"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/03/2023

Jurisprudência 2022 (151)


Caso julgado;
excepção de caso julgado; autoridade de caso julgado*


1. O sumário de STJ 13/7/2022 (176/21.3BEBRG.G1) é o seguinte:

1) Há que distinguir entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado;

2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;

3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Levanta-se a questão de saber se deverá ser alterada decisão que julgou procedente a exceção de caso julgado. [...]

Atualmente o caso julgado constitui uma exceção dilatória (artigo 577º alínea i) do NCPC), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º nº 2 NCPC).

A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, conforme resulta do artigo 580º NCPC.

Quanto aos requisitos do caso julgado (e da litispendência) diz-nos o artigo 581º NCPC que:

“1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2010, no Processo 392/09.6TBCVL.C1, relatado pelo Desembargador Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt, “A expressão “caso julgado“ é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado“, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega.

Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:

A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas;

A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica). [...]
 
Na verdade, considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e exclui todo o efeito incompatível (…) mas estando judicialmente decidido, por trânsito em julgado, isso mesmo, não pode voltar a apreciar-se tal questão, por se lhe impor a primeira decisão sobre a relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo ou seja com a autoridade de caso julgado (arts.671º nº 1 e 673º do CPC).” [...]

“A propósito dos limites subjetivos do caso julgado, muito embora a regra seja a vinculação entre as partes (eficácia relativa), há casos em que a sentença se projeta na esfera jurídica de terceiros, vinculando-os. Daí que tanto a doutrina, como a jurisprudência, tenham vindo a acolher a distinção entre “eficácia direta” e “eficácia reflexa” do caso julgado.

Neste contexto, assumem eficácia reflexa ou ultra partes, por exemplo as sentenças de anulação ou declarativas da nulidade de negócios, as proferidas em questões de estado, as formadas sobre uma relação jurídica que surge como fundamento de pretensões em ações posteriores (cf., por ex, António Cunha, Limites Subjetivos do Caso Julgado, pág. 14 e segs.).

Para Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.588 e segs.), a eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi decidido entre todos os sujeitos com legitimidade processual, isto é, “quando a ação decorreu entre todos os interessados diretos (quer ativos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (na expressão do art. 2503º § único, CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro”.

No caso que nos ocupa, não há qualquer dúvida quanto à verificação da identidade dos sujeitos em ambas as ações, entendendo o apelante que nem a causa de pedir, nem o pedido são idênticos nas duas ações.

A este propósito, refere-se na decisão recorrida que “Relativamente aos pedidos, são exatamente os mesmos, com exceção da parte final do pedido do ponto II (“violando ostensivamente o alvará de loteamento”) e pedido efetuado em IV (condenação à construção de um novo muro).

Todavia, nesta parte entendemos (à semelhança da posição adiantada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16.03.2017) que há identidade de pedidos, pois, apesar de não haver total coincidência, os pedidos da presente ação estão numa relação de decorrência lógica face aos pedidos da outra ação.”  ( … )

“E aqui chegados, qual é a causa de pedir em ambas as ações?

É exatamente a mesma! Trata-se da factualidade relativa à construção de um muro por parte dos réus, que alegadamente invade uma faixa de terreno da propriedade do autor.

Se tal ocupação do terreno é ilegal ou ilegítima porque viola o direito de propriedade do autor ou porque viola as normas administrativas urbanísticas relativas ao plano de loteamento, já se trata de matéria de direito, ou seja, trata-se das “razões de direito que servem de fundamento à ação”.

Vejamos. [...]

A identidade de pedidos pode, aliás, ser apenas parcial e, ainda assim, ser bastante para que se considerem verificadas a exceção de litispendência ou de caso julgado. Por exemplo, em face de uma anterior sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um determinado prédio, com base num determinado fundamento, (ação de simples apreciação positiva), existe repetição da causa se for proposta uma ação de reivindicação na qual, com base no mesmo fundamento, se pretenda ainda a condenação do réu na restituição do bem.”

A identidade de causas de pedir verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no nº 4. No que tange à noção operativa de causa de pedir para efeitos de litispendência, Mariana França Gouveia, A causa de Pedir na Ação Declarativa, defende que se identifica com o conjunto de factos principais que permitem preencher determinada norma jurídica, de modo que apenas quando noutra ação se aleguem normas que impliquem, pelo menos, um facto principal diferente será diversa a causa de pedir (p. 508). Continua a mesma autora que só haverá exceção de litispendência quando, na segunda ação, não são alegados factos principais diferentes dos alegados na primeira (p. 512) e que, para efeitos de exceção de caso julgado, a causa de pedir será definida “através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada (p. 497), daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz. [...]"

Serve tudo para concluir que bem decidiu a 1ª instância quando considerou verificada a exceção de caso julgado. [...]

De resto cumpre esclarecer que relativamente à conclusão b) da apelação refere o apelante que “a causa de pedir no presente processo consubstanciou-se na invocação de factos, que se subsumem na alínea a) do nº 3 do artigo 13º do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação e no nº 5 do artigo 76º do Plano Diretor Municipal de ..., que conferem ao recorrente um direito subjetivo de caráter real, que acresce ao direito de propriedade e ao direito de usufruto de que é titular” trata-se, manifestamente, de lapso, na medida em que por força do princípio estabelecido no artigo 1306º nº 1 do Código Civil “não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.”

Aliás basta ler os normativos indicados para se perceber a falta de razão do apelante.

Com efeito, os limites de afastamento construções em prédios vizinhos pertencentes a donos diferentes já constam do Código Civil, pelo que a invocação nesta ação de Regulamentos Municipais ou de Planos Diretores Municipais, não tem a virtualidade de extravasar do âmbito da anterior causa de pedir.

Assim sendo, verificando-se, entre a anterior ação e a presente, a identidade dos sujeitos, dos pedidos e da causa de pedir, daí resulta que se mostra verificada a exceção dilatória de caso julgado, que tem como consequência a absolvição dos réus da instância (artigos 576º, 577º i), 580º e 278º nº 1 e) NCPC).

De resto, ainda que assim não fosse – e é – sempre haveria lugar à invocação da autoridade do caso julgado, que se traduziria no mesmo resultado."


*3. [Comentário] A RG decidiu bem o problema da excepção de caso julgado.

No entanto, aproveita-se o ensejo para procurar desfazer algumas confusões quanto à autoridade de caso julgado. No sumário do acórdão escreveu-se o seguinte:

2) A autoridade de caso julgado visa a tutela do prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta;

3) A autoridade de caso julgado não exige, assim, a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil.

Estas afirmações têm de ser vistas com muito cuidado.

Há efectivamente situações em que o que se encontra decidido numa acção é vinculativo para terceiros, ou seja, para quem não foi parte nessa acção. Lembre-se, por exemplo, o disposto no art. 622.º CPC quanto aos efeitos das decisões relativas a estados pessoais e o estabelecido no art. 522.º CC quanto à extensão a todos os devedores solidários de uma decisão absolutória proferida quanto a um deles.

No entanto, não se pode dizer que a autoridade de caso julgado dispensa sempre "a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498º do Código de Processo Civil". A regra é precisamente a inversa: atendendo à garantia do contraditório, a regra é a de ninguém pode ser atingido pelos efeitos de uma decisão proferida num processo em que não foi parte. Dando um exemplo simples (e em relação ao qual há, por vezes, algumas confusões): o que foi definido entre o lesado e o lesante numa acção não pode ser oposto, numa acção posterior instaurada pelo lesante condenado, à sua companhia seguradora.

MTS