I - A acção de demarcação não é a adequada para obter a restituição de parte de um prédio ocupado por outrem, que se arroga titular do direito de propriedade respectivo.
II – Se, entre os proprietários de prédios confinantes, a dúvida vai além da zona de fronteira entre os dois imóveis, para recair sobre um determinado anexo e respectivo terreno na posse do vizinho, fica ultrapassado o âmbito da acção de demarcação, entrando-se já no da acção de reivindicação.
III - Pressupondo a acção de demarcação diferentes prédios contíguos carecidos de delimitação, é inviável o estabelecimento da linha limite de demarcação se algum dos terrenos em confronto (no caso, os logradouros de dois prédios urbanos) não estiver suficientemente localizado geo-espacialmente, por não se saber onde se situa concretamente in loco, ou até onde se estende numa determinada direcção, por referência ao outro.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
[...] perspetivando a especificidade do caso decidendo, tem de admitir-se que não se logrou estabelecer certeza sobre a área correspondente a cada um desses prédios e, também por isso, a efetiva dimensão/extensão/configuração física integral de cada um deles.
É seguro, assim, desde logo, haver incerteza quanto à definição da linha divisória – estrema – entre esses dois prédios.
Mas mais. Sabendo-se que um dos prédios urbanos (o pertencente aos AA./Apelantes) é constituído por casa de habitação e anexo [cfr. ponto 26 (extraído da p. i.) já aludido], o outro (o agora pertença do R.) é constituído por pavilhão/oficina de serralharia [pontos 41 (extraído da p. i.), bem com 7 e 8 (extraídos da contestação) dos factos provados].
Assim, se inexistem dúvidas quanto à pertença da casa de habitação aos AA. (integrando o seu prédio urbano), tal como, do mesmo modo, quanto à propriedade daquele pavilhão/oficina de serralharia, a caber ao R./Recorrido, já não é pacífica a situação quanto, pelo menos, ao dito anexo situado a poente, que, embora fazendo parte do imóvel dos demandantes, vem sendo usado pelos pais do R. – à revelia dos AA. –, os quais se recusam a desocupá-lo, respondendo que estavam a ocupar o que era propriedade do seu filho (R.) e com autorização dele.
Resulta dos elementos juntos aos autos que aquele pavilhão/oficina de serralharia é a edificação que se encontra mais próxima, em termos de localização, da dita Rua ... – note-se, curiosamente, que ambos os prédios são identificados como situados na Rua ..., retirados da p. i.) –, enquanto a casa de habitação pertença dos AA., por sua vez, se encontra mais afastada dessa rua (dir-se-ia, nesta perspetiva, nas traseiras dessa construção de pavilhão/oficina de serralharia).
Ora, tem de concordar-se com o Tribunal a quo quando aponta no sentido de o diferendo referente ao mencionado anexo (situado a poente), ocupado pelos pais do R. (com invocada autorização deste), mas que fará parte do imóvel dos AA., os quais não conseguem reavê-lo por via consensual, já que os ocupantes se recusam a desocupar/entregar, invocando alegada propriedade do seu filho (R.), tendo este último, aliás, edificado um muro divisório contemplando tal anexo (como seu), ser questão que se prende já com disputas sobre o direito de propriedade, questão esta que extravasa, por isso, o âmbito da ação de demarcação (mera definição de estrema), para se centrar na diversa ação de reivindicação [Com efeito, aqui já não se trata apenas do estabelecimento da linha divisória entre dois prédios confinantes geograficamente localizados (diferenciados/autonomizados um perante o outro), mas de reivindicar um concreto espaço físico, o que implica, não só o reconhecimento do respetivo direito de propriedade, como ainda a imposição do correspondente dever de restituição/entrega (o ocupante e/ou quem o autorizou a ocupar tem de ser condenado no reconhecimento daquele direito de propriedade e na restituição do espaço ocupado, no caso o dito anexo). Desiderato este para que não é adequada a ação de demarcação.]
Sendo certa a diversa natureza e finalidade – mormente por reporte ao objeto substantivo, às questões a tratar e aos objetivos a atingir – da ação de reivindicação e da ação de demarcação ([---]), e pretendendo os AA./Recorrentes, como invocam in casu, uma divisão dos imóveis de modo a recuperarem aquele anexo, na posse do R. (por este já murado e ocupado pelos seus pais, com a sua autorização), que se recusa a reconhecer a propriedade dos demandantes (antes invoca ser ele o respetivo dono) e, por isso, a devolvê-lo, a forma processual de tais demandantes lograrem obter o reconhecimento do direito dominial e a restituição desse espaço predial só poderá ser a (conferida pela) ação de reivindicação ([---]).
Em suma, o meio processual escolhido (ação de demarcação) não é o idóneo para este efeito pretendido ([---]), que só poderá ser alcançado através da ação de reivindicação.
Acresce que, como também significado pelo Tribunal recorrido, não pode deixar de colocar-se a questão de saber se uma tal indefinição quanto a áreas/dimensões/extensão (de cada um dos prédios confinantes) é obstáculo à pretendida demarcação.
É que, não sendo líquida a área real/concreta/geográfica de cada um dos imóveis, nem se sabendo, geograficamente, onde se situam cabalmente e com que limites entre si – apenas se tem por certo que ficam ambos situados na Rua ..., confinando entre si, um com construção/edificação mais próxima dessa rua (o do R.) e o outro com a(s) respetiva(s) construção(ões) mais distante(s) dessa rua (o dos AA.), sendo, porém, grande a incerteza quanto aos respetivos logradouros (terrenos sobrantes não edificados) e respetiva localização –, sempre seria uma tarefa inviável definir a linha de estrema entre ambos.
Note-se que não se logra saber, com a necessária segurança, se, quanto aos logradouros/terrenos não edificados, ambos os imóveis se estendem até àquela rua (como pretendem os AA.), ou se apenas um deles o logra conseguir (o do R. e como este defende), confinando-se, nesta última hipótese, o dos AA., no essencial, nas traseiras daquele, em todo o caso sem acesso à via pública (eventual prédio encravado, como resultaria do muro empreendido pelo R.).
Assim, desconhecendo-se a concreta configuração e extensão/localização dos logradouros dos imóveis entre si (tendo em conta os diversos pontos cardeais), também por isso não seria possível estabelecer aqui a respetiva linha divisória (mormente, em termos de elevada aleatoriedade, no seu prolongamento na direção da Rua ...), o que deixa impedida a pretendida demarcação.
Quer dizer, não apenas é controvertida a localização da linha de demarcação, mas ainda a própria localização geográfica dos imóveis ([---]), um perante o outro, não no concernente às respetivas edificações principais, mas aos respetivos logradouros, sua configuração e extensão, especialmente no seu prolongamento para a dita Rua ....
Com o que, improcedendo a argumentação dos Recorrentes em contrário, resta manter o decidido pela 1.ª instância."
*3. [Comentário] Mesmo admitindo o bem fundado da argumentação da RC, não se percebe, salvo o devido respeito, o que teria obstado à convolação da acção de demarcação em acção de reivindicação. Lembre-se que, nos termos do art. 5.º, n.º 3, CPC, o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas fornecidas pelas partes e talvez se possa acrescentar que o nomen iuris da actio deixou, há muito, de ter qualquer relevância.
Segundo se informa no relatório do acórdão, em 1.ª instância "foi a ação julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição do R. do peticionado". A RC confirmou esta decisão de improcedência. Isto significa que, entre os mesmos prédios, nada há a demarcar no presente e nada pode haver a demarcar no futuro? Se, como a RC entende, a acção de demarcação não é a apropriada, o problema só poderia ser de escolha de um meio processual inadequado, nunca do reconhecimento de que entre os prédios nada há, nem pode haver, a demarcar.
MTS