"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2023

Jurisprudência 2022 (154)


Concentração da defesa;
defesa por excepção*


1. O sumário de RC 28/6/2022 (822/14.5T8CTB.C1) é o seguinte:

I – Na eleição das questões de direito, o juiz não pode ir além do que está contido nos factos alegados, não estando, porém, limitado pela enunciação que delas façam as partes.

II – O princípio da concentração da defesa na contestação impõe ao réu o ónus de, nesse articulado, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, salvo os casos excecionais legalmente previstos – exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente –, com sujeição a efeito preclusivo.

III – É o que ocorre quanto a fundamentos de exclusão da cobertura do seguro não invocados pelo réu (segurador) na sua contestação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Quanto à exclusão dos danos decorrentes de erros ou omissões profissionais e resultantes da inobservância de disposições legais, regulamentares ou não cumprimento de normas técnicas/Seu (não) conhecimento oficioso.

Nesta particular, decidiu a 1.ª instância:

“Ora, no caso, as autoras lograram demonstrar efectivamente que a actividade desenvolvida pela 1ª ré estava coberta pela 2ª ré no plano da sua responsabilida civil extracontratual, através do sobredito contrato.
 
Por seu turno, no âmbito da contestação, a ré seguradora não invocou a verificação de qualquer cláusula exclusão de responsabilidade (invocou apenas a prescrição do direito à indemnização).

Dito isto, ulteriormente, como resulta do compulso dos autos que após a junção aos mesmos pelos AA., da certidão de decisão instrutória proferida no âmbito do processo com o n.º22/11...., do Tribunal Judicial ..., patenteada nos autos a fls.79-v e seg., a ré, por via do requerimento de 21-09-2015, ponderando que o Mmo. Juiz de Instrução considerou que “o responsável pelo incêndio foi a testemunha CC, nos termos assumidos pelo próprio, enquanto prestava serviços para a empresa V..., Lda.” e “a mando, pelo menos, do Sr. DD, quando eram utilizadas moto roçadoras com discos, num dia de sol, com elevadas temperaturas, num local propício à deflagração de incêndios, dado a vegetação seca que aí se encontrava”;

Invocou que:

Caso venha a demonstrar-se, nos presentes autos, estes factos (os quais – como deixou dito na contestação – a ora requerente desconhece, até por lhe não terem sido participados), aplicar-se-ão as exclusões acordadas entre seguradora (2ª R.) e tomadora do seguro (1ª R.) segundo as quais não se encontram abrangidos pelas garantias do contrato de seguro os “Danos decorrentes de erros ou omissões profissionais” [artigo 3º, nº 1, alínea a) da garantia especial de Responsabilidade Civil Exploração – doc. 1 e doc. 3, página 24, juntos com a contestação da 2ª R.], nem os danos “Resultantes da inobservância de disposições legais, regulamentares ou não cumprimento de normas técnicas” [artigo 3º, nº 1, alínea b) da referida garantia especial – docs. citados];

Isto é, a alegação da verificação daquelas exclusões deu-se em momento processual posterior à apresentação da contestação, sem que nesta se fizesse qualquer referência àquelas ou a outras exclusões.

Nota-se, aliás, que a factualidade trazida à colação pela ré já constava, no essencial, da própria petição dos autores.

Não havia, sequer, pois, superveniência quanto à materialidade subjacente à alegação.

Ora, em sede de processo civil, afirma-se o princípio da concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estando tais princípios ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e com o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual).

Com efeito, o princípio da preclusão ou da eventualidade é um dos princípios enformadores do processo civil, decorre da formulação da doutrina e encontra acolhimento nos institutos da litispendência e do caso julgado – art. 580º, nº2, do Código de Processo Civil – e nos preceitos de onde decorre o postulado da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito – art. 552º, nº1, d) – e das excepções, quanto à defesa – art. 573º, nº1, do Código de Processo Civil.

Ora, como notam ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA - In CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, VOL.I 2ª edição, almedina, p.670 - “Do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa não invocados pelo réu na contestação ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde. O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu há de dispor todos os seus argumentos de maneira a que cada um deles seja atendido no caso (ou na eventualidade) de qualquer dos anteriores improceder.”  

Uma das limitações à regra da concentração da defesa na contestação consiste na defesa posterior/superveniente, ao abrigo do disposto nos artigos 588.º e 589.º, do CPC.

Porém, no caso, como vimos, a factualidade em causa nem sequer era superveniente, objectiva ou subjectivamente (pelo menos no plano da sua admissibilidade teórica, que é como quem diz, na acepção da ré, sem conceder o facto, admitindo a sua ocorrência, então…), dado que, como vimos, a materialidade em causa já constava nos seus traços essenciais da petição inicial.

Não foi, de resto, deduzido formalmente qualquer articulado superveniente, nem tal se justificava, dado que era materialidade já alegada pelos autores.

Outro tanto se diga relativamente à exclusão que tem como base a acepção de que o acto em causa assumiu contornos dolosos.

Ora, como se disse, a ré não invocou em sede de contestação a verificação de qualquer cláusula de exclusão de responsabilidade, apenas o tendo vindo a fazer mais tarde no processo.

Ora, admitir-se que ré pudesse invocar, atempadamente, fundamentos de exclusão da sua responsabilidade, seria contornar o efeito preclusivo da invocação factual e de todos os meios de defesa, desconsiderando-se o princípio da concentração da defesa.

Nem se diga contra o supra plasmado que a ré se limitou a salientar a verificação de exclusões que já constavam das condições gerais e/ou especiais por si oportunamente juntas, a que acresce que toda a factualidade necessária à subsunção das exclusões em causa já constava dos próprios termos da petição inicial, bastando, no fundo, confrontar os factos vertidos na petição inicial (e a final dados como provados), com o texto das exclusões constantes das condições contratuais da apólice de seguros juntas aos autos.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, assim não o cremos.

Ainda que se considere que se trata apenas de subsumir determinada factualidade já constante dos autos às condições contratuais que regem o seguro ajuizado, tal matéria ou juízo qualificativo sobre mesma nunca poderia deixar de ser oportunamente alegado, dado que se trata de matéria de excepção tout court, obrigando o princípio da preclusão à necessidade (ónus) da alegação de todos os meios de defesa na contestação, sob de impossibilidade de valoração.

A regra da concentração dos meios de defesa tanto vale para a alegação de factualidade e conexa subsunção jurídica no plano das excepções, como para a mera alegação de verificação desta ou daquela excepção, sem mais, a reboque até dos próprios termos da alegação da parte contrária.

Repare-se que se assim não for, fica não só beliscado o princípio da preclusão, como o próprio princípio do contraditório, dado que se o réu não alegar a verificação dalguma excepção, o autor nem sequer tem o ensejo processual de responder à excepção em causa, designadamente no quadro do artigo 3.º/4, do CPC, não tendo, por conseguinte, o ensejo processual de, designadamente, contra-alegar as suas razões de direito, como até de alegar factualidade tendente a afastar a verificação da excepção em causa”.  

Correcta a decisão.

Senão vejamos.

Exige a lei que o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – n.º 2 do artigo 608.º do CPC.

Ao juiz está cominada a imposição legal de tomar conhecimento de todas as questões que tenham sido trazidas e debatidas pelas partes no processo – Sobre o tema, Alberto dos Reis, in “Código Processo Civil Anotado”, Vol. V, págs. 52-58 e 142-143; Jacinto, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Processo Civil”, Vol. III, Lisboa, 1972, pág. 247 e 228.

As questões controvertidas que tenham sido objecto de alegação por parte dos sujeitos processuais involucrados na acção - às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas - e que estando contidas na causa de pedir e no pedido devem ser conhecidas pelo tribunal sob pena de não fazendo o tribunal se eximir à sua função de julgamento pleno e total - Jacinto, Rodrigues Bastos, in op. loc. cit., pág. 228.

O pedido de solução de uma determinada questão, de facto ou de direito, solicitada a um órgão jurisdicional contém, de ordinário, um núcleo de factos cuja verificação probatória pode, ou não, vir a ser subsumível a um suposto normativo que encerra uma afirmação preceptiva e da qual o ordenamento jurídico faz derivar uma consequência jurídica. É este núcleo referencial e típico que se constitui como questão a eleger pelo tribunal para solução do litígio que opõe dois ou mais sujeitos.

Ou seja, para que a questão possa ser avaliada, torna-se necessário que se confira uma identidade entre o que é pedido e o que é julgado, entre o que o tribunal elegeu e definiu, na interpretação que fez do conjunto de factos alinhados pelos sujeitos nas respectivas peças processuais, com o que a final veio a tomar conhecimento e a dar pronúncia. Na eleição das questões de direito o juiz não pode ir além do que está contido nos factos aportados pelos sujeitos, não estando, porém limitado pela enunciação que delas façam as partes.

Deve, pois, na decisão ocorrer uma congruência entre as questões que o sujeito trouxe a juízo para obter uma resolução jurisdicional e aquelas que efectivamente devem ser resolvidas pelo tribunal. Esta congruência ou necessidade de coincidência significativa entre o que é pedido e o que é solucionado traduz-se numa concordância de decisão jusprocessual que torna o veredicto assumido conforme às exigências que devem vertidas numa sentença. [...]

Ora, tal matéria, foi, desde logo, alegada nos Pontos 9º (Sendo que as referidas tarefas eram executadas, essencialmente, pelo uso de máquina – moto-roçadora movida a motor e composta, além do mais, por discos metálicos, rígidos e cortantes); 10º (Sendo que tais discos trabalham a grande rotação); 11º (Na altura, como era época de Verão, verificavam-se temperaturas que rondavam os 40º C e as ervas e outros combustíveis encontravam-se em estado de muito secos), todos da petição inicial, pelo que, seria a contestação o momento, processualmente falando, para a alegação de tais excepções, o que não aconteceu – a 21.7.2015 foi proferido o seguinte despacho :” A fim de nos pronunciarmos sobre a excepção da prescrição invocada pela Ré “Fidelidade, Companhia de Seguros, SA”, notifique os AA para exercerem o competente contraditório, no prazo de 10 dias.

A concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estão ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e como o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual). Não faria sentido que a seguradora, impugnando a sua responsabilidade no sinistro, dispondo de factos idóneos a paralisar esse pedido, não concentrasse nessa defesa todos os argumentos de facto e de direito de que dispusesse - deverá por razões de litigância transparente, invocá-los de uma só vez, cooperando para a resolução definitiva do litígio. [...]

Por isso, como decidiu o Juízo Central Cível ..., “o tribunal não pode atender às invocações/exclusões em causa."

*3. [Comentário] A RC decidiu bem, embora não tanto pelo aspecto da alegação extemporânea de factos pela demandada, mas antes pelo da falta da alegação tempestiva da excepção por essa parte. Efectivamente, o que origina a preclusão é a não alegação pela demandada da exclusão da sua responsabilidade perante o tomador do seguro.

MTS