"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/11/2022

A aplicação "por metade" do n.º 1 do art. 1437.º CC


1. Um recente acórdão da RL (de 10/11/2022 (1000/22.5T8OER.L1-2)) confronta-se com a interpretação da nova redacção do art. 1437.º, n.º 1, CC. Segundo o sumário do referido acórdão, nele defendeu-se que:

I - São da responsabilidade do condomínio – por força do art. 492/1 do CC ou, provado que este tem a coisa em seu poder, com o poder de a vigiar, por força do art. 493/1 do CC - os danos em bens de terceiro que advém da falta de conservação das partes comuns, excepto se se provar que essas partes comuns estão afectadas ao uso exclusivo de um condómino e o estado delas for imputável a esse condómino, caso em que é este o único responsável (art. 1424/6 do CC).

II - A acção a pedir aquela responsabilidade deve ser intentada contra o Condomínio representado pelo administrador (art. 1437/1 do CC).

2. Qual é o problema que este sumário levanta? Muito simplesmente este: o n.º II do sumário corresponde apenas a metade do disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC, porque este preceito estabelece (na nova redacção) o seguinte: "O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele".

Esta pergunta suscita uma outra: por que razão a RL não aplicou todo o disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC? Por uma razão muito simples, como, aliás, já se referiu em Jurisprudência 2022 (68): não é juridicamente possível aplicar todo o preceito. Na verdade, de duas, uma:

-- Ou a acção é proposta contra o condomínio (parte) representada pelo administrador (representante);

-- Ou a acção é proposta contra o administrador em nome do condomínio, sendo neste caso o administrador o substituto processual (ou seja, a parte presente em juízo) e o condomínio a parte substituída (isto é, a parte não presente em juízo).

Na verdade, um representante que demanda ou é demandado é uma impossibilidade processual e um representante que demandada ou é demandado em nome de outrem é um substituto processual. Lembre-se a lição elementar de Castro Mendes: "Estando a parte representada, parte é o representado, e não o representante. Se A propõe contra B uma acção como tutor de C, partes são C e B" (Castro Mendes, Direito Processual Civil II (1987), 7; a afirmação é naturalmente mantida em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 286).

Efectivamente, o representante de uma pessoa singular ou colectiva nunca pode ser parte, razão pela qual também nunca pode vir a ser demandante ou demandado e, consequentemente, também nunca pode vir a ser absolvido (da instância ou do pedido) ou condenado: numa situação de representação, quem pode ser absolvido ou condenado é apenas o representado. Simetricamente, quem é parte nunca pode ser representante. Em suma: a qualidade de parte e a de representante nunca podem estar reunidas numa mesma pessoa ou entidade.

Disto resulta que a primeira metade do art. 1437.º, n.º 1, CC é incompatível com sua a segunda metade, e vice-versa. No fundo, a primeira metade atribui ao administrador a qualidade de representante do condomínio e a segunda a de substituto processual desse condomínio. É escusado dizer que estas qualidades são mutuamente incompatíveis: o administrador ou está como representante do condomínio (que é a parte demandante ou demandada) ou está como como parte demandante ou demandada e, portanto, como substituto processual do condomínio (que, neste caso, é a parte substituída não presente na acção).

É por isso que, como se afirmou no referido comentário, há que escolher entre aplicar apenas a primeira ou apenas a segunda parte do disposto no n.º 1 do art. 1437.º CC. Afirmar que, como resulta da sua primeira parte, o condomínio é um demandante ou demandado representado pelo administrador e que, como decorre da sua segunda metade, este representante deve demandar e ser demandado em nome daquele condomínio é não só uma impossibilidade processual (o representante nunca pode demandar ou ser demandado), como, a ser tomado à letra o preceito, significa que se constitui um litisconsórcio necessário (!) entre o condomínio demandante ou demandado e o administrador igualmente demandante ou demandado.

Como é que a RL aplicou o n.º 1 do art. 1437.º CC? A resposta é clara: aplicando a primeira metade do preceito e ignorando a sua segunda metade. Importa referir que, no caso concreto, a RL aceitou a legitimidade passiva do administrador na acção de indemnização, mas não -- note-se -- com fundamento na segunda metade do art. 1437.º, n,º 1, CC, mas antes com base no estabelecido nos art. 492.º, n.º 2, e 493.º, n.º 1, CC.

3. No acórdão da RL refere-se que a tese da substituição processual (que era a única compatível com a anterior redacção do art. 1437.º, n.º 1, CC) "foi afastada e [...] não deve continuar a ser seguida, sob pena de se continuar a discutir uma questão com a qual a Lei quis acabar de vez, porque a incerteza dela resultante apenas traz prejuízos para as partes".

Esta afirmação da RL é talvez demasiada optimista. Afirmar que o legislador acabou de vez com uma discussão, quando a própria RL apenas aplica metade do n.º 1 do art. 1437.º CC e quando o preceito só "se salva" através de uma interpretação ab-rogante de uma das suas metades, talvez seja um pouco exagerado.

4. Aparentemente, está a prevalecer na jurisprudência uma interpretação que aplica a primeira parte do art. 1437.º, n.º 1, CC e "esquece" a segunda. Como já se disse. talvez não seja a solução preferível, mas, ao menos, consegue-se encontrar -- é verdade que à custa de uma ab-rogação de metade do preceito -- um campo de aplicação possível para o incompreensível n.º 1 do art. 1437.º CC.

MTS