"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/11/2022

Jurisprudência 2022 (72)


Reg. 2201/2003;
excepção de litispendência


I. O sumário de RG 24//3/2022 (1150/21.5T8CHV.G1) é o seguinte:

1. Em matéria de competência internacional para decidir acções de divórcio, existe no âmbito do direito comunitário o Regulamento nº 2201/2003, de 27.11.2003, que prevalece sobre as normas de competência constantes do CPC.

2. A alegação de que a excepção de incompetência absoluta não foi arguida tempestivamente, pois deveria ter sido invocada em sede de contestação improcede automaticamente, pois a violação das regras da competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

3. É em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal.

4. Verificando-se várias conexões com várias ordens jurídicas, não existe uma qualquer ordenação ou hierarquia entre elas, de onde decorre que o autor pode escolher qualquer uma dessas ordens jurídicas para nela instaurar a acção (forum shopping).

5. Verificando-se uma situação de litispendência entre dois tribunais de países comunitários, aquele em que o processo foi instaurado em segundo lugar deve suspender oficiosamente a instância até ser estabelecida a competência do tribunal português.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Dispõe o art. 59º CPC que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94º”.

Resulta daqui a regra primeira a ter em conta quando se averigua a competência internacional dos tribunais portugueses: ela depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais (vg Conv. de Lugano) ou dos regulamentos europeus sobre a matéria, e depois, da integração de algum dos segmentos normativos dos artigos 62º e 63º, sem embargo da que possa emergir de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do art. 94º (CPC anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa).

Assim, não vale a pena ir perder tempo com a análise dos artigos 62º e 63º CPC, pois no âmbito do direito comunitário existe um Regulamento Europeu aplicável nesta matéria, o Regulamento nº 2201/2003, de 27.11.2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, em vigor desde 1.8.2004. Articula-se com ele o Regulamento nº 1259/2010, de 20.12.2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial.

A ter presente ainda que segundo o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa:

«1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»

Ninguém duvida, pois, do primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional, o que significa que caindo determinada situação no âmbito de aplicação de um determinado Regulamento Comunitário, deverão ser convocadas as normas deste em detrimento das normas de direito interno que regulam a competência internacional (cfr. Dário Moura Vicente, in Direito Internacional Privado, vol. I, página 249 (citado no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/09/2011, processo n.º 546/09.5TMLSB.L1-1, Relator António Santos, in www.dgsi.pt).

Daqui decorre directamente, que, como se refere no Acórdão TRG de 4 de Outubro de 2018 (Elisabete Coelho de Moura Alves), “quando o tribunal português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante, deverá ignorar as regras de competência internacional da lex fori, devendo antes aplicar as regras uniformes do Regulamento (cfr. Mota Campos, in Revista de Documentação e Direito Comparado, nº 22, 1986, pág. 144, citado no Ac. do STJ de 4/3/2010, in www.dgsi.; Ac. R. L. de 20.09.2011 in www.dgsi.pt)”.

Finalmente, se dúvidas houvesse, o art. 72º do próprio Regulamento dispõe “o presente regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia”.

Configura ele, pois, o direito aplicável.

Diga-se ainda, rapidamente, que a violação das regras da competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96º,a CPC), e que a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (art. 97º). Assim, cai pela base qualquer afirmação de que a excepção de incompetência absoluta não foi arguida tempestivamente, pois deveria ter sido invocada em sede de contestação.

O Capítulo II de tal Regulamento trata da Competência. E a Secção 1 trata das questões de Divórcio, separação e anulação do casamento.

art. 3º, que abre essa secção, dispõe:

1. São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
-a residência habitual dos cônjuges, ou
-a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
-a residência habitual do requerido, ou
-em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
-a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
-a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu «domicílio»;
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do «domicílio» comum.
2. Para efeitos do presente regulamento, o termo «domicílio» é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda.

O art. 6º, sob a epígrafe “Carácter exclusivo das competências definidas nos artigos 3º, 4º e 5º”, dispõe que

Qualquer dos cônjuges que:
a) Tenha a sua residência habitual no território de um Estado-Membro; ou
b) Seja nacional de um Estado-Membro ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, tenha o seu «domicílio» no território de um destes dois Estados-Membros, só por força dos artigos 3º, 4º e 5º pode ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro.

É pacífico que é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer (cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 91).

Tal como surge alegado na petição inicial pelo autor, este tem residência em Portugal, a ré e a filha do casal residem em França, e autor e ré têm nacionalidade portuguesa.

A situação tem assim conexão com a ordem jurídica francesa e a ordem jurídica portuguesa.

Como se escreve no acórdão do TRE de 15.12.2016 (Mata Ribeiro), “do art. 3º, nº 1 decorrem três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma acção de Divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual (que por sua vez se subdivide em 4 outros critérios, todos eles outrossim interligados ao conceito de residência habitual) , o outro o da Nacionalidade de ambos os cônjuges, e, finalmente, o terceiro, o do domicilio comum (mas neste caso aplicável apenas ao Reino Unido e Irlanda).

No caso destes autos, tem competência para conhecer da acção de divórcio o tribunal francês, por via do nº 1, alínea a) - a residência habitual do requerido -, e o tribunal português, por força do nº 1, alínea b), por ser o tribunal da nacionalidade de ambos os cônjuges.

E resulta da norma citada que verificando-se várias conexões com várias ordens jurídicas, não existe uma qualquer ordenação ou hierarquia entre elas, de onde decorre que o autor pode escolher uma dessas ordens jurídicas para nela instaurar a acção.

O mesmo se decidiu no acórdão do TRE de 15.12.2016 (Mata Ribeiro), supracitado, e ainda no acórdão do TRG de 17 de Dezembro de 2018 (Sandra Melo), entre muitos outros.

Neste último acórdão, refere-se até que essa opção legislativa de construir o artigo 3º com critérios de conexão alternativos (e não hierarquizados), podendo ser escolhidos livremente pelos interessados, sem qualquer regra de precedência, foi objecto de crítica no “Livro Verde sobre a lei aplicável e a competência em matéria de divórcio, publicado em https://www.csm.org.pt/ ficheiros/pareceres /2005/ parecer 05_ 02.pdf, afirmando que incentivará o “forum shopping”).

Em suma, considerando que, quer a Autora, quer o Réu são de nacionalidade portuguesa, é indiscutível a competência internacional dos tribunais portugueses, seguindo o critério da nacionalidade.

Assim, de acordo com o art. 3º,1,b do Regulamento nº 2201/2003, de 27.11.2003, o tribunal português tem competência internacional para julgar esta acção.

Diga-se que a decisão recorrida também chegou, a meio do percurso, a esta conclusão, a de o tribunal português ser competente internacionalmente para conhecer da presente acção.

Porém, não ficou por aí: acrescentou que in casu a ré instaurou acção com vista a dissolução do casamento por divórcio em França, encontrando-se agendada uma diligência para o dia 7 de Dezembro pelas 10h15m.

E, aplicando o art. 19º do mesmo Regulamento, que dispõe no seu nº 1 que “quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”, considerou que “a ré instaurou no tribunal francês uma acção de divórcio contra o aqui autor com prioridade temporal sobre a presente”, logo, nos termos do nº 1 do referido artigo 19º, a presente acção deveria ser suspensa. Porém, acrescenta a decisão recorrida, o tribunal francês já aceitou a sua competência para conhecer da acção ali instaurada pela aqui ré, e ali autora.

E foi por isso que declarou o tribunal incompetente para conhecer da presente lide, absolvendo a ré da instância, nos termos do art. 19º,3 do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro.

Quid iuris?

Em primeiro lugar, a regra do CPC aplicável é o art. 580º,3, segundo o qual é irrelevante a excepção de litispendência com base na pendência de causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.

No caso destes autos, porém, já sabemos que existe o Regulamento 2201/2003, que contempla uma solução para as situações de litispendência no art. 19º, que, sob a epígrafe “Litispendência e acções dependentes”, dispõe o seguinte:

1. Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.
2. (…)
3. Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele. Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetido pelo requerente à apreciação do tribunal em que a acção foi instaurada em primeiro lugar.

E o Regulamento contém ainda uma ajuda ao intérprete, para determinar qual o tribunal no qual o processo foi instaurado em primeiro lugar. Dispõe o art. 16º o seguinte:

1. Considera-se que o processo foi instaurado:
a) Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido; ou
b) Se o acto tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o acto seja apresentado a tribunal”.

Ora, quanto a este outro processo de divórcio pendente em tribunal francês, o que sabemos?
Sabemos que a ré apresentou articulado no qual alega o seguinte: “acresce que a ré deu já entrada ao processo de divórcio (cfr. Doc. 6) contra o seu marido, aqui autor, e que, como se mencionou, reside em França, encontrando-se já audiência judicial agendada para o dia 07-12-2021 às 10:35 h (cfr. Doc. 7).

Na resposta, o autor alegou: “mais devemos esclarecer, que é propósito da R. a dissolução do casamento, uma vez que intentou junto dos Tribunais franceses a competente acção divórcio, somente a mesma deu entrada posteriormente à presente acção e por isso a mesma deve ser relegada para segundo plano (doc. 1)”.

Dos documentos juntos pela ré, em língua francesa, embora não traduzidos, parece resultar que a acção foi intentada no tribunal francês em 17.11.2021, enquanto a acção perante tribunal português foi instaurada em 7.8.2021.

Resultaria da aplicação do art. 19º,1 supracitado que o tribunal francês, por ser aquele em que o processo foi instaurado em segundo lugar, deveria suspender oficiosamente a instância até ser estabelecida a competência do tribunal português.

Mas isso implicaria que o juiz francês soubesse da pendência da outra causa perante tribunal português. O que só poderia suceder se tal fosse levado ao seu conhecimento, apontando a lógica para que fosse o ora autor/recorrente a fazê-lo. Ora, por estranho que possa parecer, o autor não afirma tê-lo feito, e nada nos autos nos permite concluir que o terá feito.

Na decisão recorrida pode ler-se: “a ré instaurou no tribunal francês uma acção de divórcio contra o aqui autor com prioridade temporal sobre a presente. Logo, nos termos do n.º 1 do referido artigo 19º, a presente acção deveria ser suspensa. Porém, o tribunal francês já aceitou a sua competência para conhecer da acção ali instaurada pela aqui ré, e ali autora”.

Não compreendemos esta afirmação.

Primeiro, não compreendemos a referência à prioridade temporal da acção no tribunal francês, pois o que resulta dos autos é justamente o oposto: a acção primeiro intentada foi que o autor intentou em tribunal português.

E segundo, não sabemos como é que o tribunal recorrido pode afirmar que o tribunal francês já aceitou a sua competência, para conhecer da acção ali instaurada. No mínimo, seria necessário ter o documento que a ré juntou devidamente traduzido para língua portuguesa. O que não sucede.

Nos termos do art. 19º, 1 supracitado, a regra é a de o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, e não o inverso, como emerge da decisão recorrida.

Tal decisão, como tal, não se pode manter.

Deverá o autor, (réu no processo pendente em tribunal francês) ir junto desse tribunal invocar a pendência deste processo em tribunal português, a fim de desencadear a aplicação do disposto no art. 19º,1,3 do Regulamento."

[MTS]