"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/03/2023

Jurisprudência 2022 (143)


Cumulação de pedidos;
processo de tutela da personalidade


1. O sumário de RP 21/6/2022 (358/21.8T8VNG.P1) é o seguinte:

I - O error in procedendo determina a invalidade ou anulação do ato. O error in judicando conduz à revogação da decisão e ao efeito substitutivo do tribunal de recurso.

II- A razão de ser desta distinção aplica-se também aos atos das partes, havendo uma similitude nos conceitos e desvalor definidores.

III- A petição inicial marca o início do processo e pode comprometer logo todo o seu desenvolvimento.

IV- A nulidade principal traduzida na ineptidão da petição inicial é uma insuficiência estrutural
desta peça que implica que, por ausência absoluta ou ininteligibilidade de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir e do pedido, ou por contradição entre esta e o pedido, ou ainda por cumulação de pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o processo careça de um objeto entendível.

V – A par do direito de ação existe um direito a um processo adequado à tutela do direito material invocado. Nesta medida, emerge o princípio da adequação como conceito estruturante do devido processo legal.

VI- O processo especial de tutela da personalidade corresponde a uma ação declarativa que não se afasta significativamente da forma comum. Não existe obstáculo à cumulação dos pedidos referentes à anulação da venda e à indemnização por responsabilidade civil extracontratual a que corresponde a forma comum do processo, com os pedidos de tutela da personalidade, a que corresponde a forma de processo especial, havendo interesse relevante para a justa composição do litígio e inexistindo inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 186º do CPC que:

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo”.

A nulidade principal traduzida na ineptidão da petição inicial é uma insuficiência estrutural desta peça que implica que, por ausência absoluta ou ininteligibilidade de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir e do pedido, ou por contradição entre esta e o pedido, ou ainda por cumulação de pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o processo careça de um objecto entendível.

A ineptidão da petição inicial é uma excepção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos réus da instância e tal excepção é de conhecimento oficioso do tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil. [...]

O que interessa do ponto de vista da apreciação da causa de pedir é que o acto ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

No caso, o autor diz ser proprietário e legítimo possuidor da fracção autónoma “AB” do prédio sito na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia. Que fracção “D” do prédio está afecta a “utilização efectiva do logradouro instalado no lado esquerdo e nas traseiras do prédio com oito mil quatrocentos e sete metros quadrados de superfície”, sendo zona comum, nos termos do artigo 1421º nº2 a) e nº 3 do Código Civil (CC), em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal e certidão da Conservatória de Registo Predial; (Doc. 3 e 4). Que em Setembro de 2016, os 1ºs RR. descarregaram materiais de construção no logradouro supra referido, usando-o abusivamente desde então, tendo dado imediatamente conhecimento de tais factos ao condomínio (3º R.) – conforme documento ora junto – contando apenas com a sua inércia. Que, presumivelmente, teve lugar uma segunda inscrição na matriz e uma segunda descrição na Conservatória de Registo Predial – confrontem-se os documentos 3 e 4 com os documentos 6 e 7 ora juntos, respectivamente certidão do prédio descrito sob o nº ... e caderneta predial rústica do prédio inscrito sob o artigo rústico ... da União das Freguesias ... e ... (Doc. 6 e 7). Que a área do logradouro referido no artigo 2º e do prédio descrito sob o nº ... e inscrito sob o artigo ... são a mesma realidade: 8407 metros quadrados. Que o prédio duplicado foi participado na Conservatória de Registo Predial em 12/11/2012 e registado a favor dos 1ºs RR. em 06/12/2012, conforme documento 6 e teve origem em contrato de compra e venda – ferido de nulidade – celebrado entre o 1º R. marido e a 2ª R. em que foram, respectivamente, comprador e vendedora; (Doc.8). Que a venda do aludido logradouro, ou parte do mesmo careceria do consentimento de todos os condóminos por importar uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 1419º nº1 e 2 do CC e o A., condómino desde 2010, nunca consentiu qualquer alteração ao título constitutivo. [...] 

Pede que seja:

Declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido;

Ordenado o cancelamento de todos registos relativos a tal prédio;

A 3ª R. condenada no pagamento de 1.500,00€ ao A, quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Desta formulação fáctica colhe-se, sem dificuldade, que o autor pretende defender a posse titulada da zona comum identificada e ser ressarcido pelos danos que o condomínio lhe causou por não ter assumido, em primeira linha, a preservação dessa zona comum, formulando pedidos compatíveis com tal factualidade.

Donde não se terem por verificadas as situações acima elencadas no nº 2 do artigo 186º do CPC que determinam o vício estrutural da ineptidão da petição inicial, a qual é, repete-se, perfeitamente inteligível quanto às causas de pedir e aos pedidos, havendo congruência entre aquelas e estes.

Mais alega o autor na petição inicial que no dia 30 de Julho de 2019, o 1º R. marido instalou na sua habitação duas câmaras de videovigilância com infra-vermelho – uma junto ao vértice do telhado e outra junto à chaminé, conforme deixam perceber os documentos ora juntos (Doc. 10 e 11). Que a câmara instalada junto à chaminé aponta directamente para o acesso ao parque de estacionamento do condomínio, ao passo que a câmara instalada junto ao vértice do telhado aponta para o logradouro referido no artigo 2º – que é uma zona comum. Que no dia 5 de Outubro de 2019, o 1º R. marido procedeu à instalação de mais uma câmara de videovigilância que permitiu filmar o parque de estacionamento do condomínio, conforme documentos ora juntos (Doc. 12 e 13). Que no dia 21 de Outubro de 2019, o mesmo instalou outra câmara de videovigilância junto ao portão de acesso ao logradouro – zona comum do condomínio – conforme documentos ora juntos; (Doc. 14 e 15). Que no dia 14 de Março de 2020, o 1º R. marido instalou mais uma câmara de videovigilância que permitiu filmar a zona de saída dos veículos no condomínio bem como a via pública (Rua ..., ... ... – V.N.Gaia), conforme documentos ora juntos (Doc. 16 e 17). Que no dia 16 de Dezembro de 2020, instalou outra câmara de videovigilância, rotativa, junto ao seu portão, sensivelmente à altura dos postes de iluminação, permitindo-lhe filmar a via pública, a entrada do condomínio e o logradouro – consoante a posição da câmara – conforme documentos ora juntos (Doc. 18 e 19). Que as câmaras supra elencadas não são as únicas existentes no local. Que desde Julho de 2019, por via das filmagens e captação de imagens ilícitas, o 1º R. marido tem vindo a controlar os horários, hábitos e rotinas do A. e respectiva família. Que o 1º R. marido viola reiteradamente e de forma gritante os direitos de personalidade do A., preceitos constitucionais (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa), os artigos 70º, 79º e 80º do CC, inclusivamente praticando, por exemplo, o crime previsto e punido pelo artigo 199º nº2 a) do Código Penal. Que, pela sua gravidade e continuidade, os factos supra descritos têm provocado no A. um enorme desgaste, uma enorme angústia e saturação. Que os danos invocados são graves e efectivos, merecendo a tutela do Direito, nos termos do artigo 496º nº1 do CC, devendo o A. ser indemnizado em quantia nunca inferior a 10.000,00€, ao abrigo dos artigos 483º nº1, 562º e 563º do CC.

Pede que seja:

O 1º R. marido condenado no pagamento de 10.000,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;

O 1º R. marido condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence;

O 1º R. marido condenado no pagamento de quantia nunca inferior a 300,00€ por cada dia de atraso na referida remoção ou reposicionamento, bem como no pagamento de quantia nunca inferior a 2.000,00€ por cada nova infracção (instalação de câmara nos moldes descritos), ao abrigo do artigo 829º-A do CC.

Entendeu-se no despacho recorrido que esta matéria se enquadra no processo especial relativo à tutela de personalidade, conforme prevê o artigo 878.º, do CPC, com tramitação processual específica substancialmente diferente da prevista para a acção declarativa comum, que até ao momento foi seguida, existindo uma incompatibilidade processual de pedidos e não sendo possível ao autor formulá-los conjuntamente.

Atentemos.

[...] O nosso ordenamento jurídico prevê desde a reforma do CPC de 1995 uma cláusula de adequação formal legal genérica.

No actual CPC essa estipulação está no artigo 547º: “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.” e circunscreve-se também na ideia do dever de gestão processual consagrada no artigo 6º do CPC. [...]

No caso os pedidos referentes à anulação da venda e à indemnização por responsabilidade civil extracontratual correspondem à forma comum do processo e os restantes pedidos referentes à tutela da personalidade correspondem a uma forma de processo especial previsto nos artigos 878.º a 880º do CPC.

A adequação processual compagina-se com o disposto no artigo 37º respeitante à coligação de pedidos.

Nos termos deste preceito se aos pedidos corresponderem formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. (nº2)

O juiz deve adaptar o processado à cumulação autorizada. (nº 3). [...]

O processo especial de tutela da personalidade apresenta-se como corolário da exigência constitucional de que a lei deve assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo que lhes seja possível obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou mesmo violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. - nº 5 do artigo 20.º da CRP.

No Processo Civil de 1961 encontrava-se nos artigos. 1474.º e 1475º e assumia a natureza processo de jurisdição voluntária.

O novo código procurou conferir-lhe maior celeridade e eficácia através uma simplificação procedimental e conotando-o de processo urgente.

Como decorre do artigo 879º corresponde a uma acção declarativa que não se afasta significativamente da forma comum.

As especificidades prendem-se com a celeridade que demanda a redução dos prazos:

- “Apresentado o requerimento com o oferecimento das provas, se não houver motivo para o seu indeferimento liminar, o tribunal designa imediatamente dia e hora para a audiência, a realizar num dos 20 dias subsequentes”- nº 1.

- “A contestação é apresentada na própria audiência, na qual, se tal se mostrar compatível com o objeto do litígio, o tribunal procura conciliar as partes”- nº 2.

- “Na falta de alguma das partes ou se a tentativa de conciliação se frustrar, o tribunal ordena a produção de prova e, de seguida, decide, por sentença, sucintamente fundamentada.” – nº 3

Poderia pensar-se que a celeridade deste processo ficaria comprometida com o andamento do processo comum em tudo o que não fosse possível abreviar.

Porém, parece-nos perfeitamente possível proceder a todas as diligências que se impuserem no processo comum sem postergar a urgência do processo especial na medida em que, nos termos do nº 5 do citado artigo 879º, pode em qualquer altura ser proferida uma decisão provisória, irrecorrível e sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio processo.

Desta enunciação resulta que nenhum obstáculo existe à cumulação dos pedidos já que não seguem uma tramitação manifestamente incompatível (antes pelo contrário), havendo interesse relevante para a justa composição do litígio e inexistindo inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente.

Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente procedente a apelação revogando-se o despacho recorrido que considerou inepta a petição inicial e declarou existir uma incompatibilidade processual de pedidos por lhes corresponderem formas de processo diferentes e incompatíveis."

[MTS]