"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/11/2022

Jurisprudência 2022 (56)


Processo executivo; 
reclamação de créditos; efeito preclusivo*


1. O sumário de RC 8/3/2022 (701/12.0TBCLD-A.C1é o seguinte:

O credor hipotecário que tenha sido citado em acção executiva, nos termos do artigo 786.º do CPC, para aí reclamar o seu crédito e não o faça no prazo legal, não poderá beneficiar da preferência resultante dessa garantia no âmbito de reclamação que, no âmbito da mesma execução, venha a formular posteriormente, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 794.º do CPC e na sequência da sustação da execução que, entretanto, instaurou com vista ao pagamento do seu crédito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conforme se referiu [...], a decisão recorrida julgou verificado o crédito reclamado e, procedendo à respectiva graduação, determinou que ele seria pago (pelo produto da venda do imóvel penhorado) após pagamento do crédito exequendo.

Por via do presente recurso, a Apelante vem pôr em causa os termos em que foi efectuada a graduação do seu crédito, sustentando que o mesmo deverá ser graduado com preferência sobre o crédito exequendo na medida em que está garantido por garantia real (hipoteca) que lhe confere preferência ou prioridade sobre os créditos que não beneficiem de privilégio especial ou prioridade de registo (como era o caso do crédito exequendo).

Não podemos, no entanto, reconhecer razão à Apelante.

Vejamos.

É certo – como diz a Apelante – que os seus créditos estão garantidos por hipotecas constituídas sobre o imóvel penhorado nos autos e é certo que, conforme disposto no art.º 686.º, n.º 1, do CC, a hipoteca “…confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.

Assim, atendendo a tais hipotecas, a Reclamante teria o direito de ser paga pelo valor do imóvel com preferência sobre a Exequente, uma vez que esta não gozava de privilégio especial ou de prioridade de registo (o registo da penhora que garante o crédito da Exequente é posterior ao registo das referidas hipotecas).

Sucede, no entanto, que a Reclamante/Apelante está impedida de fazer valer, nos presentes autos, as referidas hipotecas, tendo em conta que foi oportunamente citada (pessoalmente) para reclamar o seu crédito nos presentes autos e não o fez dentro do prazo legal que, para tal, lhe era concedido.

Expliquemos.

A Reclamante veio reclamar o seu crédito ao abrigo do disposto no art.º 794.º do CPC e na sequência da sustação da execução que havia instaurado onde também foi efectuada a penhora do imóvel aqui penhorado, dispondo o n.º 2 da citada disposição legal que “Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação…” [...].

A reclamação do crédito na sequência da sustação da execução onde foi efectuada a segunda penhora parece, portanto, pressupor que o exequente não tenha sido ainda citado no processo onde a penhora é mais antiga, tendo em conta que, caso esta citação tenha ocorrido em momento anterior, o prazo para a reclamação do crédito contar-se-á, em princípio, a partir dessa citação nos termos previstos nos artigos 786.º e 788.º, n.º 2, do CPC.

Resulta, de facto, do disposto nas normas citadas que os credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido, sobre os bens penhorados, são citados para a execução para o efeito de reclamarem o seu crédito (ou exercer o direito previsto no art.º 792.º) no prazo de 15 dias a contar da citação. Tais citações visam, naturalmente, assegurar os direitos desses credores em face da caducidade das respectivas garantias que, nos termos legais (cfr. art.º 824.º, n.º 2, do CC), irá operar com a venda dos bens sobre os quais incidem; por força do disposto no n.º 3 do citado art.º 824.º, esses direitos (que caducam com a venda) transferem-se para o produto da venda e, portanto, aquelas citações visam assegurar o direito dos credores de obter a efectiva satisfação dos seus créditos à custa do produto da venda dos bens sobre os quais incidiam as suas garantias e com a prioridade ou preferência que estas lhe conferiam.

Nessas circunstâncias e nesse contexto, parece impor-se a conclusão de que a falta de reclamação do crédito, no prazo legal, pelo credor que, para tal, tenha sido citado implicará a perda da garantia que determinou a sua citação para a execução para o efeito de usufruir da prioridade que ela lhe conferia relativamente ao produto da venda que venha a ser efectuada no âmbito deste processo; tal garantia irá caducar com a venda e, estando perdido e precludido o direito de reclamar o pagamento do crédito à custa do produto da venda do bem (por estar ultrapassado o respectivo prazo legal), é certo que tal garantia não pode ser considerada no âmbito desse processo. Neste sentido, afirma Anselmo de Castro [A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1977, pág. 186] que tais citações colocam os credores que não reclamem os seus créditos dentro dos prazos “…na situação de revelia qualificada, isto é, da perda da garantia dos seus créditos, embora subsistindo estes como crédito simples”.

Ora, no caso em análise, a Reclamante/Apelante – precisamente porque era titular de hipotecas, que constavam do registo, sobre o imóvel penhorado – foi citada, no âmbito da presente execução, em 06/11/2018, para reclamar, no prazo legal, os créditos de que era titular e que estavam garantidos por essas hipotecas. Não tendo reclamado os seus créditos dentro desse prazo, deixou precludir o direito de invocar essas garantias – e a preferência delas resultante – para o efeito de obter o pagamento do seu crédito à custa do produto da venda que aqui viesse a ser realizada.

E essa situação não se altera pelo facto de a Reclamante/Apelante ter vindo posteriormente a instaurar execução que veio a ser sustada, nos termos do art.º 794.º do CPC, em virtude de aí ter sido penhorado o imóvel que já estava penhorado nos presentes autos. A reclamação do crédito que podia efectuar na sequência dessa sustação – nos termos previstos no n.º 2 da citada disposição legal – apenas se poderia fundamentar na penhora que havia obtido na execução sustada, sem que pudesse já invocar a preferência resultante da hipoteca; o direito de invocar essa preferência já se encontrava precludido ou perdido pelo facto de não ter reclamado o crédito na sequência da citação que para o efeito – e com fundamento na existência dessa garantia – aqui lhe havia sido efectuada.

A esse propósito, e no sentido que aqui propugnamos, afirma Salvador da Costa [O Concurso de Credores, 2.ª edição, pág. 311]: “O credor que tenha deixado caducar o direito real de garantia por não haver reclamado o seu crédito na acção executiva instaurada por terceiro na qual foi penhorado o imóvel sobre que incidia aquele direito, não pode, na sequência de instauração de acção executiva contra o devedor, em relação à qual obteve a suspensão da instância, reclamá-lo com base na garantia referida, na acção executiva em que omitiu a reclamação, porque só o pode fazer com base em segunda penhora”.

No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência.

Veja-se, a propósito e nesse sentido, o Acórdão do STJ de 03/10/1995 [...] em cujo sumário se lê:

(…) A falta de reclamação pelo credor, que tenha sido citado para a execução, do seu crédito com garantia real, leva à caducidade dessa garantia, pois só assim os bens serão transmitidos livres de direitos reais de garantia (artigo 824 do Código Civil).

(…) Aquela caducidade da garantia real de hipoteca não pode ser torneada pela circunstância de o credor, que se não aproveitou dessa garantia hipotecária, vir instaurar mais tarde processo executivo onde obtenha penhora posterior, que conduza à sustação da execução e o leve a apresentar-se a reclamar no primeiro processo, pretendendo aproveitar-se daquela garantia já caducada, sem prejuízo de poder beneficiar da penhora que alcançou e que justificou a sustação da sua execução”.

Em sentido idêntico, pronunciou-se o Acórdão do STJ de 12/05/2005 [...], em cujo sumário se lê:

1. O art. 871, n. 2 do CPC apenas permite a reclamação de créditos no caso de a sustação da execução posterior ter sido sustada, se o reclamante não tiver sido citado para os termos do art. 864 do CPC.

2. Tratando-se de credor com garantia real e tendo o mesmo sido citado para a execução, nos termos do art. 864 mencionado, se o mesmo não reclamar o seu crédito, na sequência dessa citação, já o não poderá fazer no contexto do art. 871, n. 2 referido”.

No mesmo sentido se decidiu nos Acórdãos da Relação do Porto de 11/11/2003 (processo n.º 0322807), da Relação de Lisboa de 14/12/2006 (processo n.º 7427/2006-8) e da Relação de Coimbra de 23/05/2017 (processo n.º 651/09.8TBCTB-B.C1) [...]

Concluimos, portanto, em face de tudo o exposto, que as hipotecas invocadas pela Apelante não podem ser aqui consideradas; o direito de invocar, no âmbito da presente execução, essas garantias e a preferência delas resultante para efeitos de graduação dos créditos em relação ao produto da venda do bem penhorado (sobre o qual incidiam aquelas garantias) está precludido, porquanto o crédito não foi oportunamente reclamado na sequência da citação que, para esse efeito e por força dessas garantias, foi aqui efectuada à Reclamante/Apelante.

Nessas circunstâncias, o crédito da Apelante apenas poderá ser graduado em função da penhora que foi efectuada na execução que instaurou e que veio a ser sustada. Assim e porque essa penhora é posterior à penhora que foi efectuada na presente execução, o aludido crédito (da Apelante) terá que ser graduado em segundo lugar (após o crédito exequendo), conforme se decidiu na decisão recorrida.

Improcede, portanto, o recurso e confirma-se a decisão recorrida."


*3. [Comentário] A RC decidiu indiscutivelmente bem.

A não reclamação do crédito garantido pela hipoteca tem como consequência a caducidade da garantia real (art. 824.º, n.º 2, CC). Sendo assim, é claro que esta garantia não pode "reentrar" na execução através do mecanismo estabelecido no art. 794.º, n.º 2, CPC.

MTS