1. O sumário de RC 28/6/2022 (3/00.5TELSB-F.C1) é o seguinte:
A recorrente pediu a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por outra que determinasse o prosseguimento da acção que ela propôs - acção de separação judicial de bens –, fosse no tribunal onde pende a execução, fosse noutro tribunal, e que suspendesse o processo executivo até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, com os ulteriores termos prescritos no artigo 740.º, n.º 2, do CPC.
Recorde-se que o despacho sob recurso julgou verificado o erro na forma do processo e anulou todo o processado por considerar que a acção instaurada pela autora, ora recorrente – acção de separação judicial de bens - não era o meio processual próprio para requerer a separação de bens a que se referia o n.º 1 do artigo 740.º do CPC e que a situação em causa configurava um erro na forma de processo gerador da nulidade de todo o processo.
· O inventário para separação de meações só constitui o meio adequado para requerer a separação de bens a que se refere o n.º 1 do artigo 740.º do CPC no tocante às situações conjugadas dos artigos 10.º do Código Comercial e do 1696.º do CC, quando reportadas à penhora dos processos de insolência e de falência;· Se o legislador, ao inserir, no artigo 740.º do CPC, o conceito jurídico de separação de bens quisesse restringi-lo à mera instauração de um inventário, tê-lo-ia dito de forma a que a sua leitura e interpretação não deixasse, como deixam, lugar a dúvidas;· Que o artigo 740.º do CPC não pode aplicar-se a qualquer tipo de penhora, mas apenas à dos bens comuns de casais em sede de execução movida contra um só dos cônjuges;· Que a separação judicial de bens teria que ser previamente requerida pela parte e decretada judicialmente.
Apreciação do tribunal
Pelas razões a seguir expostas, é de entender que a acção de separação judicial de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil não é o meio processual próprio para requerer a separação de bens tida em vista pelo n.º 1 do artigo 740.º do CPC. Porém, ao contrário do que decidiu o despacho recorrido, a propositura de tal acção pela ora recorrente não é de considerar como erro na forma do processo. É de tratar como erro no meio processual, sujeito ao regime do n.º 3 do artigo 193.º do CPC.
Vejamos.
A alegação da recorrente remete-nos para a interpretação do n.º 1 do artigo 740.º do CPC na parte em que se refere à separação de bens. E a questão interpretativa a que importa dar resposta é a de saber se “a separação de bens” a que se refere o preceito é a que é levada a cabo mediante inventário para separação de bens comuns (alínea d) do artigo 1082.º do CPC) ou é a separação judicial de bens a que se refere o artigo 1767.º do Código Civil.
Na letra do preceito cabe, sem grande esforço interpretativo, tanto a separação de bens efectuada por inventário, como a acção judicial de separação de bens.
Sucede que, na interpretação da lei não deve atender-se apenas à respectiva letra, mas reconstituir o seu pensamento legislativo, tendo em conta, entre outras circunstâncias, a “unidade do sistema jurídico” (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil).
Ter em conta a unidade do sistema jurídico significa, socorrendo-nos das palavras de Manuel Domingues de Andrade, que “[….] cada texto legal deva ser relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte. É o cânone hermenêutico da coerência e da totalidade.” (Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 28).
Um dos textos da lei que está directamente conexionado com o n.º 1 do artigo 740.º do CPC é o artigo 1135.º do CPC, pois diz-se nele qual o regime a seguir se for requerida a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal. E o regime a seguir é o do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, com as especificidades previstas nos números seguintes.
Segue-se do exposto que a conjugação do n.º 1 do artigo 740.º do CPC com o n.º 1 do artigo 1135.º do mesmo diploma aponta no sentido de que o meio processual próprio para requerer a separação de bens tida em vista por aquele preceito é o inventário para partilhar bens comuns do casal.
Depõe também neste sentido a circunstância de a separação prevista no artigo 1767.º do CC ter razões diferentes das da separação prevista no n.º 1 do artigo 740.º do CPC. A separação prevista naquele preceito é uma providência a favor do cônjuge que está em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge. Neste, a separação visa concretizar a responsabilidade da meação nos bens comuns pelas dívidas que impendem apenas sobre um dos cônjuges (2.ª parte do n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil). Socorrendo-nos das palavras de Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, a separação judicial de bens é uma “separação judicial autónoma”, que se distingue da separação judicial de bens não autónoma, em que se visa outro fim e em que a separação de bens é meramente reflexa, como é o caso da separação de bens decretada no âmbito de uma execução por dívida da responsabilidade de um dos cônjuges (Curso de Direito de Família, Volume I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, página 552).
Pelo exposto, interpreta-se o n.º 1 do artigo 740.º do CPC, na parte em que se refere à separação de bens, no sentido de que o meio processual próprio para requerer a separação de bens é o inventário para partilha dos bens comuns do casal, que segue o regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, com as especificidades previstas no artigo 1135.º do CPC.
Interpretado o n.º 1 do artigo 1740.º do CPC com este sentido é de concluir que o meio que a ora recorrente usou para requerer a separação dos bens comuns - a separação judicial de bens com o fundamento previsto no artigo 1767.º do CPC – não era o meio processual próprio para o efeito.
Vejamos, de seguida, as razões pelas quais entendemos que o desajustamento entre o meio processual utilizado e o apropriado não é de caracterizar, no entanto, como erro na forma do processo.
Ocorre erro na forma do processo quando a forma indicada pelo autor na petição não corresponde àquela que a lei prevê para a pretensão deduzida. Tal sucederá, servindo-nos dos exemplos dados por Miguel Teixeira de Sousa, em CPC online, quando é aplicada: (i) a forma errada do processo comum; (ii) a forma comum em vez da forma especial, ou vice-versa; (iii) a forma errada do processo especial; (iv) a forma errada de procedimento cautelar em vez de processo comum”.
Não foi neste erro que incorreu a autora, ora recorrente. O erro da autora, ora recorrente, foi o de socorrer-se de um meio errado para requerer a separação de bens a que se refere o n.º 1 do artigo 740.º do CPC.
A situação dos autos é semelhante à que acontece quando a parte interpõe recurso de um despacho do relator em vez de reclamar para a conferência ou quando a parte se opõe à execução por meio de requerimento em vez de o fazer por meio de embargos de executado. Estas situações configuram erros na qualificação do meio processual utilizado pela parte, sujeitos ao regime do n.º 3 do artigo 193.º do CPC e não ao do erro na forma do processo previsto nos números 1 e 2 do mesmo preceito.
Daqui não segue, no entanto, que seja de atender à pretensão da recorrente, consistente no prosseguimento da acção de separação judicial de bens – no tribunal recorrido ou noutro tribunal - e na suspensão do processo executivo até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.
E não é de atender porque, segundo o n.º 3 do artigo 193.º do CPC, o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte, que é corrigido oficiosamente pelo juiz, determina que se sigam os termos processuais adequados e, no caso, os termos processuais adequados são os do processo de inventário para separação de bens comuns a que se refere a alínea a) do artigo 1082.º do CPC e o artigo 1135.º do Código de Processo Civil.
Sucede que, apesar de, nalguns passos do recurso, sustentar que, na hipótese de a situação ser a de erro na forma do processo, a Meríssima juíza do tribunal a quo tinha o dever de mandar seguir os termos que segundo ela seriam os adequados, a verdade é que o meio processual que a recorrente quer que prossiga é a acção judicial de separação de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil. É o que resulta com clareza da parte final das alegações e das conclusões formuladas sob os números 12, 16. e 19.
Esta pretensão suscita a questão de saber se, em caso de erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte, o tribunal tem o poder de mandar seguir os termos processuais adequados, quando a parte não pretende que se sigam tais termos, mas outros, que não são os adequados.
A resposta a esta questão é negativa. Na verdade, apesar de a letra do n.º 3 do artigo 193.º do CPC não subordinar a correcção do erro ao respeito pela vontade da parte que praticou o acto, tal respeito é imposto pelo princípio dispositivo enunciado na 1.ª parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. Cita-se em abono desta interpretação, Miguel Teixeira de Sousa que, em anotação ao Acórdão Uniformizador n.º 2/2010, de 20-01-2010 – que se pronunciou sobre a convolação de um requerimento de interposição de recurso para um requerimento para a conferência – entendeu que a convolação seja admissível é necessário que estejam preenchidos, além de outros requisitos, “o respeito da vontade da parte que praticou o acto”. [Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Janeiro/Março 2011, página 38].
E assim sendo, se a ora recorrente não quer que o acto que praticou – pedido de separação judicial e bens previsto no artigo 1767.º do Código Civil - seja aproveitado como requerimento inicial de processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal formado por ela e pelo executado, não pode este tribunal determinar que se sigam os termos do inventário.
Em consequência do exposto é de julgar improcedente a pretensão da ora recorrente no sentido do prosseguimento da acção de separação judicial de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil, bem como o pedido de suspensão da execução.
Quanto ao conhecimento da questão suscitada na resposta pelo Ministério Público, ele está prejudicado. Na verdade, uma vez que se considerou que o meio processual próprio para requerer a separação de bens prevista no n.º 1 do artigo 740.º do CPC é o inventário para partilha dos bens comuns do casal e não a acção judicial de separação de bens, não cabe a este tribunal pronunciar-se sobre a competência do tribunal, em razão da matéria, para tal acção."
[MTS]