Processos de jurisdição voluntária;
procedimentos cautelares; revista
I. O artigo 988.º, n.º 2, do CPC determina que não é admissível recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas no âmbito de processos de jurisdição voluntária segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.
II. Entre os casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada ou sobre o regime de gozo dos dias festivos e de férias.
II. O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, seja como for, não permite converter em questões de legalidade questões que, visivelmente, são de conveniência ou de oportunidade.
IV. A razão justificativa da regra da irrecorribilidade da decisão cautelar consignada no artigo 370.º, n.º 2, do CPC (o carácter provisório) procede para a decisão provisória proferida nos termos do artigo 38.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 652.º do CPC, o juiz a quem o processo é distribuído cumpre verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso [cfr. al. b)], circunstância sobre as quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e tendo-se, efectivamente, pronunciado recorrente e recorrido.
Ora, como bem adverte o recorrido e se verá de seguida, o conhecimento do presente recurso depara com dois obstáculos.
O recurso tem por objecto o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais na sequência de divórcio.
A medida de regulação do exercício das responsabilidades parentais é expressamente qualificada, no artigo 3.º, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), como uma providência tutelar civil, estando, por conseguinte, sujeita ao regime dos recursos estabelecido para a aplicação, alteração ou cessação das providências tutelares cíveis previsto no artigo 32.º do RGPTC.
Dispõe-se nesta norma:
“1 - Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 63.º, podem recorrer o Ministério Público e as partes, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança.3 - Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias.4 - Os recursos têm efeito meramente devolutivo, exceto se o tribunal lhes fixar outro efeito”.
Significa isto que se aplica ao presente recurso o regime geral dos recursos em matéria cível.
Ora, como reconhece a recorrente, a providência tutelar cível tem, processualmente, a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artigo 12.º do RGPTC) e, como tal, fica sujeita à disciplina vertida nos artigos 986.º a 988.º do CPC.
Adquire particular relevância, para os presentes efeitos, o artigo 988.º, n.º 2, do CPC, onde se diz que “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Quer isto dizer que, como se diz no sumário do Acórdão de 30.05.2019 proferido no Proc. 5189/17.7T8GMR.G1.S1 por esta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, que “haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista [---] em função dos [---] fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de 'resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade'” [Já antecedido pelo Acórdão de 25.05.2017, Proc. 945/13.8T2AMD-A.L1.S1, também desta 2.ª Secção.].
Abandonando o critério da “mera qualificação abstracta de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade” e substituindo-o por um critério da qualificação concreta do fundamento do recurso, não pode deixar de se concluir que nenhuma das alegações da recorrente encerra uma questão de legalidade no sentido relevante para os efeitos do artigo 988.º, n.º 2, do CPC.
Apreciado, em concreto, o fundamento do recurso, verifica-se que a questão suscitada pela recorrente implica a ponderação de circunstâncias que, segundo ela, determinariam o afastamento do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais fixado pelo Tribunal recorrido e a repristinação do regime fixado pelo Tribunal de 1.ª instância.
É visível das conclusões que a recorrente pretende que seja dada à situação de facto uma valoração distinta da que consta do Acórdão recorrido e mais próxima daquela que foi realizada pelo Tribunal de 1.ª instância.
No entender da recorrente, o Tribunal recorrido andou mal e, por isso, pede que seja revisto o decidido quanto ao regime de residência da criança (a alteração do regime de residência junto da mãe para o regime de residência alternada) (cfr., sobretudo, conclusões 1, 3, 5, 8, 9, 11 e 18), bem como ao regime de gozo das festividades e férias (cfr. conclusões 2, 11, 12, 13, 14, 15 e 19).
No entender da recorrente, o Tribunal recorrido andou mal, designadamente, porque:
- “desconsiderou as circunstâncias revelantes concretas da menor em questão e do superior interesse da mesma” (cfr. conclusão 1);- “desestruturou toda a dinâmica familiar e as circunstâncias e referencias de vida da mesma, de forma ilegal, absurda e arbitraria” (cfr. conclusão 2):- “menosprezou as circunstâncias relevantes e concretas da vivência da menor EE que o Tribunal de Primeira Instância tinha ponderado” (cfr. conclusão 4);- “não acedeu, avaliou e ponderou factos que constam dos autos e não usou as ferramentas para sopesar as circunstâncias concretas e casuísticas de cada criança” (cfr. conclusão 6);- “não atendeu às “circunstâncias relevantes da menor EE e que justificam a distinção do regime de residência face aos irmãos” (cfr. conclusão 8);- “desconsiderou os factos alegados e contraditados pela progenitora, sem procurar conhecer as circunstâncias relevantes em que o Tribunal de Primeira Instância tinha fundado a decisão de manter provisoriamente as rotinas e vontade da menor, prescindindo de usar os poderes de averiguação e análise de todos os factos e circunstâncias relevantes e constantes dos autos” (cfr. conclusão 9);- “errada e ilegalmente, tratou as alegações do progenitor como factos únicos e, por isso, assentes e serviu-se dessas alegações para teorizar sobre benefícios gerais do regime de residência alternada, replicando extensivamente citações doutrinárias e jurisprudenciais de outras diferentes realidades e circunstâncias de tantos outros menores e de forma totalmente geral e abstrata” (cfr. conclusão 9);- “o Tribunal da Relação deveria ter considerado determinados factos” (cfr. conclusão 10);- “não ponderou as circunstâncias concretas e das vivências e interesses concretos da menor EE” (cfr. conclusão 12):- “estabeleceu um regime susceptível de se traduzir, em concreto, no afastamento e segregação de uma criança de 10 anos do convívio com o demais agregado, sem quaisquer circunstâncias concretas que o justifiquem” (cfr. conclusão 16);- “fixou um regime de guarda partilhada com residência alternada sem atender e nunca referir a situação concreta da menor” (cfr. conclusão 18); e- “não teve em conta o caso concreto, mais parecendo que a decisão proferida terá sido pensada para uma família diferente, uma menor diferente, rotinas e horários diferentes e obviamente, totalmente alheios às circunstâncias relevantes da vida da EE e do respetivo agregado familiar” (cfr. conclusão 18).
Como é visível, a valoração que aqui está em causa é uma valoração meramente factual, circunstancial e casuística; não, de todo, uma valoração jurídica. Não pode, pois, ser objecto de revisão nesta sede.
Conforme se diz no Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de 11.11.2021, Proc. 1629/15.8T8FIG-D.C1.S1 [---], “a valoração dos factos em processos de jurisdição voluntária cabe exclusivamente às instâncias e não ao Supremo Tribunal de Justiça, por não estarem em causa questões de estrita legalidade”.
Por sua vez, o pedido formulado pela recorrente apela a um juízo baseado em critérios de conveniência ou oportunidade e não pressupõe qualquer processo de interpretação e aplicação da lei. Não pode, por isso, ser considerado aqui.
Conforme se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.11.2021, Proc. 1629/15.8T8FIG-C.C1.S1, “entre os casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada [---] ou sobre o regime de visitas dos pais [---], de acordo com critérios de adequação e de razoabilidade (…). O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, em todo o caso, nunca transformaria questões de conveniência ou de oportunidade em questões de legalidade [---]”.
Acresce que existe um segundo fundamento para a conclusão a admissibilidade da revista. Passa a explicar-se.
Sendo o presente recurso um recurso de revista, é ainda aplicável, por força do artigo 32.º do RGPTC, o artigo 671.º, n.º 1, do CPC, que respeita ao conteúdo do Acórdão recorrido.
O art. 671.º, n.º 1, do CPC é do seguinte teor:
“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
É entendimento corrente que o artigo 671.º, n.º 1, do CPC implica que “o âmbito do recurso de revista […] não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares” [Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Almedina, Coimbra, 2018, pp. 434-436 (p. 435)].
Mas ainda que este não fosse o entendimento corrente, sempre a admissibilidade do recurso deveria confrontar-se com o artigo 370.º, n.º 2, do CPC, cujo teor é o seguinte:
“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.
Sucede que, no caso vertente, o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais foi fixado pelo tribunal nos termos do artigo 38.º do RGPTC, ou seja, foi fixado provisoriamente, em virtude da falta de acordo dos pais na conferência dirigida à homologação do acordo.
Na norma do artigo 38.º do RGPTC, que tem por epígrafe “Falta de acordo na conferência”, determina-se:
“Se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos, suspende a conferência e remete as partes para:a) Mediação, nos termos e com os pressupostos previstos no artigo 24.º, por um período máximo de três meses; oub) Audição técnica especializada, nos termos previstos no artigo 23.º, por um período máximo de dois meses”.
A decisão em causa é, portanto, uma decisão provisória e, enquanto decisão provisória, é equiparada à decisão cautelar, ficando subordinada ao regime das decisões cautelares previstas no artigo 370.º, n.º 2, do CPC.
Isto porque, como bem se assinala no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2020, Proc. 2906/17.9T8BCL-O.G1.S1, “a razão justificativa da regra da irrecorribilidade do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil encontra-se na 'provisoriedade da providência cautelar […], não obstante a importância prática que ela possa concretamente ter para a realização do direito' [Cf. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 361.º a 626.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pp. 48-51 (p. 50)]” [---] e esta razão procede para a decisão provisória prevista no artigo 38.º do RGPTC.
Tem aqui particular interesse, dada a sua flagrante proximidade com o caso dos autos, é o Acórdão proferido por esta 2.ª Secção em 1.07.2021, no Proc. 4145/20.2T8PRT-B.P1.S1, em que se decidiu que “o acórdão recorrido versa sobre decisão provisória proferida nos termos do art. 38.º do RGPTC, a qual tem por fim a antecipada protecção e efectivação dos direitos da criança e é de equiparar a uma decisão cautelar, nos termos do art. 28.º do mesmo diploma legal” [---].
Assim, também com este fundamento a pretensão da recorrente quanto à admissibilidade do recurso teria de decair."
[MTS]
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