"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/03/2023

Jurisprudência 2022 (138)


Decisão-surpresa;
acórdão da Relação; recurso de revista*


1. O sumário de STJ 7/6/2022 (709/21.5T8ACB.C1.S1) é o seguinte:

I - O acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre uma nulidade processual que se converte em nulidade de decisão, nos termos de se configurar como decisão final com “excesso de pronúncia” uma “decisão-surpresa”, arguida e imputada a anterior acórdão que reapreciou a decisão de 1.ª instância, cujo recurso de revista não é admissível por exclusão-restrição legal (art. 370.º, n.º 2 do CPC), constitui decisão definitiva e não admite recurso de revista (art. 617.º, n.ºs 1, 5, 2.ª parte, 6, 1.ª parte, 666.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

II - Mesmo que seja de configurar exclusivamente o vício como nulidade processual e seguir o regime dos arts. 197.º, n.º 1, 199.º, 200.º, n.º 3 e 630.º, n.º 2, 2.ª parte (susceptibilidade de recurso por violação do princípio do contraditório), do CPC, a impugnação em revista segue o regime recursivo das decisões interlocutórias “novas” proferidas pela Relação (arts. 673.º e 671.º, n.º 4, do CPC). Não estando transitada em julgado a decisão final da Relação à qual se liga o eventual recurso da decisão interlocutória, a consequente aplicação do art. 673.º do CPC, em sede de revista diferida (fora das al. a) e b)), conduz a que a acessoriedade (em relação ao art. 671.º, n.º 1, do CPC) da impugnação dessas decisões interlocutórias “novas” implica que, não havendo ou não sendo admissível em concreto ou não sendo exercida a revista para o STJ das decisões da Relação ao abrigo do art. 671.º, n.º 1, do CPC (no caso, tendo em conta o referido art. 370.º, n.º 2, do CPC), está excluída a revista dessa decisão interlocutória de 2.ª instância que apreciou a reclamação da aludida nulidade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"11.5. Mesmo que se considerasse que a alegação feita junto da Relação se submetesse exclusivamente ao regime da nulidade processual, considerando os arts. 197º, 1 + 199º + 200º, 3 (vista como reclamada junto do tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida), e, depois, o art. 630º, 2, 2ª parte, do CPC (e só se coloca a questão neste caso de susceptibilidade de recurso pela invocada violação do princípio do contraditório), de todo o modo – atenta a necessidade de adequação deste último preceito de admissibilidade a uma impugnação de decisão da Relação para o STJ – sempre estamos perante um acórdão da Relação proferido na pendência do processo em 2.ª instância, que aprecia questão processual, sem que possa ser qualificada a decisão aqui recorrida – o acórdão proferido em conferência em 25/1/2022 – como decisão final nos termos do n.º 1 do art. 671º, nem decisão interlocutória “velha”, nos termos do art. 671º, 2, do CPC.

Assim, estaremos perante o regime dos arts. 673º (revista diferida e acessória, desde que admitida a revista de que depende nos termos do art. 671º, 1, ou revista autónoma e imediata, esta excepcionalmente de acordo com as situações previstas nas duas alíneas do respectivo n.º 2) e 671º, 4 (revista diferida e autónoma, caso tenha «interesse para o recorrente» a sua impugnação, independentemente da não impugnação da decisão final em 2.ª instância, uma vez inexistente ou não admitido ou não exercido o recurso à luz do art. 671º, 1) – ou seja, perante a disciplina da revista de “decisões interlocutórias novas” [V. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, págs. 174, 175, 176, sub art. 173º, pág. 192, PINTO FURTADO, Recursos em processo civil (De acordo com o CPC de 2013), 2.ª ed., Nova Causa/Edições Jurídicas, Braga, 2017, págs. 126, 128 e ss, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art. 673º, pág. 224.]

Perante a dicotomia descrita para as decisões interlocutórias novas – que dão por isso origem a “revistas novas”, interpostas da decisão de questões, normalmente de natureza processual, originadas e pela primeira vez proferidas pela Relação [OSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 676.º a 800.º, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, sub art. 721º (regulador da matéria antes do CPC 2013), pág. 143, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 673º, pág. 224.] –, a linha de fronteira-regra será a exclusão legal da revista ou a inadmissibilidade em concreto de recurso de revista do acórdão conexo da Relação, de acordo com o âmbito de previsão do art. 671º, 1, a que se possa acoplar a impugnação do acórdão sobre tais decisões interlocutórias da Relação: se assim for, ou seja, insusceptibilidade – ou ausência, por opção da parte vencida [Neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, pág. 359, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 673º, pág. 224.] – de recurso de revista da decisão final da Relação à qual se liga o recurso da decisão interlocutória, o regime será o do art. 671º, 4 (recurso autónomo em referência ao trânsito em julgado da decisão final); se for possível e admissível (e exercido) o recurso de revista da decisão interlocutória conexa, de acordo com o art. 671º, 1, o regime de admissibilidade será o do art. 673º [V. RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 671º, pág. 176, sub art. 673º, pág. 192, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, pág. 359, sub art. 673º, pág. 394.]

Em especial, para o caso de se admitir no caso que a impugnação do acórdão recorrido incide sobre nulidade que não se projecta na decisão recorrida da Relação e não se comporta como uma nulidade de decisão, e não havendo ainda trânsito em julgado da decisão final associada, rege o art. 673º do CPC: «Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do n.º 1 do artigo 671º, com exceção: a) Dos acórdãos cuja impugnação com o recurso de revista seria absolutamente inútil; b) Dos demais casos expressamente previstos na lei.» (em conjugação, se for o caso, com o art. 677º do CPC). Daqui resulta, a contrario sensu, que, não sendo caso de revista imediata, a acessoriedade (em relação ao art. 671º, 1, do CPC), da impugnação das decisões interlocutórias “novas” implicará que, “caso não houver ou não for admissível revista das decisões previstas no n.º 1 do art. 671.º[,] as mesmas não possam ser impugnadas em revista” [RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 673º, pág. 192.]

Logo, também por esta via, em face da inadmissibilidade da revista prescrita pelo art. 370º, 2, do CPC, e não obstante o previsto no art. 630º, 2, 2ª parte, do CPC, improcede a pretensão recursiva do Recorrente.

Por tudo e em ambas as frentes colocadas pelo Recorrente, estamos perante uma decisão insusceptível de qualquer impugnação em sede de revista para o STJ e subsequente sindicação por esta última instância."

3. [Comentário] a) Antes de passar à questão que suscita uma reflexão, uma observação prévia: a admitir-se que a decisão-surpresa é tratada como uma nulidade processual (o que, aliás, manifestamente não é correcto), cabe referir que o recurso de que se pode falar é o da decisão que foi proferida sobre a reclamação apresentada pela parte segundo o disposto no art. 196.º, n.º 2, CPC. A impugnação da própria decisão-surpresa em recurso é um meio processual inadequado (e o tribunal de recurso que se pronuncia sobre ela profere uma decisão nula por excesso de pronúncia: art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC).

Parte-se assim do princípio -- como, aliás, o acórdão parece confirmar -- de que, no caso em análise, houve uma prévia reclamação para a Relação e de que a questão do recurso de revista respeita à decisão proferida sobre essa reclamação.

b) No acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] em face da inadmissibilidade da revista prescrita pelo art. 370º, 2, do CPC, e não obstante o previsto no art. 630º, 2, 2ª parte, do CPC [...]"

A frase é algo enigmática, mas, no contexto em que é proferida, parece levar a entender que o art. 370.º, n.º 2, CPC obsta à admissibilidade de um recurso que, segundo o disposto no art. 630.º, n.º 2 2.ª parte, CPC seria, à partida, admissível. Dado que o acórdão se está a referir à decisão da Relação sobre a decisão-surpresa como uma nulidade processual, parece que se está a aplicar às decisões sobre as nulidades processuais inominadas do art. 195.º CPC as excepções que constam da parte final do art. 630.º, n.º 2, CPC.

A fazer-se essa interpretação do disposto no art. 630.º, n.º 2, CPC, o que estaria em causa seria a coerência da inadmissibilidade da revista nos termos do art. 673.º CPC, dado que, então, não seria coerente estabelecer-se a admissibilidade do recurso com violação (in casu, pela Relação) do princípio do contraditório (art. 630.º, n.º 2 2.ª parte) e, ao mesmo tempo, por razões que nada têm a ver com a alçada, não admitir a revista.

Há efetivamente um problema no processo civil português com a garantia das garantias do processo equitativo (como, aliás, já se tem assinalado neste Blog). Há uma consagração constitucional destas garantias (art. 20.º, n.º 4, CRP), mas depois parece haver algum défice na garantia procedimental dessas garantias. Não deixa de ser irónico que se admita recurso até ao STJ de uma questão relacionada com o valor da causa (art. 629.º, n.º 2, al. b), CPC) e que, ao mesmo tempo, não se garanta, em pelo menos um grau, recurso de uma decisão que (alegadamente) viole o princípio do contraditório ou que se pronuncie sobre essa violação.

MTS