"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/03/2023

Jurisprudência 2022 (140)


Processo do trabalho;
competência internacional; Reg. 1215/2012*


I. O sumário de RL 8/6/2022 (13425/21.9T8LSB.L1-4) é o seguinte:

1 – Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes gerais de competência legal exclusiva – o europeu e o interno.

2 – Este apenas se aplica quando a ação não for abrangida por aquele, emergente de fonte hierarquicamente superior.

3 – Os Tribunais portugueses são competentes para conhecer da ação em que se demandam os réus, invocando a respetiva qualidade de empregadores à luz de contrato de trabalho cuja atividade se desenvolveu em Portugal.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Se bem entendemos a petição inicial sustenta-se que por força da celebração de um acordo onde se clausulou uma promessa de contrato de trabalho, se iniciou uma atividade configurável como contrato de trabalho.

Não está aqui em causa aquilatar da validade da promessa ou, sequer, da existência de contrato de trabalho.

Por ora, discute-se apenas a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do litígio.

Do contrato de trabalho que se invoca pretende-se que sejam extraídas consequências ao nível da atividade desenvolvida e da retribuição acordada, fundando-se a resolução na falta de pagamento da mesma. Subsidiariamente invoca-se a mencionada promessa de contrato de trabalho.

A competência deve aferir-se em presença da relação material controvertida tal como a mesma é configurada pelo autor, ou seja, em função do pedido e da causa de pedir. Neste sentido os Ac. do STJ de 28/06/2017, Procº 259/16.1T8PBL e RLx. de 11/01/2022, Procº 5524/18.0T8FNC ou 27/10/2021, Procº 6757/21.8T8LSB [Este subscrito pela ora 2ª Adjunta e citando aresto da autoria do 1ª Adjunto].

O primeiro argumento dos Apelantes centra-se na circunstância de a sentença se basear na ponderação do documento junto aos autos sob número 2 (acordo) como parte integrante da causa de pedir dos Autores, aduzindo-se que tal documento é meramente instrumental, e serve apenas para demonstrar/provar o animus de celebração de um contrato de trabalho entre as partes, não sendo parte integrante da causa de pedir dos Autores, pois todos os créditos salariais requeridos no processo em apreço resultam de um contrato de trabalho verbal, sem termo e válido à luz da lei portuguesa, e não daquele acordo.

Alegam, muito concretamente, os Apelantes, que créditos salariais que reclamam resultam de contrato de trabalho verbal e sem termo, válido, que vigorava entre os ora Recorrentes e a primeira Ré, que é uma sociedade comercial portuguesa. Sendo que a prestação de trabalho dos Recorrentes se verificava em Lisboa, o local de trabalho convencionado pelas partes e onde têm residência e a 1ª R. tem sede.

Que dizer?

Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes gerais de competência legal exclusiva – o europeu e o interno. Este apenas se aplica quando a ação não for abrangida por aquele, emergente de fonte hierarquicamente superior.

A competência judiciária, quando envolvidos diversos Estados Membro da União Europeia, encontra-se regulada no Regulamento (CE) nº 1215/2012 de 12/12, sendo o mesmo aplicável em matéria cível e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (Artº 1º). Com o que se afasta a aplicabilidade do regime constante do Artº 10º do CPT reservado aos casos em que não seja aplicável este Regulamento Europeu.

A regra primordial ali consignada dispõe que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro (Artº 4º).

Todavia, o diploma contém um conjunto de regras entre as quais as especialmente aplicáveis em matéria de contratos individuais de trabalho, situação em que regem as normas constantes dos Artº 20º e ss.

Dispõe-se no Artº 21º:

1.–Uma entidade patronal domiciliada num Estado-Membro pode ser demandada:
a)-Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio; ou
b)-Noutro Estado-Membro:
i)-no tribunal do lugar onde ou a partir do qual o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho, ou no tribunal do lugar onde efetuou mais recentemente o seu trabalho, ou
ii)-se o trabalhador não efetua ou não efetuava habitualmente o seu trabalho num único país, no tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador.
2.–Uma entidade patronal não domiciliada num Estado-Membro pode ser demandada nos tribunais de um Estado-Membro nos termos do n.º 1, alínea b).

Por sua vez, no Artº 10º do CPT, dispõe-se que na competência internacional dos juízos do trabalho estão incluídos os casos em que a ação pode ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas no CPT, ou em que os factos que integram a causa de pedir na ação tenham sido praticados, no todo ou em parte, em território português (nº 1).

Tal como construída a tese apresentada pelos AA., na base da ação está um contrato de trabalho cuja celebração remonta a 2017 na sequência de desenvolvimento de atividade que acontece após celebração de um acordo onde se promete a futura celebração de um contrato de trabalho.

A atividade, tal como configurado na ação, desenvolve-se em Portugal, onde quer os AA., quer os RR. têm residência ou sede.

A circunstância de algumas das partes terem nacionalidade estrangeira é irrelevante para este efeito.

Não há, assim, nenhum elemento de conexão com alguma ordem jurídica que não seja a portuguesa.

A sentença atribuiu especial relevância ao acordo firmado e transcrito.

Porém, tal como alegado pelos AA. parece-nos que o documento e o acordo nele configurado são meramente instrumentais. Tal como vem configurada a petição inicial o acordo não é a base a partir da qual se configura a relação jurídica. Essa base reside no exercício de atividade dentro de parâmetros que os AA. defendem ser suficientes para que se venha a concluir por um contrato de trabalho à luz do Artº 11º do CT.

Efetivamente, a causa de pedir principal, não é o contrato emergente do referido acordo. É a atividade desenvolvida a partir dele, atividade que os AA. qualificam como integrando um contrato de trabalho.

Nessa medida, não pode deixar de se reconhecer a competência dos Tribunais portugueses pois os factos que servem de causa de pedir na ação – pelo menos quanto ao pedido principal – foram praticados em território português, tendo os autores residência em Lisboa, onde se desenvolveu a atividade, e estando ambos os RR. sedeados em Lisboa. Circunstâncias que, quer em presença do Regulamento Europeu, quer do próprio CPT, são suficientes para ter como territorialmente competentes os juízos do trabalho nacionais e, muito concretamente, os de Lisboa (Artº 14º/1), não havendo qualquer elemento de conexão com um território estrangeiro.

Assim, independentemente do bem ou mal fundado da pretensão dos AA., afigura-se-nos que os tribunais nacionais têm competência para a ação."

*III. [Comentário] O acórdão decidiu bem, mas importa referir que não é muito coerente afirmar que "não há [...] nenhum elemento de conexão com alguma ordem jurídica que não seja a portuguesa" e concluir pela competência dos "tribunais nacionais" -- isto é, pela competência internacional dos "tribunais nacionais" -- para apreciar a acção.

MTS