"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/03/2023

Jurisprudência 2022 (144)


Declarações de parte;
factos a provar; discriminação


I. O sumário de RL 31/5/2022 (6660/21.1T8LSB-A.L1-7) é o seguinte:

1 – A exigência prevista no artigo 452º, n.º 2 do Código de Processo Civil quanto à indicação discriminada dos factos sobre que há-de recair o depoimento de parte, aplicável ex vi artigo 466º, n.º 3 do mesmo diploma legal às declarações de parte, não é meramente formal, resultando de um dever de cooperação para com o Tribunal, que deve controlar se os factos escolhidos são passíveis de confissão e/ou factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, para além de tal indicação assegurar o contraditório e a organização da produção de prova no julgamento.

2 – “Discriminar” significa, em tal contexto, que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica, como, por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação.

3 – Incumprido o ónus de discriminação dos factos, não deve ser rejeitado de imediato o requerimento, cumprindo ao Tribunal convidar a parte requerente a suprir tal deficiência.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Cumpre [...] aferir se era lícito ao Tribunal a quo indeferir as diligências de prova requeridas – declarações de parte da ré ..., Lda., na pessoa do seu legal representante e depoimento de parte da autora e da segunda ré – com fundamento na inobservância do estatuído no art.º 452º, n.º 2 do CPC, aplicável às declarações de parte ex vi art.º 466º, n.º 2 do mesmo diploma legal. [...]

Conclui-se, pois, que, no caso, tendo as partes apresentado os seus requerimentos probatórios nos respectivos articulados, tiveram ambas a oportunidade de quanto a eles se pronunciarem e estavam necessariamente cientes, porque patrocinadas por mandatário judicial, da possibilidade de admissão ou rejeição dos meios de prova oferecidos, pelo que a decisão de indeferimento, bem ou mal fundamentada, baseada em falta de reunião dos pressupostos para a sua proposição, não pode ser entendida como uma decisão-surpresa, porque inesperada ou sequer ponderada pelas partes, ainda que dela estas discordem.

Questão distinta é, porém, a de saber se o fundamento invocado pelo Tribunal a quo para a sua rejeição merece acolhimento legal.

Apesar de os regimes não serem idênticos, dado que o das declarações de parte é decalcado, parcialmente, do regime aplicável ao depoimento de parte, iniciar-se a abordagem da questão a partir deste.

O depoimento de parte constitui um meio processual cujo objectivo principal é o de provocar e obter de alguma das partes a confissão judicial - cf. art. 352º do Código Civil e art. 452º, n.º 1 do CPC.

A lei exige [...] que o requerente que opte por este meio de prova indique logo, de forma discriminada, os factos sobre os quais o depoimento há-de recair.

E, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1, “esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão. O seja, estamos aqui perante algo bem diverso das declarações de parte.” [...]

A questão que se coloca, pois, é de saber se, à luz do regime vigente, a não indicação discriminada dos factos sobre os quais o depoimento deve recair determina a imediata rejeição do meio de prova.

O Tribunal recorrido entendeu que tal incumprimento era determinante da rejeição, tendo indeferido quer o depoimento de parte requerido, quer as declarações de parte da requerente, com tal motivo.

Já na vigência do CPC de 1961 se entendia, à luz do princípio da direcção do processo e do inquisitório (art.º 265º), que na falta de discriminação o juiz deveria convidar a parte requerente a fazê-la.

Assim se pronunciava Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, 3ª Edição Revista e Actualizada, 2001, pág. 110:

“O requerimento há-de descriminar [sic] os factos, isto é, indicá-los um por um, directamente, ou indirectamente por referência à base de facto que o contenha (se esta peça já estiver elaborada no processo) ou ao artigo do respectivo articulado onde tenha sido referido, a remissão a toda a matéria articulada, ou a todos os factos quesitados, não é suficiente. Na falta de discriminação parece que o juiz deve convidar a parte requerente a fazê-la.”

E também Carlos Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 387 assim concluía:

“O n.º 2 mantém, no essencial, o ónus, que já recaia sobre a parte que requer o depoimento da contraparte, traduzido na necessidade de indicar logo discriminadamente os factos sobre que há-de recair.
 
Atenua-se, porém, o efeito preclusivo […] cumprindo ao juiz convidar a parte a discriminar mais claramente o objecto do depoimento requerido, ao menos quando a falta cometida não traduza culpa grave […]”

Nesse sentido, cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1-06-2004, processo n.º 1014/04-3.

Actualmente, não se vislumbram motivos para alterar tal posição, tanto mais em face dos poderes/deveres de gestão processual conferidos ao juiz (cf. art.º 6º do CPC), de ondem emanam pilares fundamentais do processo civil como o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais. Isto é, “o direito adjectivo só existe porque existe direito substantivo integrado por normas que, de modo abstracto e generalizado, concedem direitos, fixam obrigações ou impõem ónus ou limitações. Em caso de conflito de interesses, impõe-se a intervenção reguladora do juiz com funções de tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente relevantes.” – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 32.

Neste enquadramento, não se suscitam especiais dúvidas quanto à necessidade de o juiz convidar a parte a discriminar os factos sobre que há-de recair o depoimento de parte quando aquela tenha apenas remetido para toda a matéria de facto controvertida.

José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem, op. cit., pág. 285:

“Não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento, o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação. Com efeito, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância dum ónus processual, que é a preclusão.”

No sentido de que o tribunal deve convidar a parte a corrigir o lapso decorrente de uma indicação efectuada, basicamente, para toda a matéria do seu articulado, sem rigor, cuidado ou diligência e sem qualquer esforço de discriminação, deixando para o tribunal essa tarefa, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1 e de 21-11-2019, processo n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1, este a propósito das declarações de parte; refutando, contudo, o dever de convite ao esclarecimento, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2013, processo n.º 2629/11.2TBBCL-A.G1, embora com um voto de vencido, no sentido de que o princípio da cooperação justificaria o convite ao aperfeiçoamento.

Idêntica ponderação cabe efectuar relativamente ao requerimento para prestação de declarações de parte.

Nos termos do art.º 466º, n.º 1 do CPC, “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, aplicando-se-lhes, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.

A remissão para as normas que regulam o depoimento de parte – art.ºs 456º e 465º do CPC – pode suscitar dificuldades, parecendo, contudo, não existir actualmente especial controvérsia quanto ao dever de a parte que pretende prestar declarações indicar os factos sobre que irá depor, não obstante entender-se que, ainda que não se adira a tal exigência, sempre deverá existir “uma delimitação mínima sobre o objecto do depoimento, até para permitir ao juiz imprimir determinada cadência e precisão na condução da inquirição, ao que acresce que as declarações nesta sede apenas poderão respeitar a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo”.

Também aqui a posição doutrinária e jurisprudencial tem sido no sentido de que a falta de indicação no respectivo requerimento dos factos sobre que a parte irá depor deve ser suprida mediante convite judicial, nunca podendo ser motivo de indeferimento – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 531.

Também Rui Pinto esclarece que a remissão para o estabelecido quanto ao depoimento de parte, com as necessárias adaptações, conduz a que o procedimento das declarações de parte seja desenhado sobre o procedimento do depoimento de parte, com exclusão de preceitos para os quais haja regulação específica (cf. art.º 466º, quanto à legitimidade, objecto e oportunidade da declaração), de modo que “no requerimento a parte deve indicar, de forma discriminada, os factos sobre que hão de recair as suas declarações (cf. artigo 452º, n.º 2) […] Não tendo feito tal indicação “deve o juiz convidar a parte a fazê-la” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume I 2018, pág. 676; ao que se depreende, neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 309.

E ainda, Luís Filipe Pires de Sousa, in As Declarações de Parte. Uma Síntese, Abril de 2017, pp. 10-11:

“Acompanhamos, neste circunspecto, o raciocínio de MARIANA FIDALGO quando afirma que: «(…) consubstanciando-se as declarações de parte num interrogatório dirigido pelo juiz – e não pretendendo ser este um momento em que é simplesmente concedida a palavra às partes, para alegarem à sua vontade – urge que haja um fio condutor na inquirição, que se traduz na indicação desses factos que a parte pretende ver provados. Aliás, tendo este meio de prova lugar somente mediante requerimento da própria parte, de outra forma não se conceberia, sob pena de, desconhecendo o tribunal a intenção probatória da parte, não só não poder avaliar a necessidade de tal meio de prova, como não poder, de todo, proceder à referida inquirição.»

A omissão da indicação dos factos sobre os quais recairão as declarações de parte não constitui fundamento de indeferimento do requerimento, dando – isso sim – azo a um despacho de aperfeiçoamento – cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.4.2014, Helena Melo, 3310/13, de 7.1.2016, Jorge Seabra, 57/14, www.colectaneadejurisprudencia.com, da Relação do Porto de 18.12.2013, Rodrigues Pires, 114/09, da Relação de Coimbra de 17.1.2017, Carlos Moreira.”

Neste sentido, vejam-se os seguintes arestos:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2015, processo n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1 -“[…] tal como há muito é entendimento praticamente uniforme, quer da jurisprudência, quer da doutrina, ainda que tendo por objecto o depoimento de parte, a solução que vem sendo defendida é a de, na falta de indicação do objecto declarações, deve então o juiz convidar a parte requerente a proceder à especificação do respectivo objecto, solução que […] “melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências”;

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-12-2013, processo n.º 114/09.1TBETR-A.P1 – “O nº 2 do art. 466º estatui que às declarações das partes se aplica, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior que se refere à prova por confissão das partes. No nº 2 do art. 452º, inserido nesta secção, preceitua-se que «quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar logo, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair.» Daqui decorre que a parte ao requerer a prestação de declarações deverá indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais tais declarações hão-de recair, que sempre terão que ser factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo. Não tendo feito tal discriminação, a solução não será no sentido do seu indeferimento, mas sim no do juiz convidar a parte requerente a fazê-la, solução que, de resto, melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências.”;

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-11-2019, processo n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1 – “No requerimento em que se peçam declarações de parte, têm de ser discriminados os factos a que se irão reportar, podendo tal discriminação ser genérica em relação ao respetivo articulado. Caso a parte não o faça, deve ser convidada pelo tribunal a fazê-lo com a cominação de, não aceitando o convite, não serem admitidas tais declarações.”

Em conclusão, as diligências de prova requeridas pela ré/apelante, tendo sido solicitadas em devido tempo, mas não tendo observado a imposição legal de discriminação dos factos sobre os quais o depoimento de parte e as declarações de parte iriam incidir, desconhecendo-se, por essa razão, o respectivo objecto - porque não indicado -, não poderiam ter sido indeferidas - eventualmente até, por juízo de impertinência e/ou inutilidade, o que não foi o caso -, pois que perante a falta de indicação do seu objecto, deveria o Tribunal recorrido ter convidado a parte requerente a proceder à sua especificação.

Consequentemente, concluindo-se pela procedência da apelação, impõe-se a revogação da decisão apelada, devendo a senhora juíza a quo notificar a parte requerente para, em prazo, indicar qual o objecto das declarações de parte a prestar e do depoimento de parte requerido, seguindo-se então e com base naquele que venha a ser o objecto das diligências probatórias requeridas, a prolação da decisão que se justificar (de admissão ou de não admissão) referente aos requeridos meios de prova. Cumpre, pois, aferir se era lícito ao Tribunal a quo indeferir as diligências de prova requeridas – declarações de parte da ré ..., Lda., na pessoa do seu legal representante e depoimento de parte da autora e da segunda ré – com fundamento na inobservância do estatuído no art.º 452º, n.º 2 do CPC, aplicável às declarações de parte ex vi art.º 466º, n.º 2 do mesmo diploma legal."

[MTS]