"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2022

Jurisprudência 2022 (58)


Processo de inventário;
relação de bens; prova por confissão*


1. O sumário de RG 24/2/2022 (3465/20.0T8BRG-A.G1) é o seguinte:

I - A relação dos bens comuns apresentada para efeitos de divórcio, sendo um documento particular assinado pelos cônjuges, em que cada um reconhece que os bens constantes dessa declaração são bens comuns e não bens próprios, tem natureza confessória.

II - Quer se considere tal declaração, firmada pela recorrente e pelo recorrido e reafirmada na conferência do processo de divórcio, que é preliminar deste inventário, como confissão judicial escrita, quer apenas como confissão extrajudicial escrita, ambas têm força probatória plena contra o confitente se não for arguida a sua nulidade por falta ou vícios da vontade, nem erro essencial.

III - Resultando provado por confissão escrita do recorrido, cuja validade não questionou, ou seja, cuja nulidade não arguiu, que a benfeitoria (construção da moradia em prédio que é bem próprio do recorrido) tem natureza de bem comum, entendemos que foi produzida prova plena sobre a natureza de bem comum de tal benfeitoria e que a mesma deverá ser como tal relacionada neste inventário, não sendo caso de remeter as partes para os meios comuns.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Sendo deduzida no processo de inventário reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, estabelece o art.º 1105.º nº 3 do CPC que a questão é decidida depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

Por seu turno o art.º 1093º estabelece:

– “Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”

Já no anterior CPC se previa, no art.º 1350º, que “Quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 1336.º (por implicar redução das garantias das partes), a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns”.

Na jurisprudência firmada relativamente a este normativo do anterior CPC, nomeadamente no acórdão do STJ de 10-5-1999 (99A1014) entendia-se que:

I- Em processo de inventário, as questões relativas à relação de bens que demandem outras provas, além da documental, só devem ser objecto de decisão definitiva quando for possível a formulação de um juízo, com elevado grau de certeza, sobre a existência ou inexistência desses bens.

II- Na ausência dessa prova, devem os interessados ser remetidos para o processo comum ou deve ser ressalvado o direito às acções competentes.

O actual normativo continua a centrar-se nas garantias das partes, que não devem ser reduzidas em função da simplificação do processado inerente à apreciação da questão em termos incidentais.

Cumpre assim apreciar se a Mmª juiz “a quo” poderia ter decidido, com a necessária segurança, atentos os meios de prova que às partes era possível produzir neste incidente, a reclamação apresentada contra a relação de bens, neste caso por se ter omitido a relacionação de uma benfeitoria comum, concretamente:

– Benfeitorias no imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., com o nº ...- ..., inscrito na matriz com o artigo ...º, consistentes em toda a construção da moradia, com valor a peritar.

Na sentença recorrida entendeu-se que “resultou demonstrado que, aquando da construção da moradia, foram realizados trabalhos cujo custo foi suportado pelo pai do cabeça de casal e foram realizados outros que foram suportados pelo ex-casal, não tendo, no entanto, resultado da prova produzida a concretização dos mesmos. (…) Assim, no que concerne a tal matéria serão as partes remetidas para os meios processuais comuns, nos termos do mencionado preceito legal, porquanto não dispõe o Tribunal de dados suficientes para decidir com segurança a questão suscitada”.

A matéria de facto a que agora atendemos não é exactamente a mesma que consta da sentença, fruto das alterações por nós introduzidas e dela não é possível concluir, como concluiu a Mmª juiz “a quo”, que o pai do recorrido suportou o custo de parte dos trabalhos.

Acresce, que na sentença recorrida não se atentou na circunstância de se encontrar confessado e por isso plenamente provado, que a benfeitoria (construção) é bem comum.

Ora, resultando provado por confissão escrita do recorrido, cuja validade não questionou, ou seja, cuja nulidade não arguiu, que tal benfeitoria (construção da moradia em prédio que é bem próprio do recorrido) tem natureza de bem comum, entendemos que foi produzida prova plena sobre a natureza de bem comum de tal benfeitoria e que a mesma deverá ser como tal relacionada neste inventário, carecendo apenas de se ordenar a sua avaliação.

Neste sentido se decidiu no acórdão desta Relação de Guimarães de 17-6-2004, relatado pelo agora Conselheiro Manso Raínho, no processo n.º 912/04-2, em cujo sumário [...] consta:

“2. A relação de bens apresentada aquando do pedido de divórcio por mútuo consentimento tem subjacente um negócio jurídico de “acertamento” ou “apuramento” dos bens comuns dos cônjuges, tendo natureza confessória as correspondentes declarações dos cônjuges, na parte em que reconhecem que os bens também pertencem ao outro cônjuge.

 3. Assim, tendo o ex-cônjuge marido assumido na relação de bens que subscreveu e apresentou, que certos bens eram comuns (declaração confessória), não pode proceder a sua alegação, produzida em sede de inventário para a partilha dos bens do casal, de que afinal esses bens apenas a ele ou a terceiros pertenciam.

Não há, deste modo, razão para remeter os interessados para os meios comuns, competindo, ao invés e no próprio inventário, julgar como comuns tais bens.” [---]

*3. [Comentário] O acórdão segue uma orientação que não é inédita.

No entanto, não é fácil atribuir carácter confessório a um documento que foi subscrito ou aceite por ambos os cônjuges. A confissão pressupõe o reconhecimento de um facto desfavorável a uma parte e favorável à parte contrária (art. 352.º CC). Quando ambas as partes aceitam o mesmo facto, como se pode determinar que esse facto é favorável a uma delas e desfavorável à outra? 

O mais importante talvez seja, no entanto, um outro aspecto. A relação de bens que é apresentada no divórcio por mútuo reconhecimento (art. 1775.º, n.º 1, al. a), CC) visa permitir a obtenção de um efeito que, por definição, não pode ser considerado nem favorável, nem desfavorável para nenhuma das partes. Sendo assim, cabe perguntar o que pode justificar a atribuição de valor probatório de confissão a uma afirmação que não é acompanhada de nenhum animus confitendi, dado que não é realizada por nenhum dos cônjuges com o intuito de reconhecer um facto desfavorável.

MTS