"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/03/2023

Jurisprudência 2022 (148)


Práticas anticoncorrenciais;
"private enforcement"; competência internacional


1. O sumário de RL 13/7/2022 (6/21.6YQSTR.L1-PICRS) é o seguinte:

I.–O Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (designado Regulamento Bruxelas I) aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da jurisdição (art. 1º/1), estabelecendo o art. 7º/2, em caso de responsabilidade extracontratual uma regra especial de competência (derrogatória da regra geral prevista no art. 4º), nos termos da qual “as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.

II.–Nos termos do art. 7º/2 do Regulamento Bruxelas I, os tribunais portugueses (Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão) são internacionalmente competentes para julgar a acção prevista no art. 13º da Lei 23/2018, de 5 de junho (Lei de Private Enforcement) - “acesso a meios de prova antes de intentada a acção de indemnização”, estando em causa apurar se os consumidores residentes em Portugal foram afectados por práticas anticoncorrenciais.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Sob a epígrafe “competência internacional” dispõe o art. 59.º do Código de Processo Civil (CPC) que:

“Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

Por seu turno, o artigo 62º estabelece os factores de atribuição de competência internacional, enquanto o art. 63º dispõe sobre a competência exclusiva dos tribunais portugueses. [...]

O Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (designado Regulamento Bruxelas I) aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da jurisdição (art. 1º/1), sendo que o objectivo central do legislador europeu foi o de restringir o âmbito de aplicação material do regulamento às relações jurídicas de direito privado, embora estejam excluídas da sua aplicação as matérias especificadas no nº 2 do art.1º do regulamento.

As partes não discutem a aplicabilidade ao caso do Regulamento Bruxelas I, divergindo antes sobre o âmbito de aplicação das regras de competência ínsitas designadamente nos arts 4º e 7º/2.

Em conformidade com os Considerandos 13. e 15. do regulamento, o art. 4º estabelece que, independentemente da sua nacionalidade, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, consagrando-se aqui o princípio actor sequitur forum rei.

Esta regra geral do domicílio do réu é reforçada pelo art. 5º/1, nos termos do qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.

O art. 7º insere-se precisamente na secção 2 do regulamento, estabelecendo uma regra especial de competência, que, além do mais, permite que “as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” (nº 2); podendo ainda ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

Quer dizer que o autor tem a possibilidade de escolher entre propor a acção nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro que sejam competentes à luz do critério especial, ou seja, a competência é alternativa, estando-se perante uma situação de fórum shopping. [...]

A este propósito [...] pode ler-se na decisão recorrida que (referindo-se os números aos parágrafos da decisão):

20.–Extraem-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça alguns parâmetros essenciais para a decisão da questão suscitada pela Ré.

21.–Assim, em primeiro lugar, “a regra de competência especial em matéria extracontratual deve ser objeto de uma interpretação autónoma, referindo-se ao sistema e aos objetivos do regulamento de que faz parte”1 – § 23, acórdão do TJ Gtflix Tv contra DR, de 21 de dezembro de 2021, processo C-251/20.

22.–Nos mesmos termos se pronunciou o TJ no acórdão HRVATSKE SUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20, a propósito da norma equivalente no Regulamento n.º 44/2001, aí se esclarecendo que é assim com vista a assegurar a aplicação uniforme do diploma em todos os Estados-Membros. Mais acrescentou que: “Esta exigência, que vale nomeadamente para a delimitação do âmbito de aplicação respetivo destas duas regras, implica que os conceitos de «matéria contratual» e de «matéria extracontratual» não possam ser entendidos no sentido de que remetem para a qualificação que a lei nacional aplicável efetua da relação jurídica em causa no órgão jurisdicional nacional” - § 40.

23.–Esta jurisprudência é aplicável ao artigo 7.º, 2) do Regulamento n.º 1215/2012, pois, conforme o Tribunal de Justiça recordou no acórdão Verein für Konsumenteninformation contra Volkswagen AG, de 09 de julho de 2020, processo C-343/19, “de acordo com o seu considerando 34, o Regulamento n.º 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão dos novos Estados-Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos vale também para o Regulamento n.º 1215/2012 quando essas disposições possam ser qualificadas de «equivalentes» (Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18,  EU:C:2019:635, n.º 23 e jurisprudência referida). Ora, é o que acontece com o artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento n.º 44/2001, por um lado, e com o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, por outro” - § 22.

24.–Por conseguinte, revela-se essencial para o caso entender qual o significado que o conceito “matéria extracontratual” assume no âmbito do sistema e dos objetivos do Regulamento n.º 1215/2012.

25.–Neste plano, resulta de jurisprudência constante do TJ que o “conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento n.º 44/2001, abrange qualquer pedido destinado a envolver a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionado com a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 1, alínea a), deste regulamento” - § 42 do acórdão HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20.

26.–Extrai-se da jurisprudência precedente que o conceito de “matéria extracontratual” é um conceito bastante amplo, não sendo exclusivo de ações de indemnização, e que está dependente apenas e só da verificação de dois requisitos: por um lado, o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado; e, por outro lado, não pode estar relacionado com “matéria contratual”, ou seja, não pode estar relacionado com qualquer “obrigação livremente consentida por uma pessoa relativamente a outra”2.

27.–No acórdão Wikingerhof GmbH & Co. KG contra Booking.com BV, de 24 de novembro de 2020, processo C-59/19, o TJ esclareceu melhor este segundo requisito, referindo que “quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012” - § 33.

28.–Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto conclui-se pela verificação dos dois requisitos referidos.

29.–Assim, quanto ao segundo requisito (o pedido não pode estar relacionado com “matéria contratual”), conforme a Autora esclarece, o seu objetivo consiste na obtenção de documentos tendo em vista aferir da verificação dos requisitos necessários para uma eventual instauração de uma ação de indemnização por danos provocados a possíveis consumidores finais por uma prática restritiva da concorrência pela qual a Ré foi condenada. Isto significa que a presente ação não se sustenta nem em quaisquer contratos celebrados entre a Autora e a Ré, nem é indispensável examinar o conteúdo de eventuais contratos celebrados pela Ré com potenciais consumidores finais lesados para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento imputado à Ré, que se sustenta, conforme referido, numa prática restritiva da concorrência.

30.–Quanto ao segundo requisito (o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado) considera-se que o mesmo também se mostra verificado, pois o pedido envolve a responsabilidade da Ré, uma vez que o seu escopo consiste, conforme referido, na obtenção de documentos para efeitos de instauração de uma ação de indemnização por factos ilícitos e esse escopo não é um qualquer fim extra processual. Tem implicações decisivas na configuração da presente ação como uma ação em matéria extracontratual, porquanto um dos seus pressupostos essenciais consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa” – cf. artigo 12.º, n.º 2, ex vi artigo 13.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 23/2018, de 05.06.

31.–Em perfeita coerência com o exposto veja-se que o regime desta ação não resulta apenas dos artigos 573.º a 576.º do Código Civil (CC), mas é complementado, de forma determinante, pela citada Lei n.º 23/2018, que regula o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência. Por conseguinte, é também a inserção sistemática deste tipo de ação neste regime especial que demonstra, de forma particularmente impressiva, que a presente ação visa, em última instância, a responsabilidade da Ré.

32.–É importante que se tenha presente que isto não é exclusivo da lei nacional, pois a Lei n.º 23/2018 transpôs a Diretiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia. Ora, resulta dos considerandos 14 a 33 da Diretiva e do Capítulo II que a obtenção de meios de prova para efeitos de sustentação do pedido de indemnização faz parte integrante do regime especial que se pretendeu instituir em matéria de responsabilidade extracontratual por práticas restritivas da concorrência. E este fazer parte inclui não só o pressuposto sistemático referido, no sentido de que este tema está previsto no mesmo diploma, mas mais do que isso: significa que esse mecanismo é considerado, na lógica da Diretiva e, consequentemente, também na lógica da lei nacional, como necessário para assegurar o exercício efetivo do direito à reparação de danos causados por infracções ao direito da concorrência da União (cf. considerando 4 e artigo 4º da Directiva).

33.–A referência aos regimes legais indicados, nos quais se insere o pedido efetuado, é relevante, porque, conforme o TJ tem entendido, para efeitos da interpretação de uma disposição do direito da União deve-se ter em conta “não só os termos desta mas igualmente o contexto em que esta se inscreve e os objetivos prosseguidos pela legislação de que aquela faz parte” - § 24, acórdão do TJ BT contra Seguros Catalana Occidente, EB, de 09 de dezembro de 2021, processo C-708/20.

34.–Os parâmetros assinalados também são demonstrativos de que a conclusão alcançada se mostra conforme com a ratio legis das soluções consagradas no Regulamento, que surge enunciada nos considerandos 15 e 16 do diploma nos seguintes termos: “As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição. (16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação”.

35.–Estes enunciados têm sido desenvolvidos e melhor concretizados pelo TJ, que tem esclarecido a propósito da solução consagrada no artigo 7.º, 2) do Regulamento que “a regra de competência especial que esta disposição prevê por derrogação da regra geral da competência dos órgãos jurisdicionais do domicílio do demandado estabelecida no artigo 4.° desse regulamento baseia-se na existência de um nexo particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, suscetível de justificar uma atribuição de competência a estes últimos por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (…) Com efeito, em matéria extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas” - § 29 e 30 do acórdão ZK, contra insolvência da BMA Nederland BV, de 10.03.2022, processo C-498/20.

36.–A interpretação que se faz do artigo 7.º, (2), do Regulamento nos termos enunciados é a mais compatível com estes desideratos pelas razões que se passam a expor.

37.–Assim: levando em conta que a presente ação visa a eventual instauração subsequente de uma ação de indemnização para reparação de danos por práticas restritivas da concorrência; considerando, consequentemente, que um dos seus pressupostos decisivos consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”; considerando também que o seu regime está incluído no regime especial previsto para as ações de indemnização por práticas restritivas da concorrência; e considerando ainda que pedidos similares àquele que estão em causa nos autos podiam ser efetuados na própria ação de indemnização (cf. artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018) é de concluir que a interpretação mais linear, mais expectável e que, por isso, é garante de um maior grau de certeza do artigo 7.º, alínea 2), do Regulamento é no sentido de que ações deste tipo estão incluídas nessa norma.

38.–Por outro lado, um dos pressupostos decisivos da presente ação consiste conforme referido na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”, o que dá satisfação às referidas razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas.

39.–Em sentido contrário ao exposto, alega a Ré que “conforme resulta da petição inicial, os documentos a que a AUTORA pretende ter acesso, nos casos em que existem, encontram-se em Espanha, à guarda de uma sociedade de direito espanhol, de acordo com as regras em vigor naquele país”. Este argumento não é procedente, pois os documentos em questão são coisas móveis. Por conseguinte, o facto de se encontrarem em Espanha ou em qualquer outro país é irrelevante. Quanto à alusão às regras em vigor em Espanha relativas à guarda de documentos não está em causa a aplicação dessas regras, nem a causa de pedir versa sobre a guarda de tais documentos.

40.–Alega ainda a Ré que a “situação aqui em causa apresenta mesma algumas similitudes com aquelas reguladas no artigo 24.º do REGULAMENTO BRUXELAS I, respeitantes a casos de competência exclusiva dos tribunais da situação dos prédios ou da sede das sociedades e associações, para conhecer de ações respeitantes a direitos reais e de ações respeitantes a temas societários, respetivamente. Tal como aí o critério determinante da competência é o local da situação dos bens e da sede social, aqui o critério determinante deve ser o do local da situação dos documentos, sendo indubitavelmente os tribunais da sede da RÉ aqueles que melhor estão colocados para apreciar os pedidos formulados”. Também aqui a Ré não tem razão, porque a particularidade das ações respeitantes a direitos reais consiste no facto incontornável dos prédios serem coisas imóveis. Quanto às ações respeitantes a temas societários, a particularidade reside na circunstância de dizerem respeito a questões internas das próprias sociedades e associações.

41.–Por conseguinte, improcede também este fundamento invocado pela Ré.

Concordamos inteiramente com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo.

Com efeito, não podemos deixar de entender que a presente acção, atento o seu objecto, incide sobre matéria extracontratual, integrando-se, por conseguinte, no citado art. 7º/2 do Regulamento Bruxelas I, adoptando-se o conceito abrangente que tem sido firmado pela jurisprudência emanada do TJUE.

O que a A. pretende com a presente acção popular, sob a forma declarativa especial para apresentação de documentos, é o acesso a um acervo de documentos que se encontra na posse da ré, de molde a aferir se foram afectados interesses difusos, se os consumidores residentes em Portugal foram afectados pelas práticas anticoncorrenciais referidas na petição inicial e se estas lhes causaram danos, tendo em vista a instauração de futura acção de indemnização por danos decorrentes das infracções ao art. 101º do TFUE e ao art. 9º da Lei nº 19/2012, sendo certo que a Comissão Europeia condenou a ré, por decisão de 21/2/2021, por violação do art. 101º do TFUE e art. 53º do Acordo EEE, por ter implementado práticas verticais por via contratual, que diferenciavam consumidores em função da sua nacionalidade ou país de residência, restringindo as vendas ativas e passivas de alojamento em hotéis por si geridos ou dos quais é proprietária a consumidores nacionais ou residentes em Estados-Membros por si determinados, tendo sido condenada numa coima no montante global de € 6.678.000 - cf. art. 26 da petição inicial.

Como consta deste articulado, a acção em apreço colhe o seu fundamento legal nos artigos 52.º(3) e 60.º(3) da CRP, artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, artigos 31.º e 1045.º a 1047.º do CPC, e nos artigos 13.º e 19.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho (Lei de Private Enforcement).

Conforme refere o tribunal a quo, “a presente acção não se sustenta nem em quaisquer contratos celebrados entre a Autora e a Ré, nem é indispensável examinar o conteúdo de eventuais contratos celebrados pela Ré com potenciais consumidores finais lesados para apreciar o carácter lícito ou ilícito do comportamento imputado à ré, que se sustenta, conforme referido, numa prática restritiva da concorrência.” – cf. parágrafo 29 da decisão recorrida.

A fonte da obrigação violada é imposta pelos aludidos art. 101º do TFUE e art. 9º do Regime Jurídico da Concorrência, enquadrando-se a acção em causa na tutela dos direitos dos consumidores lesados por práticas anticoncorrenciais. Tal acção encontra-se prevista no art. 13º da Lei 23/2018, sob a epígrafe “acesso a meios de prova antes de intentada a acção de indemnização”, dependendo a sua procedência da alegação de factos e meios de prova para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização (como referido no parágrafo 59 da decisão recorrida).

Ora, não estamos seguramente perante matéria contratual, o que exclui a aplicação do art. 7º/1 a). Diversamente, o caso dos autos enquadra-se no apontado conceito amplo de responsabilidade extracontratual, sendo de afastar a aplicação de qualquer outro critério especial, designadamente o art. 18º do mesmo regulamento, por não estar em causa matéria de contratos de consumo.

Não obsta à aplicação ao caso dos autos do art. 7º/2 o facto de a presente acção não constituir uma acção de indemnização por infracção ao direito da concorrência (private enforcement), mas antes uma acção prévia/preliminar, que visa a recolha de documentos para apuramento dos danos decorrentes daquela infracção, visando o seu ressarcimento. O que releva é que o litígio, não tendo na sua origem obrigação emergente de um contrato e como tal não se integrando na alínea a) do art. 7º/1, cai necessariamente na previsão do nº 2 deste preceito.

Este entendimento está em consonância com o Considerando 15 do Regulamento Bruxelas I, do qual se extrai o princípio de que as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica, tal como é assinalado na parte final do parágrafo 37 da decisão recorrida. Acresce que na situação vertente, estando em causa o apuramento dos danos sofridos pelos consumidores portugueses decorrentes das aludidas práticas anticoncorrenciais, é razoavelmente previsível que a acção seja intentada no Estado-Membro que apresenta um vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio, em ordem a assegurar uma boa administração da justiça (cf. Considerando 16 do regulamento).

Por outra banda, é irrelevante para os efeitos em apreço o local onde se encontram os documentos a que autora/apelada pretende ter acesso ou o facto de a ré/apelante ter sede em Espanha, aderindo-se, neste conspecto, ao vertido nos parágrafos 39 e 40 da decisão sob recurso.

Também não colhe o argumento invocado pela recorrente de que a regra especial do art. 7º/2 não se aplica às acções colectivas, porquanto se a lei não estabelece qualquer limitação, está vedado ao intérprete fazê-lo.

Por último, secundamos o entendimento do tribunal a quo vertido no parágrafo 54 e 59 da decisão, acerca do local onde ocorreu o dano, devendo considerar-se que o lugar da materialização do dano se localiza no Estado-Membro onde supostamente ocorreu (sendo em Portugal que residem os consumidores potencialmente afectados, representados pela autora/apelada), considerando que os tribunais do Estado-Membro no qual se situa o mercado afectado são os mais bem colocados para apreciar tais acções, à luz da jurisprudência do TJUE ali indicada (v. processo C-451/18) e jurisprudência indicada pela apelada no art. 14. das conclusões das contra-alegações de recurso (v. processo C-30/20).

Destarte, a decisão recorrida não merece censura, carecendo de fundamento a alegada errada interpretação/aplicação das normas legais nela vertidas, afigurando-se correcta e adequadamente fundamentada.

Em face de todo o exposto, impõe-se concluir que os tribunais portugueses (no caso o TCRS) são internacionalmente competentes para julgar a presente acção."

[MTS]