"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2022

Jurisprudência 2022 (61)


Reg. 2201/2003;
retenção ilícita de criança; competência internacional*


1. O sumário de RL 10/3/2022 (26585/21.0T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I - Intentada pelo progenitor ação de regulação das responsabilidades parentais relativa à menor sua filha, alegando que a mesma se encontra ilicitamente retida na Polónia junto da mãe, dando ainda conta de ter feito um pedido de regresso de menor perante as Autoridades Administrativas Centrais, importa convocar o disposto nos artigos 8.º a 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

II - Não sendo caso para considerar que a decisão do mérito da causa (a regulação do exercício das responsabilidades parentais) está dependente do julgamento de outra já proposta, atinente ao processo (eventualmente pendente nos tribunais polacos) desencadeado no seguimento da apresentação do pedido de regresso, o certo é que, nos presentes autos, a apreciação do pressuposto processual da competência (internacional) dos tribunais portugueses se encontra “dependente” do julgamento desse processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na decisão recorrida considerou-se que a instância devia ficar suspensa até ser decidida a questão da legitimidade da permanência da menor na Polónia, questão a resolver no processo - que foi considerado causa prejudicial - da competência dos tribunais da Polónia, pois se a permanência da menor nesse país viesse a ser considerada legítima, então a sua residência habitual seria aí, sendo nos tribunais polacos que haveria de ser regulado o exercício das responsabilidades parentais.

O Apelante discorda, argumentando, em síntese, que o Tribunal a quo deveria ter-se declarado competente para conhecer da causa, não obstante a menor estar na Polónia, e ordenar o regresso da criança.

Apreciando.

Preceitua o art. 272.º, n.º 1, do CPC, invocado na decisão recorrida, que “(O) tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”

Face aos factos alegados pelo Requerente (carecidos de comprovação mormente quanto à pendência de processo de regresso da criança), podemos estar perante uma situação de “retenção ilícita” de uma criança, importando convocar o disposto nos artigos 8.º a 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (posto que tanto Portugal como a Polónia são Estados membros da União Europeia).

A regra geral em matéria de responsabilidade parental encontra-se consagrada no art. 8.º, n.º 1, aí se prevendo que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. No entanto, esta regra encontra-se ressalvada no n.º 2 do mesmo artigo, aí se prevendo que é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º. Em particular, o art. 10.º, sob a epígrafe “Competência em caso de rapto da criança”, estabelece que:

“Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e:
a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou
b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:
i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,
ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),
iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do artigo 11.º,
iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.”
 
Assim, à partida, assiste razão ao Requerente quando defende a competência internacional dos tribunais portugueses, no tocante à regulação do exercício das responsabilidades parentais, mas não já quando, na sua alegação recursória, considera que também são competentes para apreciarem o pedido de regresso da criança. Neste particular, tendo em atenção o disposto no art. 11.º do referido Regulamento CE) n.º 2201/2003, mostra-se acertado o entendimento plasmado na decisão recorrida, no sentido de a competência caber aos tribunais da Polónia.

O problema reside, pois, em saber se, perante os factos alegados pelo Requerente, em particular a notícia de um tal processo atinente à retenção ilícita da filha, poderá estar “comprometida” a competência dos tribunais portugueses e se tal justifica a suspensão da instância.

Numa situação próxima, a Relação de Lisboa, no acórdão de 15-12-2011, proferido no proc. n.º 265/10.0TMLSB-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt, já se pronunciou em sentido afirmativo, como se alcança do respetivo sumário:

“I - A competência jurisdicional internacional constitui, a par dos conflitos de leis (reguladas pelas normas de conflitos dos arts. 25 a 65 do C. Civil e cada vez mais em instrumentos internacionais) e a do reconhecimento de sentenças estrangeiras, um complexo de normas que visam prover à disciplina das situações da vida internacional
II -Relacionando as normas dos arts. 12º, 13º e 16º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 26 de Outubro de 1980 e aprovada pelo Decreto nº 22183, de 11 de Maio, poder­se-á afirmar que, logo que autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tome a decisão de não fazer regressar a criança ao seu local de origem, então essas autoridades assumem de imediato o poder de tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia.
É que não regressando os menores ao local de origem, é evidente que haverá que colmatar a situação decorrente, fazendo intervir as autoridades do Estado requerido para definirem a nova condição do menor.
III- Portanto, embora os mecanismos da Convenção Relativa à Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores para promover o regresso imediato dos menores aos lugares de onde foram retirados ilicitamente sejam de natureza cautelar, configurando um procedimento expedito, sem que se possa discutir do fundo da questão, o certo é que podem influir, como se viu, na questão da determinação da competência internacional do tribunal.
Assim, a decisão proferir nesse processo cautelar pode modificar ou destruir o fundamento ou a razão de ser da presente questão.
IV- Preceitua o art. 279º, nº 1 do C.P.C. que "o Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
 É esta a solução que se impõe.”

Transpondo estas considerações para o caso dos autos, não nos parece rigoroso afirmar que a decisão do mérito da causa – a regulação do exercício das responsabilidades parentais – está dependente do julgamento de outra já proposta, atinente ao (eventual) processo desencadeado no seguimento da apresentação de requerimento / pedido cuja cópia foi junta como doc. 15. Tão só a apreciação do pressuposto processual da competência (internacional) dos tribunais portugueses se encontra “dependente” do julgamento desse (hipotético) processo.

Portanto, embora não se possa considerar que o processo (eventualmente) despoletado pelo Requerente através de requerimento cuja cópia juntou como doc. 15 configure propriamente uma causa prejudicial, a sua pendência poderá constituir motivo justificado para a suspensão da instância, na presente ação, em virtude da possível repercussão na competência dos tribunais nacionais.

Sucede que, como já fomos afirmando, não está ainda comprovada nos autos a pendência de um tal processo, pois o Requerente não juntou documento comprovativo da efetiva apresentação do pedido de regresso da sua filha, tão pouco tendo sido ouvida a Requerida para se pronunciar a esse respeito ou dizer o que tiver por conveniente, não se podendo mesmo descartar a possibilidade de ter sido também instaurada por esta, na Polónia, ação relativa à responsabilidade parental, o que poderá configurar uma situação de litispendência (cf. art. 19.º do referido Regulamento).

Nos termos do n.º 2 do art. 34.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09, aplicável por força do art. 43.º do mesmo diploma legal, antes de o juiz decidir a respeito do exercício das responsabilidades parentais, pode ordenar as diligências que considere necessárias. No presente processo, seja por via desse preceito, seja ao abrigo de princípios basilares do processo civil (cf. artigos 3.º, 6.º e 986.º, n.º 2, do CPC e artigos 12.º e 33.º, n.º 1, do RGPTC), entendemos que, antes de tomar posição quanto à questão da suspensão da instância, se impõe (i) notificar o Requerente para comprovar nos autos a apresentação do requerimento cuja cópia juntou como doc. 15 e informar sobre o estado do aludido processo (atinente ao regresso da criança a Portugal), (ii) bem como proceder à citação da Requerida, a fim de esta se poder pronunciar sobre o requerimento inicial.

Só em função do que vier a ser apurado será oportuno decidir se os autos devem prosseguir, com a convocação de conferência de pais ou não, avaliando então se é caso para determinar a suspensão da instância. Tanto basta para que tenhamos de concluir que procedem, mas apenas em parte, as conclusões da alegação de recurso, ao qual deverá ser concedido parcial provimento, nos termos acima referidos."


*3. [Comentário] No consid. (17) Reg. 2201/203 afirma-se o seguinte:

"Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar-se a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.º Os tribunais do Estado-Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor-se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efectuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado-Membro onde se encontra a criança raptada."

Portanto, parece efectivamente que há que aguardar pela decisão a ser proferida na Polónia sobre o carácter ilícito da retenção da criança, o que também é confirmado pelo disposto no art. 11.º Reg. 2201/2003. 

Noutros termos: o interessado pode escolher entre reagir no (agora) Estado da retenção ilícita ou no (anterior) Estado da residência da criança. Mas -- logicamente -- não pode reagir em simultâneo nos dois Estados.

MTS