"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/03/2023

Jurisprudência 2022 (146)


Objecto do processo;
factos essenciais; causa de pedir*


1. O sumário de STJ 13/7/2022 (17909/17.5T8PRT-A.P2.S1) é o seguinte:

I – Não sendo caso de total inexistência, só em casos nos quais de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso, cabendo no demais ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes e sem embargo do respeito pelo contraditório.

II – Nos termos do n.º 1 do art.º 5.º CPCiv, as partes têm de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

III - Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (n.ºs 2 als. a) e b) do art.º 5.º).

IV – A simulação dos sujeitos do negócio (interposição fictícia) constitui uma modalidade da simulação relativa, implicando o intuito de enganar terceiros, facto esse essencial para a caracterização da causa de pedir.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A decisão da Relação merece um pequeno transcurso sobre a noção de factos essenciais, factos complementares ou concretizadores e factos instrumentais, tal como hoje constam do disposto nos n.ºs 1 e 2, nas suas diversas alíneas, do art.º 5.º CPCiv.

Referem os preceitos que as partes têm de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

Para lá desses factos, o juiz pode ainda considerar:

- factos complementares ou concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, desde que resultem da discussão da causa e desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem;

- factos instrumentais que resultem da discussão da causa.

Ora, os factos essenciais, único dependentes exclusivamente de alegação, são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo.

Fazendo uso de uma distinção antiga do processo civil português, são os factos que permitem a substanciação do pedido.

Ora, quais são os factos que, no caso dos autos, permitem a oposição à execução?

Tais factos encontram-se sintetizados no art.º 14.º da petição de embargos:

“Em conclusão é manifesta a existência de simulação, pois a Exequente apenas formalizou o contrato de mútuo em causa, através da interposição fictícia dos aqui devedores, com vista a financiar a Sociedade I..., S.A., e assim conseguir que a mesma não ficasse numa situação de incumprimento evitando assim e igualmente a existência de imparidades que iriam afectar o seu balanço.”

Ou seja – factos essenciais são os que permitam concluir pela simulação do contrato, por via da interposição fictícia dos ora Embargantes.

E não há dúvida de que pode ocorrer interposição fictícia de pessoas quando o intermediário apenas empresta o seu nome, no quadro da contratação, visando ocultar as relações jurídicas estabelecidas, mas – e esse é um ponto decisivo – desde que tal implique acordo simulatório entre as partes a quem o negócio interessa e o intermediário aparente maxime desde que tal implique o intuito de enganar terceiros.

Na verdade, a simulação dos sujeitos do negócio constitui uma modalidade da simulação relativa – art.ºs 240.º n.º1, 241.º n.º1 CCiv e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pg. 186.

Ora, foi o intuito de enganar terceiros que não defluiu minimamente do teor do petitório ou dos articulados, integrando tal intuito um facto essencial para a caracterização da causa de pedir, independentemente da forma como a mesma causa de pedir se poderia complementar ou caracterizar.

Evitar imparidades no balanço é uma finalidade lícita, corresponde a conveniências subjectivas e insindicáveis do outorgante – outra coisa, diferente, é o objectivo de enganar a entidade reguladora ou outrem (matéria que deveria ter sido alegada, a fim de que a interposição fraudulenta pudesse dizer-se integrada).

Portanto, não tendo sido alegado o facto essencial, o mesmo não poderia ter sido considerado na sentença, não cabendo a desconsideração da decisão da Relação de afastar o citado facto 15.º do elenco dos provados.

Sublinhe-se também que o acordo simulatório teria que abranger o referido “intuito de enganar terceiros”, o que também nunca resultaria do singelo facto 15.º aludido (e provado em 1.ª instância).

Em conclusão, não existiam factos essenciais alegados que permitissem a conclusão dos factos considerados provados em 1.ª instância n.ºs 15.º e da parte final do n.º 13.º, razão pela qual nada existe que apontar à desconsideração de tais factos ou segmentos factuais na Relação.

Como salientou adequadamente essa 2.ª instância:

“Os embargantes vincularam-se livremente a obter, por si próprios e em seu nome, o financiamento e, também livremente, a ficar por si próprios responsáveis pelo seu pagamento, dando até de hipoteca, para garantia de tal pagamento, o prédio urbano de sua propriedade referido sob o ponto 3.1.8. dos factos provados. Tê-lo-ão feito, com certeza, devido ao facto de terem algum especial interesse na vida e na situação económica daquela sociedade (não obstante não estar referido na matéria de facto da sentença, note-se que são os próprios embargantes que afirmam no artigo 3º da petição inicial que aquela sociedade, ao tempo da celebração do contrato de financiamento, era administrada pelo embargante AA).”

(…) “Como tal, o banco financiador não quis contratar com um terceiro mas sim com os embargantes e por causa de a garantia de patrimonialidade do crédito concedido ficar assegurada com a hipoteca de prédio urbano destes.”

“O facto de ambos os outorgantes saberem (pontos 11 a14 dos factos provados) que o dinheiro iria ser utilizado para pagar dívidas da sociedade da qual o embargante marido era administrador, isso apenas diz respeito à utilização posterior do dinheiro e não “transforma” aquele contrato num contrato com a sociedade nem num contrato para enganar quem quer que seja.”

Ou poderá mesmo citar-se a sentença de 1.ª instância:

“Não deve confundir-se a interposição fictícia com a interposição real, que se verifica quando alguém conclui um negócio jurídico em seu nome, mas por conta ou interesse ou a favor de outrem, pelo que os direitos e obrigações emergentes do negócio se produzem em relação àquele que, todavia, se obriga a transferir os direitos para esse outro”.

Não existia assim fundamento para a afirmação de interposição fictícia de pessoas, ficando prejudicada a apreciação de abuso de direito por parte dos Embargantes, a qual resultaria em inútil obiter dictum.


*3. [Comentário] Nada há a objectar ao decidido no acórdão; pelo contrário, há que salientar a excelente definição de factos essenciais que consta do sumário elaborado pelo Relator:

"Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (n.ºs 2 als. a) e b) do art.º 5.º)."

É escusado sublinhar que da definição dada de factos essenciais resulta que os factos complementares não são factos essenciais, ou seja, não integram a causa de pedir. Tudo certo, portanto.

MTS