"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/03/2023

Jurisprudência 2022 (139)


Litigância de má fé;
aplicação da lei no tempo


1. O sumário de STJ 7/6/2022 (1986/06.7TVLSB-D.L1.S1) é o seguinte:

I – No regime actual do Código de Processo Civil de 2013, a eventual conduta de litigante de má fé da autora, sociedade comercial, ser-lhe-á directamente imputável, respondendo o seu património, em termos gerais, pelas custas, multas e indemnização em que, a esse título, deva ser condenada, como decorre da norma dos actuais art.ºs 542.º n.º 1 e 544.º CPCiv, este último ainda que interpretado a contrario sensu.

II – Mesmo levando em conta o disposto no art.º 5.º n.º 1 do diploma que aprovou o Código de Processo Civil, determinando que este Código é “imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes”, a face retrospectiva negativa do princípio da aplicação imediata da Lei Nova cobre claramente as causas já encerradas, as causas cobertas por caso julgado, como é o caso do acórdão anterior que denegou a responsabilidade da sociedade em matéria de litigância de má fé, afirmando a responsabilidade dos seus representantes legais, entre eles se encontrando o agora Recorrente.

III - Mostrando-se a acção encerrada, na matéria abrangida pelo julgado, e não pendente, portanto, a Lei Nova não cabe ser aplicada à matéria dos autos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Subscrevemos inteiramente o discorrido fundamental do acórdão da Relação de 2016, agora quanto à pessoa do ora Recorrente, e reportando-se à decisão primordial, também da Relação, em 2013:

“(…) A decisão proferida pela Relação, que revogou a condenação da sociedade Autora como litigante de má fé e determinou, atento o disposto no art.º 458.º desse diploma que os autos baixassem à 1.ª instância para que aí se providenciasse pela notificação do legal representante daquela a fim de que o mesmo se pronunciasse sobre a questão da litigância de má fé, devendo em seguida, de novo, apreciar-se da existência ou não de litigância de má fé e consequências respectivas, fez caso julgado formal (art.ºs 619.º e 620.º do CPCiv)”.

Escreveu-se, agora, na anterior decisão de 2013 (cf. pgs. 45 e 46 deste último acórdão):

“Dispõe o artº 458º do CPC [de 1961] “quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa”.

“Do referido preceito legal deriva que, sempre que, nos casos de litigância de má fé, a parte seja um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade pelas custas, multa e indemnização recai sobre o representante que esteja de má fé na causa.”

“Como refere o Ac.R.C. de 10/11/2009, pº 1624/08.2TBCBR-A.C1, não se trata aqui “de um mero direito de regresso relativamente ao seu representante que esteja de má fé na causa, por forma a fazer repercutir na esfera jurídica deste os montantes que tenham sido impostos àquelas entidades a título de multa e indemnização por litigância de má fé. Também não se prevê uma responsabilidade alternativa, no sentido de responder o representante de qualquer destas entidades que esteja de má fé na causa ou, quando se não apure a existência de representante de má fé na causa, a responsabilidade do incapaz, da pessoa colectiva ou da sociedade. Antes se determina, salvo melhor opinião, que nestes casos o sujeito passivo da responsabilidade por litigância de má fé nunca é a parte que seja incapaz, pessoa colectiva ou sociedade, mas o seu representante que e steja de má fé na causa”.

“E do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça consta que a parte “pretender a condenação por litigância de má fé, sendo a outra parte uma pessoa colectiva, não poderá pedi-la acusando-a simplesmente da prática de actos que integram tal má fé: terá de referir concretamente a pessoa singular a quem imputa a actuação maliciosa, formulando um pedido, autónomo em relação à sociedade, de condenação do seu representante, indicando os actos que fundamentam esse pedido”.

“Ora, no caso, quem intenta a acção é uma sociedade comercial.”

“Logo, face ao que exposto fica, resulta patente que a sociedade Recorrente não é sujeito passivo da responsabilidade emergente da litigância de má fé.”

“Essa responsabilidade recai sobre o representante legal da Recorrente que esteja de má fé na causa.”

“Só que, considerando o disposto no art.º 3.º. n.º 2 do CPC [de 1961], a fim de evitar a denominada decisão surpresa, tal responsabilidade apenas poderá ser efectivada após o exercício do contraditório.”

“Assim sendo, nesta parte, não poderá o recurso deixar de proceder (…).”

E assim, expressamente, o acórdão revogou a sentença na parte em que condenou a ali Recorrente/Autora em multa e indemnização, como litigante de má fé, tendo determinado a notificação do legal representante da Autora para se pronunciar sobre a existência de litigância de má fé e consequências respectivas.

É certo que, no regime actual do Código de Processo Civil de 2013, a eventual conduta de litigante de má fé da autora, sociedade comercial, ser-lhe-ia directamente imputável, respondendo o seu património, em termos gerais, pelas custas, multas e indemnização em que, a esse título, devesse ser condenada, como decorre da norma do actual art.º 544.º CPCiv, mesmo que interpretado a contrario.

E certo é ainda que, nos termos do art.º 5.º n.º 1 do diploma que aprovou o Código de Processo Civil, este é “imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes”.

Mas, se é assim, não menos certo é que a face retrospectiva negativa do princípio da aplicação imediata da Lei Nova cobre claramente as causas já encerradas, as causas cobertas por caso julgado (cf. A. Anselmo de CastroDireito Processual Civil Declaratório, I, 1981, pg. 59).

Ora, como visto, o julgado nos presentes autos denegou a responsabilidade da sociedade em matéria de litigância de má fé, afirmando a responsabilidade dos seus representantes legais, entre eles o ora Recorrente.

Encontrando-se a acção encerrada, na matéria abrangida pelo julgado, e não pendente portanto, a Lei Nova não cabe ser aplicada à matéria dos autos.

A concessão da revista, nos presentes autos, implicaria o absurdo de, afirmada e indiscutida a existência de litigância de má fé, inexistisse um eventual responsável por essa litigância, posto que a sociedade Autora foi já absolvida do pedido respectivo.

A questão não se coloca assim no cumprimento retroactivo de quaisquer normas legais, mas apenas no cumprimento do caso julgado anterior."

[MTS]