"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/11/2022

Jurisprudência 2022 (69)


Escritura pública;
valor probatório


1. O sumário de RL 17/3/2022 (2600/17.0T8LSB.L1-6) é o seguinte:

4.1. – Constando de escrituras públicas de compra e venda que a vendedora declarou ter já recebido o preço integral da/s venda/s, tal declaração por si só não faz prova/plena da realidade do pagamento do preço [porque em causa estão factos que não foram percepcionados pela entidade documentadora], mas, a aludida declaração consubstancia em rigor o reconhecimento de uma realidade que à vendedora é desfavorável, favorecendo a compradora.

4.2 – Tendo a referida declaração/confissão sido dirigida à parte contrária (a vendedora), faz a mesma prova plena relativamente ao recebimento do preço ( cfr. nº 2 do art.º 358º, do CC).

4.3 – A vendedora/confitente só logrará impugnar a força probatória plena da confissão extrajudicial escrita (nº1, do artº 358º) indicada em 4.2. alegando e provando, cumulativamente, que o acto confessado não corresponde à verdade e que ocorrem os pressupostos que conduzem à nulidade ou anulabilidade da confissão ( cfr. artº 359º, do CC.

4.4. – Sendo a acção de petição de herança caracterizada pelo duplo fim a que a mesma se destina, a saber, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória que o autor se arroga e a restituição e integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro, o respectivo ónus de alegação e prova recai sobre o demandante.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Estando em causa 3 escrituras públicas, como documentos autênticos que são (artº 369º, do CC), reza o subsequente artº 371º do mesmo diploma legal fazem as mesmas “probatória plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora “.

Em rigor, portanto, e tal como bem observam/ensinam PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA (Em CC ANOTADO ,Vol. I, COIMBRA EDITORA, 2ª Edição revista e actualizada ,pág. 304.) “o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade … “, daí que, se, no documento, “o notário afirma que perante ele o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o dissemas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado”.

Mais adiante, e exemplificando o acabado de afirmar, explicam PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA que se “numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago “.

Em suma, a prova plena a que alude o artº 371º, nº1, do CC, cinge-se aos factos praticados pelo documentador e os por ele atestados, já não abarcando a veracidade desses factosa sua validade e a sua eficácia jurídica, já que tais “qualidades” não estão ao alcance da percepção do notário ou oficial público.

Perante o referido, prima facie não obriga, portanto, e forçosamente o conteúdo dos 3 documentos/escrituras ora em análise a concluir que na realidade os RR/compradores pagaram e a vendedora/falecida recebeu daqueles o preço das vendas, porque de factos se tratam que não foram percepcionados pelo notário e, consequentemente, não se mostram abrangidos pela força probatória plena do documento autêntico.

Sucede que, a parte alusiva à declaração da vendedora – e inserta nas escrituras – de que “ já recebeu” o preço da venda, consubstancia em rigor uma confissão extrajudicial [ por se tratar do reconhecimento de um facto que prima facie é desfavorável à vendedora e favorável ao comprador – cfr. artº 352º, do CC], logo beneficia a mesma de força probatória plena por força do disposto no artº 358º, nº 2, do CC, o qual reza que “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.

A aludida força probatória explica-se/justifica-se, como ensina VAZ SERRA (Em Provas – Direito Probatório Material, e in B.M.J., nº 111/16, e ainda em RLJ, Ano 111.º, pág. 302, e outrossim LEBRE DE FREITAS, em “A Confissão no Direito Probatório”, 160 e 187.), com fundamento “na regra de experiência de que quem reconhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe ser ele verdadeiro”.

Perante o referido, inevitável é concluir que, se as 3 escrituras públicas, por si, não fazem prova da realidade do pagamento do preço [porque em causa estão factos que não foram percepcionados pela entidade documentadora], o certo é que já as declarações de confissão da vendedora nas mesmas insertas e reportadas ao recebimento do preço, e porque dirigidas à parte contráriaobrigam - nos termos do citado nº 2 do art.º 358º - a reconhecer/admitir a realidade/veracidade do pagamento, entendimento este que de resto é aquele que vem prevalecendo na jurisprudência do STJ, tendo-se designadamente concluído em Acórdão de 17/4/2018 (Proferido no Proc. nº 617/12.0TBCMN.G1.S1, e disponível in www.dgsi.pt) que :

I - Em escritura pública de compra e venda, a confissão do recebimento do preço pelo autor perante a ré tem força probatória plena – art. 358.º, n.º 2, do CC.
 
II - A força probatória plena da confissão pode ser afastada pelo autor com a alegação e demonstração do facto contrário e com as restrições previstas nos arts. 351.º, 393,º e 394.º, todos do CC.” (---)

Porém, o referido efeito probatório (prova plena)prima facie, pode também ele ser contrariado nos termos do disposto no artº 347º, do CC, ou seja, por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto [o recebimento] que dela foi objecto, mas sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na LEI.

E, no âmbito das aludidas restrições, destacam-se desde logo as respeitantes aos meios de prova utilizáveis para ilidir a prova plena, maxime às previstas nos arts. 351º, 393º, nº 2 e 394º, nº1, não podendo designadamente a parte interessada lançar mão da prova por presunção judicial, nem por prova testemunhal.

Prima facie, não se mostra assim afastada – pelo artº 347º, do CC – a possibilidade de a prova plena de uma confissão extrajudicial do credor poder ser contrariada por meio de prova de igual valiamaxime através de outra confissão agora do próprio devedor.

Na verdade, e como assim se decidiu em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/12/2019 (Proferido no Processo nº 458/18.1T8MBR.C1, e disponível in www.dgsi.pt.), certo é que “em face do disposto no art.º 347º do CC, parece que a força probatória plena da confissão extrajudicial do credor de que recebeu determinada importância em pagamento de certa dívida poderá cair se surgir uma confissão do próprio devedor, judicial ou extrajudicial com idêntica força probatória plena, de que nesse momento ou em momento anterior não a recebeu”, passando então a “ haver duas confissões contraditórias com o mesmo peso probatório (salvo quanto à confissão judicial, que classicamente a doutrina qualifica de prova pleníssima por não admitir prova do contrário “.
 
Ocorre que, avisa-se também no referido Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, “na situação particular da confissão extrajudicial escrita dirigida à parte contrária que dispõe de força probatória plena (art.º 358, nº 2, do CC), é dificilmente concebível que, fora do quadro de uma viciação (falsificação/adulteração) do documento, seja possível demonstrar que não é verdadeiro o facto objecto da confissão do credor a não ser em consequência de uma falta ou vício da vontade do confitente”.

O entendimento acabado de aduzir, é aquele que se mostra perfilhado por PIRES de SOUSA (Em Direito Probatório Material, Almedina, Pág. 65.), a saber, que “entre as restrições ressalvadas na parte final deste artº 347º está o regime da confissão. Com efeito, o confitente só logrará impugnar a força probatória plena da confissão judicial escrita (nº1, do artº 358º), ou da confissão extrajudicial com força probatória plena (nº 2, do artº 358º) demonstrando cumulativamente, que o acto confessado não corresponde à verdade e que ocorrem os pressupostos que conduzem à nulidade ou anulabilidade da confissão (cfr. artº 359º, do CC, o qual reza nos respectivos nºs 1 e 2, respectivamente, que “A confissão, judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação” e que “O erro, desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídico”).

Igualmente para ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA (Em Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 547/548.), para infirmar a confissão não basta a alegação e a prova da inexactidão ou da não verificação do facto reconhecido, antes há-de alegar-se e provar-se que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade.

Outrossim para PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA (Em CC ANOTADO, Vol. I, COIMBRA EDITORA, 2ª Edição revista e actualizada, pág. 296.), e apesar de não ser um negócio jurídico, a confissão assenta numa declaração, que está sujeita, em princípio, aos vícios de que pode sofrer a declaração de vontade. Mas, porque se trata, porém, de uma declaração de ciência, e não uma declaração de vontade, compreende-se o regime especial que, em matéria de erro, consagra o nº2, do artº 359º. Note-se, em todo o caso, que a lei não permite ao confitente impugnar a confissão mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado, para tanto há-de alegar o erro ou outro vício de que haja sido vítima “.

Ora, o entendimento acabado de enunciar, recorda-se, é também o que foi já perfilhado pelo STJ, em Acórdão de 8/1/2019 (Proferido no Processo nº 3696/16.8T8VIS.C1.S1, e disponível in www.dgsi.pt.), pois que nele prima facie aprova-se o entendimento da segunda instância no sentido de que “o confitente não pode infirmar a força probatória da confissão com a simples prova que o facto confessado extrajudicialmente não corresponde à verdade, apesar do art.º 347º do C. Civil dispor que a prova legal plena pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. Isto porque a parte final deste preceito salvaguarda a possibilidade de existirem outras restrições especialmente previstas na lei. E uma dessas restrições especialmente previstas é precisamente a prova que resulta de uma declaração confessória. Esta só pode ser derrubada pelo reconhecimento da nulidade ou pela anulação judicial da confissão, por falta ou vícios da vontade, conforme prevê o art.º 359º do C. Civil, o que inclui, necessariamente, a prova do contrário do que foi declarado “.

Aqui chegados, tudo visto e ponderado, inevitável é assim e em última instância “menosprezar” a confissão judicial dos RR/devedores [de resto, qualificada (Poder-se-á dizer que há uma confissão qualificada nos casos em que as circunstâncias aditadas pelo confitente alteram a fisionomia jurídica do facto reconhecido (confessado), como sucede, por exemplo, no caso de o réu reconhecer que o autor lhe entregou determinada quantia, não a título de empréstimo, como este afirma, mas sim a título de doação – cfr.  ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, em Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 539 a 541.), porque se os RR confessam nos autos que na realidade não pagaram à vendedora o preço devido, logo acrescentam que assim agiram apenas porque a vendedora dele prescindiu, e , daí que, pretendendo o Autor da aludida confissão beneficiar/aproveitar, teria que igualmente reconhecer/aceitar o facto desfavorável (que a vendedora prescindiu do preço), ou ,então alegar e  provar a inexactidão deste último, isto em face do chamado princípio da indivisibilidade consagrado no artº 360º, do CC, o qual reza que “ Se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão”].

Concluindo, em razão de tudo o supra exposto, e tendo presente as declarações confessórias insertas nas escrituras de 15-04-2013, de 05-06-2014 e de 7-01-2015, forçoso é reconhecer que a vendedora Maria I... recebeu dos compradores o preço das vendas, o qual atinge o valor total de €672.320,00 [€117.720,00 + €130.000,00 + € 424.600,00].
 
De igual modo, e em face do teor da escritura outorgada em 30-11-2011 [da qual consta que a Maria I..., representada pelos RR B e C, vendeu a ... – Compra e Revenda de Imóveis, Ld.ª, e pelo preço - já recebido - de € 110.000,00, 5 fracções autónomas], forçoso é reconhecer que a vendedora recebeu da compradora o preço das vendas.

Consequentemente, e no período de situado entre 30-11-2011 e 7-01-2015prima facie veio o património da falecida Maria I... a ser objecto de saídas de imobiliário mas, em contrapartida, a ser beneficiado com entradas de elevado numerário [no valor total de €782.320,00 , e não €783 720,00 como consta do excerto decisório da sentença recorrida, lapso em parte explicado pelo facto de, certamente por novo lapso, se indicar como sendo de €426 600,00 – e não o correcto de € 424.600,00 - o preço constante da escritura de 7 de Janeiro de 2015 ] decorrente de pagamentos, o qual, em todo o caso, não “aparece” - após o óbito de Maria I... – presente/aplicado em Bancos onde Maria I... dispunha de contas [cfr. itens de facto 2.43 e 2.44 ]."

[MTS]