"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/11/2022

Jurisprudência 2022 (68)


Condomínio; administrador;
interpretação ab-rogante*


1. O sumário de RP 22/2/2022 (3077/20.9T8MAI.P1) é o seguinte:

I – No âmbito da anterior redação do art. 1437º do Cód. Civil consolidou-se na jurisprudência e na doutrina o entendimento de que nas ações em que os condóminos pretendem a reparação de danos provocados nas suas frações que têm origem em partes comuns do prédio a parte legítima é o condomínio, sendo este representado em juízo pelo respetivo administrador.

II – A atual redação deste art. 1437º, introduzida pela Lei nº 8/2022, de 10.1., em que inclusive se substituiu a epígrafe “legitimidade do administrador” por “representação do condomínio em juízo”, veio acentuar a ideia de que o condomínio é a parte legítima e que a sua representação em juízo cabe ao respetivo administrador,

III – Se da petição inicial se pode extrair a ideia de que mais do que demandar a sociedade administradora os autores/condóminos pretendiam demandar o Condomínio representado pela administradora, embora tal não transpareça com nitidez do seu articulado, deve-lhes ser dada oportunidade de, através da apresentação de nova petição inicial, eliminarem as ambiguidades verificadas e de assim afastarem a situação de ilegitimidade passiva que dela poderia decorrer e que foi declarada na decisão recorrida.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. A decisão do recurso interposto pelos autores assenta na interpretação do disposto no art. 1437º do Cód. Civil, que, à data da prolação do despacho recorrido, tinha a epígrafe “legitimidade do administrador”, nele se estatuindo o seguinte:

«1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
2. O administrador pode também ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício.
3. Exceptuam-se as ações relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir poderes especiais ao administrador.»

Sucede que este art. 1437º, face à forma como se mostrava redigido, parecia regular a ação em juízo do administrador em substituição do condomínio, ou seja, a possibilidade daquele ser parte num processo judicial. Regular-se-ia, assim, a legitimidade ativa, tanto para demandar condóminos como terceiros (n.º 1), e passiva, no que respeita às ações respeitantes as partes comuns (n.º 2).

Porém, veio a tornar-se pacífico na doutrina e jurisprudência que o que se encontra regulado nesse artigo não é a legitimidade substancial do administrador, como configurada nos arts. 30º e segs. do Cód. de Proc. Civil, ou seja, o “interesse em agir”, mas sim a legitimidade processual/formal, no sentido de capacidade de representação, enquanto forma de suprimento da incapacidade judiciária do condomínio.

Conforme escreve GONÇALO MAGALHÃES (in “A personalidade judiciária do condomínio e a sua representação em juízo”, Revista Julgar, nº 23, págs. 64/65) “…no art. 437º o legislador não trata da legitimidade processual, no sentido da legitimidade ad causam, até porque a legitimidade, que consiste no interesse directo em demandar ou em contradizer, consoante se trate de legitimidade activa ou passiva, respectivamente, é um pressuposto que só em concreto pode ser determinado. A norma respeita à legitimatio ad processum, ou seja, à capacidade processual. Diz-nos apenas que a representação do condomínio em juízo incumbe ao administrador, como já resultaria do art. 26º do Código de Processo Civil.”

Entendida, pois, como o interesse na procedência da ação (no caso do autor) ou da sua improcedência (no caso do réu), logo se percebe que o preenchimento deste pressuposto processual – legitimidade substancial - apenas se poderá aferir em concreto e não abstratamente. Além disso, esta é uma questão que nem se colocará em relação ao administrador, na medida em que este age em juízo por conta do condomínio, enquanto seu órgão executivo e, portanto, necessariamente no interesse dos representados, os condóminos. Com efeito, o condomínio é que é parte nas relações jurídicas relativas às partes comuns e não o administrador, sendo em relação àquele e não a este que deve ser aferido o preenchimento do pressuposto da legitimidade tal como configurada nos arts. 30º e segs. do Cód. de Proc. Civil, isto é, o interesse na procedência (caso seja o autor) ou na improcedência (caso seja réu) da ação. [Cfr. JOSÉ FILIPE FERREIRA, “O condomínio e as relações de consumo: um teste à elasticidade do conceito de consumidor”, 2019, págs. 20/21, disponível in run.unl.pt.]

Continuando, dir-se-á ainda que o regime do art. 1437º do Cód. Civil encontrava a sua razão de ser na realização de uma evidente exigência de simplificação nas relações entre o condomínio e terceiros, ou até algum dos condóminos, em que uma das partes pretenda fazer valer em juízo pretensões respeitantes às partes comuns, de que aqueles são comproprietários.

Como casos paradigmáticos de legitimidade do administrador nos termos do art. 1437º, nº 2 do Cód. Civil referem-se aqueles em que o administrador é demandado numa ação em que um terceiro pretenda o pagamento de serviços prestados ou de bens fornecidos ao condomínio ou o das acções propostas por condóminos, para obter o ressarcimento de danos causados por partes comuns do edifício, como, por exemplo, infiltrações de águas provenientes do terraço de cobertura. [---]

Por seu turno, no acórdão de 4.10.2007 (proc. 07B1875, disponível in www.dgsi.pt), o Supremo Tribunal de Justiça situa a questão aqui em causa no pressuposto processual da personalidade judiciária (por extensão legal) e na exigência legal de representação dos patrimónios autónomos pelos seus administradores, sintetizando-a no respetivo sumário que se transcreve parcialmente:

«[…] 4. O art. 1437º do CC consagra a capacidade judiciária do condomínio, ao estabelecer a susceptibilidade de o administrador, seu órgão executivo, estar em juízo em representação daquele, nas lides compreendidas no âmbito das funções que lhe pertencem (art. 1436º), ou dos mais alargados poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela assembleia, sendo que, em qualquer dos casos, as acções deverão ter sempre por objecto questões relativas às partes comuns. […]

8. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º do CC mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no art. 22º do CPC [---] – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial.

9. O art. 1437º não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, porque este age, em juízo, enquanto órgão do condomínio e, portanto, em representação deste. Do que, no fundo, se trata, é de atribuir ao administrador legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.

10. Parte no processo, relativamente às partes comuns do edifício, é o condomínio, sendo relativamente a este, e não no tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade. […]»

Deste modo, impõe-se concluir que é o condomínio, que tem personalidade judiciária (por expressa extensão legal), que deve ser demandado, mas é ao administrador que incumbe a sua representação.

Por conseguinte, a propositura de ação inserida no âmbito dos poderes do administrador por quem o não seja configura um caso de irregularidade de representação, sanável mediante a intervenção do titular do órgão executivo do condomínio, nos termos do art. 27º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, sem que daí derive qualquer modificação subjetiva da instância, certo como é que «parte é quem o é e não quem o representa».

Sendo a ação proposta contra o condomínio, este deve ser citado na pessoa do seu administrador, recaindo sobre o autor o ónus de o identificar na petição inicial. [---]

De referir ainda o Ac. Rel. Coimbra de 27.1.2015 (proc. 586/11.4 TBACB-A.C1, disponível in www.dgsi.pt), onde se fez constar o seguinte no respetivo sumário:

«I- Numa ação em que um condómino pretende a reparação dos defeitos das paredes comuns dum prédio em propriedade horizontal, bem como ser ressarcido dos prejuízos sofridos na sua fração e causados pela existência desses defeitos, parte legítima é o Condomínio desse prédio.
II - O Administrador desse Condomínio, na sua própria pessoa, é parte ilegítima e intervirá na ação apenas enquanto representante legal do Condomínio». [---]

2. Regressando ao caso dos autos, o que se verifica, da leitura da petição inicial, é que os danos invocados pelos autores, condóminos, cujo ressarcimento pretendem são provenientes de infiltrações que têm a sua origem em partes comuns do prédio.

O propósito dos autores intentarem a presente ação não contra uma sociedade que atua em nome próprio – a “D..., Lda.” -, mas sim contra o próprio Condomínio ..., cujo administrador é essa sociedade, cremos que resulta do texto da petição inicial.

No seu cabeçalho escreve-se que a ação é intentada contra “D..., Lda.”, na qualidade de administrador do Condomínio .... E depois nos arts. 5º e 8º refere-se que a gestão do condomínio desse imóvel é realizada pela ré, sua administradora.

Porém, na parte final da petição inicial quando formulam o pedido os autores pedem a condenação da ré, sem mais e sem fazerem qualquer menção à sua qualidade de administradora do condomínio.

Parece assim que pedem a condenação da própria sociedade “D..., Lda.”, embora também, apesar de mais dificilmente, se possa colocar a hipótese de visarem a condenação do Condomínio, representado pelo seu administrador.

Por outro lado, da consulta dos elementos constantes do processo também não resulta que a citação da sociedade “D..., Lda.” tenha sido efetuada enquanto administradora do Condomínio.

De qualquer modo, não se duvida que o pressuposto da legitimidade substantiva deve ser referenciado ao Condomínio e que o seu administrador intervém nos autos não em nome próprio, mas sim apenas nessa qualidade de administrador e enquanto órgão daquele.

3. Sucede, porém, que recentemente, e já depois de proferida a decisão recorrida, a Lei nº 8/2022, de 10.1 veio alterar a redação do art. 1437º do Cód. Civil, modificando, desde logo, a sua epígrafe que era “legitimidade do administrador” e passou a ser “representação do condomínio em juízo”.

Eis a sua nova redação:

«1. O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.
2. O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
3. A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.»

Daqui parece resultar mais nítido, quando feito o confronto com a anterior redação do preceito, que a parte legítima é o Condomínio e que a sua representação em juízo cabe ao respetivo administrador, sem embargo das pertinentes críticas que MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in Blog do IPPC, “A posição em juízo do administrador do condomínio: et tu, Legislator?, 11.1.2022) dirige à nova redação dos nºs 1 e 2 do art. 1437º que, na sua perspetiva, padecem de uma “inaceitável confusão de conceitos”, entre parte e representante. Isto porque, “de acordo com os ensinamentos básicos da Ciência Processual Civil, quem é parte não pode ser representante e quem é representante não pode ser parte.” [Miguel Teixeira de Sousa, procurando no seu entendimento dar sentido útil ao novo art. 1437º do Cód. Civil, escreve também que “Os n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC atribuem ao administrador do condomínio -- ou seja, a esse administrador como parte processual -- a qualidade de substituto processual do condomínio”. E depois salienta: “Dado que o administrador não está em juízo defendendo interesses próprios, mas antes os interesses alheios do condomínio, o que se consagra nos referidos preceitos é o que em termos doutrinários se qualifica como substituição processual representativa (como também se verifica, por exemplo, quanto ao administrador de insolvência)].

Acontece que a nova redação do art. 1437º do Cód. Civil, ao invés do que ocorre com o resto do diploma, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação [11.1.2022], sendo imediatamente aplicável aos processos judiciais em que seja discutida a regularidade de representação do condomínio, devendo também ser encetados os procedimentos necessários para que esta seja assegurada pelo respetivo administrador – cfr. arts. 8º e 9º da Lei nº 8/2022.

4. Prosseguindo, se como parte legítima surge o Condomínio, sendo o administrador o seu representante em juízo, é nosso entendimento que deve ser concedida oportunidade aos autores de poderem suprir as ambiguidades que a sua petição inicial apresenta e que já atrás, em 2., foram referenciadas. [Ambiguidades que depois no desenvolvimento dos autos poderão originar situações processualmente pouco claras no tocante ao destinatário da condenação, como se verificou, por ex., nos casos apreciados nos Acórdãos da Relação do Porto de 13.4.2021 (proc. 6014/17.4 T8AMT.P1) e de 12.7.2021 (proc. 3104/19.2 T8MTS-A.P1), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.]

Com efeito, no caso “sub judice” a petição inicial apresentada pelos autores é pouco clara, fruto inegável das dificuldades interpretativas que têm sido criadas pela redação do art. 1437º do Cód. Civil, mas dela pode-se extrair a ideia de que mais do que demandar a sociedade administradora estes pretenderiam demandar o Condomínio representado pela administradora, embora tal não transpareça com nitidez do seu articulado, nomeadamente, em termos de formulação do pedido.

Por conseguinte, consideramos que, como já acima se referiu, deve ser dada oportunidade aos autores de, através da apresentação de nova petição inicial, eliminarem as ambiguidades atrás mencionadas e de assim afastarem a situação de ilegitimidade passiva que dela poderia decorrer e que foi declarada na decisão recorrida, o que se fará também com apoio no disposto nos arts. 590º, nº 2, al. a) e 6º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.

Deste modo, nessa nova petição inicial os autores deverão clarificar dois aspetos essenciais:

- que a ação é proposta contra o Condomínio ..., representado pela administradora “D..., Lda.”;
- que o pedido de condenação é dirigido contra o Condomínio.

O que tudo implica a revogação da decisão recorrida e a parcial procedência do recurso interposto.


*3. [Comentário] A RP procura fazer o melhor com base num regime legal incompreensível.

Na tentativa de conciliação do que se encontra contraditoriamente estabelecido no art. 1437.º, n.º 1, CC, a RP dá preferência à representação do condomínio (1.ª parte do preceito) em detrimento da legitimidade do administrador (2.ª parte do preceito). Não é a solução que se considera preferível, mas não deixa de ser coerente.

A verdade é que o art. 1437.º, n.º 1, CC só pode ser aplicado se se esquecer uma das prescrições que dele constam, ou seja, se se fizer uma interpretação ab-rogante de uma das partes do preceito. A aplicação simultânea de ambas as partes do art. 1437.º, n.º 1, CC (um condomínio representado que não é parte e um administrador representante que é parte) é juridicamente impossível. 


MTS