"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/03/2023

Jurisprudência 2022 (141)


Prova; dever de colaboração;
inversão do ónus da prova


1. O sumário de RC 24/5/2022 (3023/16.4T8LRA.C2) é o seguinte:

I – As declarações proferidas no contrato de compra e venda de ações cuja assinatura dos subscritores se encontra certificada, não tendo sido arguida a sua falsidade, não têm força probatória plena contra o terceiro que nele não interveio, por se tratar de uma declaração que não lhe foi dirigida. Não gozando o documento de força probatória plena contra terceiros, a declaração nele inserta está sujeita à livre apreciação do julgador.

II – A inversão do ónus da prova a que alude o art. 344.º, n.º 2, CCiv. não depende de invocação das partes, desde que os factos permitam o preenchimento dos seus pressupostos.

III – O onerado com a prova, para conseguir a inversão do ónus, deve demonstrar que: a) existe ou existiu um meio de prova, com relevância para a decisão da causa (pressuposto positivo do nexo de causalidade); b) não restam outros meios de prova relevantes (pressuposto negativo do nexo de causalidade); c) o mesmo se encontrava na posse da contraparte ou em condições de ser alterado pela contraparte (componente para o pressuposto da ilicitude e da culpa).

IV – Só a certeza de que esse meio de prova era o único que tornaria possível a prova à parte onerada pode conduzir à inversão do ónus da prova.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"De acordo com o disposto no artigo 417.º, n.º 1 do CPC, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Acrescentando-se no seu n.º 2 que a recusa da colaboração devida acarretará a condenação em multa e, se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. Este preceito determina a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…). Assim, impõe-se para a sua aplicação a verificação cumulativa de dois requisitos ou pressupostos:

1) que a prova de determinada factualidade, por ação/omissão da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer, o que determina que a prova que foi inviabilizada seja decisiva para demonstrar a realidade do facto;
2) que tal comportamento seja imputável à parte contrária a título de culpa.

A aplicação da inversão do ónus da prova referida no art.344º/2 CC não depende da invocação das partes, pois o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à interpretação e aplicação das regras de direito (art.5º/3 CPC), desde que os factos em análise permitam o preenchimento dos pressupostos do art.344º/2 CC [No mesmo sentido Nuno Alexandre do Rosário Jerónimo Pires Salpico,  em “A inversão do ónus da prova devido a impossibilidade de prova culposamente causada (artº 342º, nº 2 do CC)” in Revista Ius Dictum, n.º 1, 2020, pp. 45-75 [https://ebooks.aafdl.pt/produto/revista-ius-dictum-01/],  também acessível em https://sousaferro.pt/wp-content/uploads/2020/06/Invers%C3%A3o-por-impossibilidade-culposamente-causada-NUNO-SALPICO.pdf, p.16, que se segue de perto, à data assistente convidado da Faculdade de Direito de Lisboa].

A 4ª R. vem alegar que não estava obrigada a manter os documentos pretendidos pelo apelante por prazo superior a 6 anos (legislação inglesa) e 10 anos (lei portuguesa), já ambos ultrapassados.

Pode questionar-se se o artº 417º do CPC impõe um dever de conservação da prova, sancionando o art.344º/2 CC essa violação de um dever material de conservação de meios de prova. Em determinados casos, o legislador prevê o dever de conservar os meios de prova.

Constitui exemplo deste dever de conservação, o disposto no artº 40º do C.Comercial que impõe aos comerciantes a obrigação de conservar a correspondência, a escrituração mercantil e os documentos num período de 10 anos, podendo ser arquivados mediante o recurso a meios eletrónicos.

No âmbito do Direito Bancário, o Decreto-Lei no 279/2000, de 10 de novembro, estabelece que os bancos podem destruir, ultrapassado o prazo de 6 meses, os documentos originais referentes as letras e livranças pagas, respetivamente, pelo aceitante ou subscritor, os cheques e os avisos ou ordens bancárias de pagamento ou de transferência pagos, bem como os talões de depósito de valores (arts.1º, 2º e 3º Decreto-Lei no 279/2000). A destruição dos originais dos documentos enunciados no artigo 2.º só é admitida se for precedida de recolha da respetiva imagem em suporte não regravável, designadamente microfilme ou disco ótico (artº 4º, nº 1 do mesmo diploma) e no domínio do Direito dos Valores Mobiliários, o Código de Valores Mobiliários prevê a conservação de contabilidade e documentos dos intermediários financeiros com os seus clientes e determina o prazo de conservação (artº 307º a 307º-B). Também no direito fiscal, designadamente o artº 19º nºs 1 e 2 do DL 28/2019 que procede à regulamentação das obrigações relativas ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes bem como das obrigações de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte que recaem sobre os sujeitos passivos de IVA, estabelece que:

1 - Os sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte por um prazo de 10 anos, se outro prazo não resultar de disposição especial, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Sempre que os sujeitos passivos exerçam direito cujo prazo é superior ao referido no número anterior, a obrigação de arquivo e conservação de todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte mantém-se até ao termo do prazo de caducidade relativo à liquidação dos impostos correspondentes.

O onerado com a prova para conseguir a inversão do ónus deve demonstrar três aspetos essências dos vários pressupostos: que existe ou existiu um meio de prova, que o meio de prova seria relevante para a decisão da causa (pressuposto positivo do nexo de causalidade), de que não restam outros meios de prova relevantes (pressuposto negativo do nexo de causalidade) e que o mesmo se encontrava em posse da contraparte ou, em condições de serem alterados pela contraparte (componente para o pressuposto da ilicitude e da culpa) [Cfr. Nuno Salpico, obra citada].

Vejamos então se se verificam os pressupostos para que se verifique a inversão do ónus da prova.

No caso, na notificação a que o tribunal procedeu para ordenar a junção do comprovativo do pagamento, não ordenou a notificação da 4ª R. para juntar o documento sob pena de inversão do ónus da prova. No entanto, a 4ª R. pronunciou-se sobre a questão, no requerimento de resposta, invocando as razões pelas quais entendia que não poderia aplicar-se o disposto no artº 344º, nº 2 do CC, e também se pronunciou nas contra-alegações, pelo que a parte teve oportunidade de apresentar o seu entendimento de modo a poder influenciar a decisão.

Afigura-se linear que o peticionado pelo apelante era relevante para o apuramento dos factos em discussão. Mas não era o único meio de prova a permitir a prova do recebimento do preço. O apelante poderia ter requerido que se solicitasse junto dos bancos onde o falecido AA era titular de contas, nomeadamente os que constam da relação de bens apresentada à Autoridade Tributária junta aos autos, a remessa dos extratos dos movimentos ocorridos nos meses anteriores a 28 de maio de 2014, data do contrato, com vista a apurar se entrou a quantia correspondente ao preço, a qual, pelo seu valor, não deixaria de ser depositada num Banco, mas optou por não o requerer.

E a acrescer a esta diligência, para complementar, embora sem a mesma aptidão probatória para a prova dos factos em causa, o ora apelante poderia ter requerido a inquirição do procurador da 4ª R., no contrato de compra e venda de ações e presidente da mesa da assembleia da sociedade A..., SA. [---] sobre o invocado pagamento e simultaneamente para esclarecer o modo como o seu pai se comportava durante as assembleias, ou seja, se continuava a comportar como titular das 20.000,00 ações alegadamente por si vendidas à 4ª R., como alegou. Abdicou também de pedir o depoimento de parte da sua irmã, enquanto 1ª R. e legal representante da 3ª R. porquanto ainda que negasse os factos, pelas justificações que apresentasse e pelo modo como respondesse às questões que lhe fossem perguntadas, poderia contribuir para a formação da convicção do juiz.

É certo que o apelante pediu que o Dr. FF que interveio como procurador da 4ª R. no contrato de constituição da 5ª R. prestasse depoimento, mas este depoimento acabou por ser prescindido, devido aos problemas de saúde da testemunha, documentados nos autos.

Ora, só a certeza de que o meio de prova em causa era o único que tornaria possível a prova à parte sobre quem recaía o ónus probatório é que poderia conduzir à inversão do ónus da prova (cfr. se defende no Ac. do STJ de 06.10.2021, proc.616/12....). Mas ainda que assim não se entendesse, a circunstância da parte já não estar obrigada a guardar os documentos e não os entregar, também não poderia conduzir à inversão.

Não estão assim reunidos os pressupostos para a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a 4ª R. a prova de que pagou o preço, ou seja, que o negócio foi oneroso como declarado, mantendo-se o ónus da prova pelo A.."

[MTS]