Produção antecipada da prova:
âmbito de aplicação
I - Pode ser requerido um procedimento cautelar comum para preservar o estado de coisas – trabalhos realizados pela requerente – que terá de ser submetido a prova, de modo a possibilitar a produção antecipada de prova de pressupostos do direito de crédito ao pagamento dos trabalhos realizados.
II – Isto porque a produção antecipada da prova, sujeita a contraditório, daria conhecimento à requerida da pretensão da requerente e, com isso, a possibilidade de alterar aquele estado de coisas, impossibilitando ou dificultando em muito aquela produção da prova.
III - O tribunal judicial é competente para o conhecimento de tal procedimento cautelar, mesmo que exista uma convenção para resolver por árbitros os litígios que surgissem entre as partes (artigos 7 e 29 da LAV).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O tribunal recorrido declarou a sua incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral voluntário.
Visto que o que foi pedido foi uma providência cautelar, a declaração de incompetência em causa quer dizer que o tribunal recorrido considera que só o tribunal arbitral pode decretar providências cautelares relativamente a processos que tenham de correr num tribunal arbitral.
O artigo 7 da Lei da Arbitragem Voluntária dispõe que “Não é incompatível com uma convenção de arbitragem o requerimento de providências cautelares apresentado a um tribunal estadual, antes ou durante o processo arbitral, nem o decretamento de tais providências por aquele tribunal.” E o art. 29 da mesma Lei acrescenta que: “Os tribunais estaduais têm poder para decretar providências cautelares na dependência de processos arbitrais, independentemente do lugar em que estes decorram, nos mesmos termos em que o podem fazer relativamente aos processos que corram perante os tribunais estaduais.”
Sendo assim, a decisão recorrida está errada, pois que a lei impõe a conclusão contrária àquela que tirou.
Repare-se, aliás, que a requerida nem sequer punha em causa a competência do tribunal para os pedidos cautelares. O que a requerida dizia é que o tribunal não podia convolar a providência num incidente de antecipação de prova, porque não tinha competência para este. Ora, esta questão só se colocaria depois de o tribunal considerar que devia ser feita uma convolação do que foi pedido para o que devia ter sido pedido.
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Mas, formalmente, a argumentação do tribunal recorrido não é esta, mas sim a seguinte: o que a requerente quer é uma produção antecipada de prova e para esta só o tribunal arbitral é competente.
Só que, como se disse, a incompetência do tribunal aprecia-se perante o pedido dos requerentes e não perante aquilo que o tribunal entende que estes deviam querer.
Ou, de outra perspectiva, o tribunal só poderia dizer que era incompetente depois de convolar o pedido da requerente para um pedido de produção antecipada de prova.
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A requerida dizia, no entanto, também, que “era no foro arbitral que eventuais medidas de preservação da prova têm de ser requeridas, nomeadamente em sede de árbitro de emergência, enquanto o tribunal arbitral não estiver constituído.”
Argumentação que também foi seguida pelo tribunal recorrido, no meio da fundamentação da decisão.
Ou seja, agora, segundo a requerida e o tribunal recorrido o que a requerente queria é um procedimento cautelar (de preservação da prova) e esse tem que ser requerido a um árbitro de emergência no tribunal arbitral.
Isto é triplamente contraditório:
(i) Por um lado, diz-se que o que a requerente quer não é uma providência cautelar mas uma produção antecipada de prova e por isso o tribunal judicial não é competente. Mas para se dizer qual era o procedimento a seguir já se diz que o que a requerente quer é uma providência cautelar;(ii) por outro lado, já se viu que o tribunal judicial é competente para decretar providências cautelares, pelo que, só vendo a pretensão da requerente como incidente de produção antecipada de prova é que o tribunal judicial pôde dizer que não era competente para se pronunciar sobre a pretensão da requerente;(iii) terceiro, afinal, para a requerida e para o tribunal judicial a pretensão de conservação de provas consubstancia um procedimento cautelar, quando a tese principal por eles defendida é que a pretensão da requerente é uma produção antecipada de prova.
Pelo que, esta argumentação falha completamente como fundamentação da declaração de incompetência absoluta do tribunal judicial: o tribunal judicial, por força do art. 29 da LAV tem competência para decretar providências cautelares, não sendo essa competência afastada pela regulamentação do árbitro de emergência que não se sobrepõe à lei.
Em suma, não se verifica a incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral (art. 96/-b do CPC).
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O tribunal recorrido não conheceu de outras questões porque a incompetência declarada o impedia, logicamente, de o fazer.
Mas, afastada esta excepção, as outras questões ficam por conhecer e este tribunal de recurso tem que se pronunciar sobre elas se o puder fazer, isto é, se tiver elementos suficientes para o efeito (art. 665/2 do CPC).
O que se justifica particularmente no caso visto que foi essencialmente com base na parte II da oposição da requerida que foi tomada a decisão recorrida.
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A questão inicial que a requerida colocava e que era a questão principal, era que o meio processual adequado à pretensão da requente não era este procedimento cautelar, mas sim o incidente de produção antecipada de prova.
O tribunal recorrido também aderiu a esta fundamentação.
Quer isto dizer que a questão principal – já discutida pelas partes e sobre a qual o tribunal recorrido já se pronunciou – era a da inadmissibilidade da utilização da providência cautelar comum porque havia um outro meio processual adequado à pretensão da requerente, ou seja, o incidente de produção antecipada de provas. Este TRL está pois em condições de decidir esta questão e pode-se desde já avançar que também aqui a requerida não tem nenhuma razão, nem a tem a decisão recorrida.
Aliás, como já se viu acima, a requerida diz expressamente que a pretensão da requerente se traduz uma providência cautelar… embora só no âmbito do processo que viesse/estiver a correr termos no tribunal arbitral.
Só por si isto já indicia que a solução correcta não é esta.
Se se ler a norma que prevê os pressupostos do procedimento cautelar comum – art. 362 do CPC – é nítido que, no caso, todos eles estão reunidos, segundo as alegações da requerente. Se estas alegações de facto não se provarem a pretensão improcede, mas essa é outra questão.
O acórdão do TRL de 2007 e a posição de Abrantes Geraldes seguida por esse tribunal apontam no mesmo sentido. E também aponta claramente no mesmo sentido o ac. do TRG invocado pela requerente, relativamente ao qual a requerida diz que “julgou uma situação absolutamente distinta da dos presentes autos, pois estava em causa a prova dos limites do prédio, o prejuízo ao direito à demarcação “e, por via disso, o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno”, ou seja, estava em causa acautelar um direito e não apenas um meio de prova do mesmo”, o que é uma evidente petição de princípio pois que um dos pontos que se discute, precisamente, neste caso, é se a requerente não pretende acautelar um direito (pela via da preservação do estado de coisas que possibilite a prova dos pressupostos do direito…).
A requerente quer preservar, não a prova, mas o estado de coisas sobre o qual a produção de prova terá de recair. E isso como única forma de poder vir a provar os pressupostos do seu direito de crédito: se esse estado de coisas desaparecer, ela só dificilmente poderá produzir prova sobre os trabalhos que efectivamente realizou, já que a perícia terá, para o efeito, que destruir as obras que entretanto possam ter sido feitas e mesmo assim sabe-se lá se o que ficar a descoberto permitirá a perícia – e por isso estará muito dificultada a produção de prova sobre os pressupostos do seu direito (sendo que é a ela que cabe o ónus da prova do cumprimento da obrigação correspondente ao direito de crédito ao pagamento: art. 342/1 do CC). E muito naturalmente a possibilidade da alteração desse estado de coisas aumentaria exponencialmente se a requerida tivesse conhecimento de ter sido requerida a providência cautelar. O que é mais um argumento para a necessidade da providência cautelar visto que o regime da produção antecipada da prova, com a observância obrigatória do contraditório – art. 420/2 do CPC – daria esse conhecimento à requerida. E, ao mesmo tempo a demonstração de que outras providências – como a antecipação da prova – não são aplicáveis.
Com o que estão demonstrados os pressupostos do procedimento cautelar comum (art. 362/1 do CPC).
Não se trata, pois, repete-se, de preservar a prova, mas sim de preservar/conservar o estado de coisas que permita a produção de prova, até que seja requerida e possibilitada a produção antecipada de prova, pois que, caso esta fosse requerida antes disso, como ela teria que ser precedida de contraditório, ficaria, muito provavelmente, sem efeito útil.
Daí que a posição de Abrantes Geraldes (nas páginas 61 a 70 da obra citada na edição de 1998), bem sintetizada pela requerente, na passagem do requerimento inicial citada acima, seja o espelho da situação dos autos.
E tanto o é que a requerida também o admite implicitamente, ao dizer que “o entendimento de Abrantes Geraldes, referido [pela requerente], não tem aplicação ao caso concreto, porquanto nas decisões jurisprudenciais mencionadas por esse autor, foi a obrigatoriedade de se fazer cumprir o contraditório em sede de produção antecipada da prova que motivou o juiz a decretar a medida cautelar, por considerar que o contraditório inerente àquele incidente tornaria tal diligência infrutífera, na medida em que se esfumariam os vestígios ou as coisas sobre que incidiria a produção de prova. Sucede que, no caso concreto, tal preocupação não tem acolhimento, atento este tribunal ter bem decidido citar previamente a requerida para efeitos de exercício do direito ao contraditório, que agora se exerce.”
Ou seja, a requerida admite que a posição de Abrantes Geraldes tinha aplicação ao caso quando foi requerido o procedimento cautelar, só deixando de o ter por força do despacho judicial que determinou a observância do contraditório.
Ou seja, a situação dos autos, tal como descrita pela requerente – o que não quer dizer que corresponda forçosamente à realidade – era uma situação típica (embora, perante a extensão do requerimento inicial, se possa ter tornado difícil a percepção disso) em que se justificava um procedimento cautelar comum em substituição da produção antecipada de prova, para evitar que a necessária observância do contraditório retirasse toda a eficácia à pretensão da requerente de produzir prova sobre o cumprimento da obrigação para assegurar o direito de crédito.
O despacho do tribunal, ao determinar a citação da requerida, sem acrescentar que se esperasse pelo trânsito de tal decisão (que poderia prejudicar a pretensão da requerente pelo que esta teria que ter o direito de recorrer dela), poderá ter levado à frustração dessa pretensão.
A requerida entende que assim demonstra que ao caso não é aplicável a providência cautelar. Mas é o contrário que se demonstra: se a providência cautelar se justificava, sendo que o despacho judicial posterior pode ter levado ao desaparecimento da justificação, o que importa é que ela, antes de tal despacho, se justificava.
Em suma, o princípio da legalidade das formas processuais (decorrente de uma interpretação lata do art. 362/3 do CPC, e referido, para além de nos acórdãos acima citados, também no ac. do TRE de 07/06/1990, CJ.1990.III, págs. 283-285) de modo algum implica, no caso, que não pudesse ser requerida a providência cautelar destinada a assegurar o estado de coisas sobre o qual a produção de prova terá que recair.
Pelo que, não há razão para dizer que o réu deve ser absolvido da instância pela verificação de uma excepção dilatória inominada (artigos 362/3 e 576/2 do CPC).
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Diz a requerida que é pressuposto da providência cautelar que o prejuízo que o decretar da providência cautelar causaria à requerida não seja manifestamente desproporcional em relação ao prejuízo que a requerente pretende evitar.
Ora, desde logo a afirmação não é correcta, não tendo sequer sido invocada qualquer doutrina ou jurisprudência que a acompanhe.
A questão da desproporção do prejuízo não é um pressuposto do procedimento cautelar comum, mas sim uma válvula de escape que possibilita ao juiz a não aplicação de uma providência cautelar apesar de estarem verificados os pressupostos dela (art. 368/2 do CPC).
O que, por um lado, quer dizer que a aplicação de tal cláusula dependerá da prévia verificação dos pressupostos das providências pedidas, o que implica, quando houver necessidade disso, a produção de prova sobre os factos alegados pela requerente.
E, por outro lado, que em vez da recusa da aplicação das providências, o juiz utilize outros remédios, como por exemplo a aplicação de uma providência menos gravosa que já não implique aquela desproporção (art. 376/3 do CPC) – por exemplo, no caso, a suspensão das obras até que, num prazo razoável, fosse requerida a produção de prova sobre o estado de realização da prestação da requerente (em muito menor medida, por isso, do que as pedidas pela requerente, que seguiu a posição do ac. do TRG que, esta sim, se pode, talvez, considerar demasiado gravosa e que não parece dever ser seguida por desnecessária: a situação só deve ser mantida até ser produzida prova antecipada, não até ser produzida toda a prova) - ou, noutras situações, que a faça depender da prestação de caução (art. 374/2 do CPC) ou a substitua por caução (art. 368/4 do CPC).
Pelo que não há mais este pressuposto das providências.
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Quanto “à inutilidade do procedimento cautelar, porquanto os trabalhos de conclusão da empreitada e demais trabalhos do aldeamento turístico da requerida e que, na tese da requerente, impactariam os trabalhos por si executados foram já (e continuarão a sê-lo) executados”, é também evidente que não é procedente, nem mesmo sob a vertente, agora invocada no recurso, da perda do interesse processual em agir, e muito menos ainda por já haver prova do estado de coisas (pois que a requerente não é obrigada a confiar na prova produzida unilateralmente pela requerida).
Se for como a requerida diz – o que depende de prova a produzir –, poderá vir a concluir-se pela inutilidade superveniente da providência, o que só por si não quer dizer que ela era inútil desde o início.
Ou também pode ser que elas fossem inúteis antes mesmo de serem requeridas, porque os trabalhos já tinham continuado antes disso (o que, aliás, em parte já se sabe ser o caso, porque a requerente assim o disse). Ou que se tenham apenas tornado inúteis por força do despacho judicial que determinou a citação da requerida, sem ter acautelado a hipótese de recurso por parte da requerente contra tal despacho. Mas também tudo isto depende de prova a produzir.
E todas estas hipóteses podem levar a diferentes consequências, nem que seja a nível da distribuição das custas do procedimento, com óbvio interesse para todas as partes, o que implica que o procedimento não pudesse findar sem antes tal ser discutido.
O mesmo se diga, por fim, quanto ao argumento da “narrativa da requerente não corresponde[r] à realidade dos factos.” Está dependente de prova, pelo que nunca poderia levar à improcedência das providências sem antes se produzir a prova.
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A distinção feita por Alberto dos Reis (lembrada pela requerida através do TRE de 25/05/2018, proc. 242/14.1T9TMR.E1), entre os procedimentos cautelares e a produção antecipada de prova estando, evidentemente, certa, não tem nenhum interesse para a questão dos autos. Ou seja, não interessa, por exemplo, lembrar que a produção antecipada da prova não depende do pressuposto do fumus bonis juris, pois que quando se diz isso se está a explicar que o incidente de produção de prova depende da verificação de menos pressupostos; ora, no caso, não se está a discutir a verificação dos pressupostos da produção antecipada da prova."
Nota de actualização: em 12/4/2024 retirou-se o comentário que constava da antiga versão do post.
MTS