"4. Tendo a A. todos os seus legais representantes residentes em Portugal e sendo os Réus também residentes em ... é de concluir que se verifica para a A. uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, uma vez que seriam necessárias viagens prolongadas ao ....".

Disto pode concluir-se o seguinte:

-- Os réus têm residência em Portugal (também confirmado pelo n.º IV do sumário);

-- A Autora pediu que fosse "declarada a nulidade da declaração confessória constante dos contratos de compra e venda celebrados no ... entre a A., Silma, Ltda. e o Réu marido";

-- As partes celebraram um pacto pelo qual atribuíram competência aos tribunais brasileiros para dirimir os conflitos surgidos no âmbito do contrato de conta em participação.

Perante isto, não deixa de ser estranho que:

-- O STJ afirme o seguinte: "No caso em decisão, discute-se a declaração confessória constante de contratos de compra e venda celebrados no ... entre a autora e o réu marido, declaração que estes querem ver declarada nula. Não se trata de uma ação real, sequer de uma das previstas no nº1 do art. 70 do CPC, antes identifica uma ação de anulação de uma declaração confessória em que se pretende que, continuando o negócio celebrado válido, seja apenas a declaração negocial incidente no pagamento do preço que seja considerada nula, o que afasta o primeiro elemento de conexão estabelecido no art. 62 al. a) do CPC."; a verdade é que, atendendo ao pedido formulado pela Autora e à circunstância de os réus terem domicílio em Portugal, teria tido aplicação o critério da coincidência (art. 62.º, al. a), e 80.º, n.º 1, CPC);

-- O STJ tenha discutido a aplicação dos critérios da causalidade e da necessidade, quando o que devia ter discutido era a validade e aplicabilidade do pacto de jurisdição celebrado pelas partes.

MTS