"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/11/2022

Jurisprudência 2022 (59)


Excepção peremptória;
ónus de contestação; admissão por acordo*


1. O sumário de STJ 22/2/2022 (3152/20.0T8VNG.P1.S1) é o seguinte:

I - A lei não impõe, no que se refere à falta de resposta no quadro do n.º 4 do art. 3.º do CPC, um ónus de impugnação, de sorte que não há aqui lugar à admissão de factos por falta da sua impugnação.

II - Existe fundamento para a destituição da gerência por justa causa, (i) se a sócia e gerente passou a exercer através de uma outra sociedade, de que também é sócia e gerente, uma atividade concorrente com a da sociedade, para a qual fez inclusivamente transitar trabalhadores desta; (ii) se a sócia e gerente determinou que duas sociedades de que também é sócia e gerente passassem a funcionar, sem quaisquer contrapartidas, nas instalações da sociedade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como se revela nos autos, a Ré suscitou na sua contestação a exceção do exercício abusivo por parte do Autor do direito à sua destituição da gerência da sociedade Nossavida – Construções, Lda., alegando os factos que teve por pertinentes a esse fim [---].

A tal exceção propôs-se o Autor responder aquando da notificação que lhe foi feita da contestação, mas o tribunal entendeu que a resposta não era admissível, por não comportar o processo senão dois articulados: o requerimento inicial e a oposição. Razão pela qual ordenou o respetivo desentranhamento dos autos.

O tribunal não deixou de exarar, porém, e citando o art. 3.º, n.º 4 do CPCivil, que “às exceções deduzidas no último articulado pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final” (despacho de 13 de outubro de 2020, fls. 335 do processo físico).

Deste modo, e dado que não havia lugar a audiência prévia, era na audiência final que o Autor, querendo fazê-lo, podia responder à matéria da dita exceção.

Ocorre que, designado que foi dia para a audiência final, o Autor a ela não compareceu, de sorte que nenhuma resposta à exceção foi ali apresentada. [---]

Não tendo, pois, sido contraditada a factualidade em que se fundou a exceção em causa, sustentou a Ré (fazendo-o a título de ampliação do âmbito do recurso) na sua contra-alegação na apelação que o Autor interpôs, que se impunha considerar admitidos por acordo (confissão ficta) os inerentes factos, que a sentença da 1ª instância declarara não provados por não ter sido feita prova sobre eles.

O acórdão recorrido não deu procedência a esta pretensão da Ré, com fundamento na circunstância de não se ter realizado a audiência final, não tendo assim o Autor oportunidade de responder à exceção.

É contra o assim decidido que se insurge a Ré, ora Recorrente, continuando a sustentar, com base nos art.s 986.º, n.º 1, 293.º, n.º 3 (“devidamente adaptado”), 549.º, n.º 1 e 574.º, n.º 2, todos do CPCivil, que os factos em causa se devem ter como assentes por falta de impugnação por parte do Autor.

Cremos, contudo, que não tem razão.

Não pelo exato motivo em que se estriba o acórdão recorrido. É que, diferentemente do que neste se supõe, a audiência final teve efetivamente lugar, apenas sucede que nenhum ato das partes foi nela praticado uma vez que (como consta da ata respetiva, fls. 337) “verificou-se não se encontrar presente qualquer interveniente deste processo”. Portanto, se fosse de dizer, como suposto no acórdão recorrido, que o Autor não teve oportunidade de responder à exceção, então também se imporia dizer que isso só aconteceu por causas da responsabilidade do próprio Autor (logo, sibi imputat), e não seria por aqui que estaria vedada a admissão por acordo dos factos em causa.

A Recorrente não tem razão, mas é bem por um outro motivo: é que, segundo nos parece, a lei não impõe, no que se refere à falta de resposta no quadro do n.º 4 do art. 3.º do CPCivil, qualquer ónus de impugnação, de sorte que não pode falar-se aqui em admissão de factos por falta da sua impugnação. Efetivamente, norma alguma estabelece em geral que a falta da resposta a que alude o n.º 4 do art. 3.º do CPCivil produz o efeito estabelecido no n.º 2 do art. 574.º do mesmo Código (admissão por acordo dos factos não impugnados), sendo que em matéria de processos de jurisdição voluntária (como é o caso) a lei (art.s 986.º, n.º 1 e 293.º, n.º 3, do CPCivil) se limita especificamente a aludir a um efeito cominatório em caso de falta de oposição ao requerimento inicial.

Neste sentido vai Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., p. 136, nota 3ª), que expende depois (p. 143) que «Na falta de norma legal que sujeite a parte ao ónus de impugnação, deve entender-se que a apresentação deste articulado [a resposta a que alude o n.º 4 do art. 3.º do CPCivil] constitui uma faculdade e não um ónus. (…) [D]ado o momento tardio da sua apresentação, designadamente quando só tenha lugar na audiência final, a cominação já não se justificaria. A parte “pode”, por isso, responder às exceções, mas não “deve”, como o réu ao contestar (art. 574-1) ou o autor ao replicar (art. 587.º-1) [No mesmo sentido vão Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Guerreiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, 2ª ed., p. 33). Em sentido contrário pronuncia-se António Júlio Cunha (Direito Processual Civil Declarativo, pp. 267 e 268). Na jurisprudência encontram-se também entendimentos divergentes sobre este ponto, como resulta, por exemplo, dos acórdãos da Relação de Évora de 16 de dezembro de 2014 (processo n.º 166878/13.1YIPRT.E1) e da relação do Porto de 23 de fevereiro de 2015 (processo n.º 95961/13.8YPRT.P1), disponíveis em www.dgsi.pt]».

Deste modo, afigura-se que os factos que integram a exceção que a Ré suscitou não se podem ter por admitidos por acordo. Ao invés, para que tais factos pudessem ser atendidos para a decisão da causa, havia a Ré de os ter provado normalmente, o que não se mostra feito.

Daqui que se compreende que o tribunal de 1ª instância tenha declarado não provados os factos em questão, do mesmo passo que se apresenta correto o acórdão recorrido ao não ter (embora com fundamentação que não é, pois, de subscrever) considerado provado esse mesmo acervo factual por acordo das partes (falta de impugnação). O que significa que nenhuma errada aplicação da lei de processo foi feita.

Termos em que improcede a questão aqui em apreciação, com o que improcedem também as conclusões 4.ª a 29.ª na parte em que se defende o contrário do que fica dito."


*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode aderir à interpretação do disposto no art. 3.º, n.º 4, CPC adoptada no acórdão.

O legislador optou -- aliás, de forma mais do que discutível -- por não admitir a réplica para resposta às excepções deduzidas pelo réu na contestação. 

Desta opção legislativa nunca pode resultar que qualquer excepção alegada pelo réu tenha sempre de ser provada por esta parte: se o autor contesta a excepção, cabe ao réu provar a respectiva matéria de facto, porque se trata de matéria controvertida (art. 342.º, n.º 2, CC); se o autor não contesta a excepção na audiência prévia, o réu continua a ter de provar essa mesma matéria, porque a contestação da excepção é uma faculdade e, por isso, a falta de contestação não tem nenhum efeito cominatório e a matéria da excepção permanece controvertida (art. 342.º, n.º 2, CC).

Não é difícil concluir que esta solução é contrária à igualdade das partes (e, por isso mesmo, muito possivelmente inconstitucional): enquanto o autor pode beneficiar da admissão por acordo dos factos da acção que não tenham sido impugnados pelo réu, o réu não tem nenhuma hipótese de poder beneficiar de idêntica admissão quanto à matéria da excepção. Qual a razão para esta desigualdade das partes quanto ao tratamento dos factos que cada uma delas alega?

No caso concreto, a solução adoptada no acórdão é ainda mais gritante, dado que o autor optou por não comparecer na audiência final; apesar desta ausência do autor e da consequente não contestação da excepção invocada pelo réu, o STJ não viu nenhum problema em sobrecarregar o réu com o ónus de provar a matéria da excepção.

MTS