"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/03/2023

Jurisprudência 2022 (145)


Processo de insolvência;
venda executiva; direito de uso e habitação*


1. O sumário de STJ 21/6/2022 (856/11.1TYVNG-U.P1.S1) é o seguinte:

I - Relativamente a bem imóvel integrante da massa insolvente, sobre o qual tinham sido constituídas e registadas hipotecas a favor de credor reclamante na insolvência, caduca o direito de uso e habitação, enquanto direito real limitado de gozo, constituído e inscrito no registo predial a favor de terceiro após o registo dessas hipotecas, em momento anterior à insolvência do devedor hipotecário, com a venda desse bem na liquidação associada ao processo de insolvência, por interpretação e aplicação do art. 824.º, n.º 2, do CC (que afasta direitos de terceiros registados posteriormente à hipoteca).

II - De acordo com o art. 824.º, n.º 3, do CC, os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens. Tal significa que o titular do direito real de gozo que caduca, mesmo não sendo credor do titular do bem sobre o qual incide o direito real de gozo caducado e não tenha reclamado qualquer crédito no processo de insolvência onde a venda vai ser realizada, pode reclamar o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda do mesmo, ainda que para o efeito possa ser necessário instaurar uma acção contra a massa insolvente.

III - Não se aplica à caducidade de um direito real de gozo abrangido pela previsão do art. 824.º, n.º 2, do CC o segmento uniformizador tirado no AUJ do STJ n.º 2/2021.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.1. As instâncias revelaram-se coincidentes na interpretação do regime legal aplicável e chegaram ao mesmo resultado na aplicação ao caso do art. 824º do CCiv.

O acórdão recorrido foi claro e assertivo.

Transcreve-se:

“A questão que cabe decidir prende-se com a interpretação do artigo 824.º do Código Civil, que está inserido na secção relativa à realização coactiva da prestação e mais propriamente à execução de bens para satisfação do direito de crédito do credor.

Sob a epígrafe “venda em execução”, este artigo dispõe o seguinte:

«1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.

3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.»

A questão não vem colocada propriamente no âmbito de um processo de execução, vem suscitada no âmbito de um processo de insolvência no decurso de cuja fase da liquidação a venda do imóvel deve ter lugar.

Não obstante isso cremos ser inquestionável a aplicação do disposto no artigo 824.º do Código Civil ao processo de insolvência. [...]

Resulta do artigo 824.º do Código Civil que a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Isso significa que se o devedor é titular da propriedade do bem é o direito de propriedade que é alienado, se o devedor apenas é usufrutuário do bem apenas é vendido o direito de usufruto.

Esta norma não resolve o problema por inteiro porque o bem a vender pode encontrar-se onerado com direitos de garantia ou com direitos reais de gozo menores ou mesmo direitos reais de aquisição, pelo que caberia sempre decidir o que sucede com estes direitos em caso de venda do bem a terceiro.

Em tese era pensável que esses direitos se mantivessem e que o adquirente do bem tivesse de os respeitar. Todavia, como dificilmente alguém se dispõe a adquirir um bem do qual afinal não pode dispor na plenitude ou apenas o poderá fazer em data posterior incerta ou ainda terá de suportar ele mesmo os ónus sobre o bem para obter a sua libertação, essa solução acabaria na prática por inviabilizar, na maior parte dos casos, a venda do bem, com prejuízo não apenas para os credores, como também para os devedores que poderiam ver-se obrigados à venda de mais bens para satisfação dos créditos (nesse sentido, veja-se o comentário ao preceito em causa in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 1209 e seguintes, onde se afirma, citando Menezes Cordeiro e Rui Pinto, que «quando incidem sobre os bens vendidos direitos reais de garantia, caso estas garantias não desaparecessem, haveria danos para os credores e para o crédito em geral»).

Por isso o n.º 2 do preceito regula o que sucede aos direitos reais que oneram os bens após a sua venda coerciva. Segundo dispõe a norma, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, ou seja, com a venda caducam todos os direitos de garantia. 

Em relação aos demais direitos reais, mais especificamente os de gozo como o que aqui está em causa, a norma distingue várias situações. Os direitos reais de gozo que tenham sido constituídos (caso não necessitem de registo para serem eficazes) ou inscritos no registo (caso digam respeito a bens sujeitos a registo como os imóveis) antes da constituição ou registo, respectivamente, de qualquer dos direitos de garantia, arresto ou penhora invocados na execução, subsistem: o bem é vendido com esse ónus. Mas já caducam todos os direitos reais de gozo que tenham sido constituídos ou inscritos no registo apenas depois da constituição ou registo de qualquer dos direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução, de arresto ou de penhora. [...]

Como vimos, não resulta da norma que para o efeito a anterioridade do registo do direito real de gozo deve ser aferida unicamente em relação à data do registo da garantia do credor exequente. Ao invés, resulta que para não caducar o direito real de gozo tem de se mostrar inscrito no registo antes do registo de qualquer direito real invocado no decurso do processo executivo. O que significa que se por exemplo um credor comum instaura uma execução para satisfação do seu crédito e no âmbito desta é penhorado um bem que se encontra hipotecado a favor de outro credor que não o exequente, caduca igualmente o direito real de gozo inscrito no registo antes da penhora promovida pelo exequente, mas depois da hipoteca do credor hipotecário que na sequência da penhora é chamado à execução para defender a sua garantia e vê-la transferida para o produto da venda.

Se isso é assim numa execução promovida apenas por um credor e com a finalidade de obter somente a satisfação do direito de crédito deste, parece que por maioria de razão deve ser igualmente no âmbito de um processo de insolvência em que se pretende a execução universal de todos os bens e em benefício de todos os credores, sendo certo que no caso foi a própria devedora que se apresentou à insolvência e a credora com garantia hipotecária reclamou o respectivo crédito. Os problemas que Lebre de Freitas coloca a propósito da penhora e da sua relação com o objecto da venda não se chegam a colocar aqui porque tratando-se de uma execução universal todos os bens são apreendidos e todos os credores são chamados a reclamar o seu crédito para ser pago. [...]

Concluímos, portanto, ao abrigo do disposto no artigo 824.º do Código Civil, que o direito de uso e habitação dos recorrentes caduca com a venda do imóvel no presente processo de insolvência uma vez que foi constituído e registado depois de estar constituída e registada a hipoteca do credor hipotecário (e, note-se, no caso mesmo já depois de declarada a insolvência do devedor embora antes da apreensão do bem pelo administrador da insolvência) que veio ao processo de insolvência reclamar o seu crédito e que irá ser pago pelo produto da venda com a graduação que decorre da hipoteca e com os efeitos da hipoteca que permitem ao credor hipotecário, em sede de liquidação do bem, afastar direitos de terceiros registados posteriormente à hipoteca.” [...]

Perguntar-se-á se tal conclusão é impedida por alguma norma do regime jurídico do próprio direito de uso e habitação. A resposta é, a nosso ver, negativa. [...]

Na verdade, o direito do credor à satisfação do seu crédito e a possibilidade de, em caso de incumprimento, exigir a realização executiva do seu direito de crédito, à custa do património do devedor, em execução singular ou universal, é um direito de conteúdo patrimonial que é igualmente tutelado pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, que encerra a garantia (institucional e individual) da propriedade privada.

O conceito constitucional de propriedade é mais amplo que o conceito civilístico tradicional, abrangendo, para além da proprietas rerum, também a propriedade científica, literária ou artística e outros direitos de valor patrimonial, como sejam os direitos de crédito (cf., neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, págs. 1246-1247).

Neste mesmo sentido pronunciou-se o Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 68/97, 491/2002 e 273/2004 e, especificamente no que respeita ao direito do credor à satisfação do seu crédito, nos Acórdãos n.ºs 349/91, 494/94, 51/99, 318/99 e 374/2003, todos disponíveis no sitio na internet do Tribunal Constitucional.

De acordo com essa jurisprudência, o direito do credor à satisfação do seu crédito decorre da garantia constitucional do direito de propriedade e aquele direito congloba, naturalmente, a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor. Por esse motivo, o artigo 601.º do Código Civil, ao estabelecer que «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora», constitui assim uma expressão, a nível da legislação ordinária, da tutela constitucional do direito do credor. [...]

3.2. Coloca-se, por fim, a questão de saber se este resultado é conflituante com o segmento uniformizador tirado no AUJ do STJ n.º 2/2021, de 5/7/2021 [Processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, Rel. ANA PAULA BOULAROT, publicado in DR, 1.ª Série, de 5/8/2021, pág. 6 e ss, com Declaração de Rectificação n.º 342021, in DR, 1.ª Série, de 25/10/2021, pág. 8 e ss.], a saber: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil.”

A resposta é negativa, tendo em conta a fundamentação então usada, que distinguiu sem equívocos a caducidade do contrato de arrendamento, de onde provém o direito do arrendatário como direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, abrangido pelas previsões em harmonia dos arts. 1057º do CCiv. e 109º, 3, do CCiv [CIRE], da caducidade de um direito real limitado (ou menor) de gozo, como é o direito de uso e habitação [---].

Recordemos esses fundamentos, que aqui servem para afastar qualquer oposição com o decidido e uniformizado nesse AUJ, uma vez que não é defensável que o art. 824º, 2, se possa aplicar a todos os direitos de gozo, quer de natureza real, quer de natureza pessoal e, se assim fosse, objecto de interpretação extensiva ou por analogia ao caso:       

“A fim de se poder enveredar pela subsunção da caducidade do contrato de arrendamento em sede de venda ocorrida na liquidação insolvencial que aqui nos ocupa, nos termos esgrimidos pelo Acórdão fundamento, tornar-se-ia mister, fazer a equiparação da relação locatícia existente, na perspectiva do locatário, a um direito real, porquanto aquela norma se refere tão só à extinção de direitos reais e, não também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais, que incidam sobre a coisa transmitida.

Começamos por dizer que o contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III – Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.

Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824º, nº 2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento. [...]

Ademais, dispondo o artigo 109º, nº3 do CIRE que «A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», daí resulta a garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, ex vi do disposto no artigo 1057º do CCivil onde se prevê que «O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.», de onde a lei mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que nessa transmissão se mantenham intactos todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.

Ora, aquela previsão específica, faz afastar, a se, de um lado, a aplicação do normativo inserto no artigo 824º, nº2 do CCivil, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por outro, por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051º do mesmo diploma, não consta a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.

Nem se diga ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial, que aqui tratamos, entre outros os Ac STJ de 7 de Dezembro de 1995, proc. n.º 087516 e de 19 de Janeiro de 2004, proc. n.º 03A4098, in www.dgsi.pt; de 20 de Setembro de 2005, CJ STJ, Ano XIII, Tomo III, 29 e de 27 de Março de 2007, CJ STJ, Ano XV, Tomo I, 146.

Só não seria assim, se o legislador podendo prever a hipótese da venda em execução e, concomitantemente, em liquidação insolvencial, o tivesse deixado consignado, sendo certo que o poderia ter feito, atentas as alterações legislativas entretanto ocorridas, mas não o fez (maxime aquando da inclusão no artigo 819º do CCivil do arrendamento posterior à penhora, entre os actos inoponíveis à execução), caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca. Nestas circunstâncias específicas, vale a norma ínsita no artigo 109º, nº 3 do CIRE, como excepcional, sobrepondo-se, por isso, a qualquer outra aplicação normativa que a não comporta no seu âmbito, vg a situação apreciada no artigo 824º, nº 2 do CCivil, esbarrando com esta leitura interpretativa qualquer outro entendimento que a contrarie, cfr a propósito Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 2010, 400; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 482, onde se consigna «[V]isto no seu conjunto, pode dizer-se que o regime definido no artigo 109º, é dominado pela ideia da tutela do locatário, estranho à insolvência do locador.»; Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, 2004, 54; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição,226; Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 8ª edição, 155; Pestana de Vasconcelos, in Insolvência e locação. Os efeitos da insolvência sobre o contrato de locação, RDP, nº70 Abril/Junho 2020; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2ª edição, 52.

A simples constatação da injuntividade do segmento normativo inserto no artigo 109º, nº 3 do CIRE, cuja operância não poderá ser, de modo algum, ignorada, deixa sem sentido, as antigas querelas existenciais sobre a natureza do direito do locatário e a dicotomia direito obrigacional/direito real, ou mera inerência do mesmo, face à incompatibilidade da lei geral civil no que tange à caducidade dos direitos reais em venda executiva, com a lei especial constante do CIRE e a aplicação expressa desta, com a expressão de manterem incólumes os direitos do locatário, aquando da venda em processo de insolvência, aliás na esteira do que se havia já consagrado no artigo 170º, nº 2 do CPEREF. [...]


*3. [Comentário] O acórdão pronuncia-se sobre uma questão interessante.

Apesar do esforço desenvolvido no acórdão para demonstrar que o que nele se decidiu não é incompatível com o Ac. STJ 2/2021, de 5/8, não deixa de ser muito pouco harmónico, sob um ponto de vista substancial, que o que vale para o arrendamento não deva valer igualmente para o direito de uso e habitação. 

No entanto, convém acrescentar que o que há de problemático em toda esta matéria é a orientação que fez vencimento no acórdão uniformizador. Neste sentido, o acórdão "salva o que pode salvar".

[MTS]