"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/03/2023

Jurisprudência 2022 (136)


Matéria de facto;
poderes do STJ


1. O sumário de STJ 7/6/2023 (6138/18.0T8VNG.P1.S1) é o seguinte:

I - Fundando-se o recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício do poder-dever previsto no art. 662.º do CPC quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, apoiada no fundamento previsto nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, pode ser sindicada a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada - não uso ou uso ilícito ou indevido dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício -, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662.º, resultam da remissão do art. 663.º, n.º 2, para o art. 607.º, n.ºs, 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau), com a restrição constante do art. 662.º, n.º 4, do CPC (“Das decisões da Relação previstas no n.os 1 e 2 não cabe recurso para o STJ”).

II - Assumindo-se a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio 2.º grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo, sempre que essa reapreciação se move no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que se tenha desrespeitado o valor probatório tarifado de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, essa actuação regida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC é legítima e insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC.

III - Em sede de anulabilidade do testamento “por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória” (art. 2199.º do CC), o ónus da prova dos factos constitutivos que se traduzem no vencimento do direito à anulação do testamento recai sobre o autor interessado na acção, nos termos dos arts. 342.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, do CC., conduzindo à verificação do estado de incapacidade que impedia um entendimento sobre a disposição dos bens e um discernimento e compreensão sobre as respectivas consequências, ou a falta de liberdade de exercício da sua vontade, ainda que transitória, relativamente ao acto testamentário. Não se fazendo prova sobre esse estado de incapacidade no momento da outorga do testamento, falece a factualidade essencial ao preenchimento do fundamento legal da anulação do testamento.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os Recorrentes começam por impugnar a decisão do acórdão recorrido sobre a reapreciação da matéria de facto, que conduziu à migração dos pontos j) a n) dos factos provados para o elenco da factualidade não provada. Atacam a decisão por erro de julgamento na interpretação da prova produzida, em especial os documentos relativos à informação clínica da testadora, nomeadamente o “relatório clínico psiquiátrico” junto à petição inicial pelos recorrentes, de 21/7/2006, sobrepondo-se a sua convicção à convicção adquirida pelo tribunal de 1.ª instância (com alegada violação do art. 607º, 5, do CPC). Em particular, os Recorrentes sustentam que a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no sistema da livre apreciação da prova, deve ceder perante a decisão proferida em 1.ª instância, tendo em conta os princípios da imediação, da oralidade e dessa apreciação livre.

Pois bem – o que os Recorrentes alegam é um uso ilícito ou indevido dos poderes atribuídos pelo art. 662º, 1, do CPC, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC.

Resulta da análise da apreciação da impugnação da matéria de facto – como fica claro a págs. 12 e ss – que o acórdão recorrido procedeu a uma análise do alcance da prova documental e testemunhal (nomeadamente de especialistas médicos), assim como de depoimento de parte, utilizando um método relacional, dotado de crítica racional e alinhando a prova considerada na sua globalidade para retirar conclusão sobre a impugnação feita sobre os factos provados em 1.ª instância sob as alíneas j) a n). Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise, antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda a modificação desses factos para a natureza de não provados.

Nessa convicção não se exarou dúvida assente em depoimentos contraditórios, que nos remetesse para alguma das hipóteses do art. 662º, 2, do CPC, nomeadamente quando se confrontou com a prova testemunhal que pudesse contrariar o resultado conferido pelo aludido relatório psiquiátrico de médico já falecido. Nem se fez uso ilegítimo de poderes relativos a factos instrumentais ou complementares previstos, a título inquisitório, no art. 5º, 2, do CPC.

No entretanto, esclareceu-se:

“O que está em causa não é tanto saber se EE padecia de esquizofrenia ou qualquer outra doença incapacitante, psicótica ou não, mas se se encontrava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa, ainda que transitoriamente, no ato de testar.”

E, a final, rematou-se:

“Tudo ponderado, assim recorrendo também as boas regras da experiência comum, quanto mais não seja pela dúvida séria que nos fica relativamente à matéria impugnada, altera-se totalmente a mesma para NÃO PROVADO, passando a integrar o acervo dos factos não provados.”

Assim se corporizou e assumiu a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, ainda que sem as virtualidades da 1.ª instância, mas com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo [--]. Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova – v. arts. 396º, CCiv.; 607º, 5, 466º, 3, CPC 2013 –, estamos perante actuação insindicável nos termos dos arts. 662º, 4, e 674º, 3, 1.ª parte, do CPC. Actuação insindicável esta por, em alternativa, não ter sido alegado nesta sede de revista, nos termos do art. 682º, 2, do CPC – «A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º.» –, como hipótese residual em face da regra de cognição do STJ prevista pelo art. 682º, 1, do CPC – «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.» –, a actuação excepcional em revista (2ª parte daquele art. 674º, 3) da reapreciação da matéria de facto com base na invocação de violação de norma legal expressa que exija prova vinculada para a existência do facto ou de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, considerados como vícios de direito em sede de direito probatório a conhecer no âmbito dos poderes do STJ [---]. Nem se vislumbra que tenha havido este desrespeito na sua ponderação quanto à força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material – no caso, em esp. quanto aos documentos clínicos, o art. 376º, 1, do CCiv.

Por outro lado, é manifesto que a fundamentação trazida pelo acórdão recorrido não se esvaiu em considerações genéricas ou alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para concluir sobre o mérito de tal impugnação; antes deu-se cumprimento aos princípios reitores do art. 662º, 1 («deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa»), em ligação com o art. 607º, 4 e 5, do CPC.

Por fim, enfatize-se que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando ao interessado a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância (nomeadamente com o apoio da gravação dos depoimentos prestados, juntamente com os demais elementos probatórios que fundaram a decisão em primeiro grau) para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida. [---] Sempre – e este é o ponto – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância [---].

Importa, por isso, concluir que, como se apreende nas Conclusões pertinentes da revista, a discordância dos Recorrentes assenta na valoração feita pela Relação quanto aos meios de prova analisados. Trata-se, apenas e só, de uma questão de alegado erro de julgamento na livre apreciação das provas, insusceptível de conhecimento e sindicação por parte do STJ. Neste sentido, não pode este tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando – como reconhecem os Recorrentes – estão em causa meios de prova sujeitos a livre apreciação e, ademais, não se desrespeitou o valor tarifado a meio de prova, como é a situação sob apreciação – um caso de (re)apreciação sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, se e enquanto tal insindicável de acordo com os arts. 674º, 3, e 662º, 4, do CPC."

MTS