"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2023

Jurisprudência 2022 (135)


Excepção de caso julgado;
indemnização contratual; enriquecimento sem causa*


I. O sumário de RE 9/6/2022 (50/21.3T8STR.E1) é o seguinte:

1 – A excepção dilatória do caso julgado implica uma tripla identidade: de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, visando-se, por um lado, evitar a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos e por outro vedar a possibilidade de ocorrer, com a sentença que viesse a ser proferida na segunda acção, uma contradição decisória com a sentença proferida na primeira acção;

2 – Já quando vigora como autoridade de caso julgado o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.


II. Na fundamentação do acórdão -- que foi decidido com um voto de vencida -- afirma-se o seguinte:

"Baixando [...] ao caso concreto, verificamos desde logo que a presente causa foi instaurada em juízo em 07/01/2021, ou seja, subsequentemente ao trânsito em julgado que operou no âmbito do processo n.º 1846/17.6T8LRA, ocorrido na data de 12/06/2020.

Com efeito, recorrendo ao exame da certidão já acima mencionada junta aos autos em 25/10/2021 percebemos que existe identidade de sujeitos entre a presente acção e a acção que correu termos no Tribunal a quo sob o n.º 1846/17.6T8LRA, quer no tocante ao elemento físico ou nominal, quer no tocante ao interesse jurídico que se pretende efectivar em cada um dos dois processos.

De resto, essa identidade não é sequer colocada em questão pela ora Apelante na sua peça recursiva, sendo esta última a Autora em ambas as acções e a ora Apelada Ré nas duas causas.

Quanto ao pedido (ao contrário do sustentado pela Apelante que, porém, não o justifica na peça recursiva), [...] verificamos do cotejo entre as duas ações que o efeito prático-jurídico pretendido pela Apelante em ambas as ações é substancialmente o mesmo, a saber, a condenação da Apelada a restituir-lhe, a título de capital, a quantia de € 72.880,36, acrescida de juros de mora vencidos desde 10/02/2012 (que na primeira causa liquidou em € 22.245,98 e nesta segunda acção, atento o hiato temporal entretanto decorrido desde aquela data, em € 46,026,94) e vincendos desde a citação até efectiva liquidação.

No tocante à identidade de causa de pedir e relembrando mais uma vez a posição doutrinária e jurisprudencial que acima evidenciamos somos em crer que a mesma também se verifica entre o presente processo e a acção que correu termos sob o n.º 1846/17.6T8LRA.

Com efeito, tendo como certo que o complexo factual de que emerge a causa de pedir da acção n.º 1846/17.6T8LRA é o que resulta definitivamente assente no acórdão proferido em 12 de Setembro de 2019 neste Tribunal da Relação de Évora (confirmado posteriormente por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça), certo é também que confrontando aquele elenco de factos com o arrazoado da petição inicial da presente acção se pode concluir NADA acrescentar esta última a tal volume factual definido no acórdão.

Se dúvidas restassem quanto a tal sempre as mesmas se dissipariam através do alegado expressamente pela Apelante no artigo 35.º da petição inicial cujo teor é o seguinte:

“E toda esta factualidade a que atrás se faz referência (renúncia da Autora a todas as vantagens económicas do protocolo, com cessão da posição contratual a pedido e a favor da Ré e custos suportados pela Autora a pedido da Ré na execução da empreitada), tal matéria deverá ter-se por assente, sem necessidade de ulterior prova, configurando autoridade de caso julgado”.

Na verdade, uma leitura medianamente atenta da dita petição inicial permite constatar com facilidade que a Apelante não alega factos, seja a título de factos essenciais constitutivos de causa de pedir, seja de factos complementares, ou meramente instrumentais, em aditamento aos que ficaram definitivamente assentes no âmbito da acção n.º 1846/17.6T8LRA, o que equivale a dizer que os factos que invoca na petição inicial desta acção foram todos sujeitos a apreciação judicial mormente nos arestos proferidos por esta Relação de Évora e pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Dito isto, percebemos que a qualificação jurídica que a Apelante ora sustenta na petição inicial da presente causa assente numa fonte de obrigações diversa, qual seja o enriquecimento sem causa, baseia-se, porém, nos mesmos factos que foram considerados definitivamente assentes e julgados na acção n.º 1846/17.6T8LRA, respaldados na fonte de obrigações contrato, pugnando nesta última a Apelante por indemnização fundada juridicamente em responsabilidade civil contratual derivada de incumprimento por parte da Apelada e naquela outra (a presente acção), em restituição de idêntico capital fundada no mencionado enriquecimento sem causa.

Essa identidade de factos, mormente no tocante a factos principais ou essenciais constitutivos da causa de pedir, conduz-nos necessariamente ao convencimento de que também se verifica entre as duas acções identidade de causa de pedir, uma vez que o que difere em ambas as causas é unicamente a qualificação jurídica que a Apelante conferiu numa e noutra aos mesmíssimos factos essenciais.

Diga-se, aliás, que sendo o instituto do enriquecimento sem causa uma fonte de obrigações que releva a título meramente subsidiário (vide artigo 474.º do Código Civil), e dado que a Apelante até entende que os factos julgados em definitivo na acção n.º 1846/17.6T8LRA (resultantes do alegado, designadamente por si, nos articulados em observância do princípio do dispositivo), lhe permitem fundamentar nesta acção o seu pedido também com base naquele instituto sempre poderia a mesma ter construído o seu petitório na petição inicial daquela primeira acção delineando, desde logo, um pedido subsidiário com base em enriquecimento sem causa, o que não terá logrado fazer. [...]

Uma última palavra para dizer que a Apelante aborda erradamente, na perspectiva das conclusões que retira quer na petição inicial, quer no recurso, a questão da autoridade do caso julgado.

Na verdade, é precisamente porque a matéria factual julgada em definitivo na anterior acção nº 1846/17.6T8LRA, (a qual foi considerada improcedente quanto à pretensão que ora se pretende fazer valer de novo), se impõe com força de caso julgado sobre a presente acção que a mesma não pode voltar a ser objecto de discussão à luz de uma mera diferente qualificação jurídica sendo certo que perante um tal cenário se impõe evitar a repetição da causa através da invocação da excepção do caso julgado, o que a Apelada logrou fazer na respectiva contestação.

Pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova acção de mérito.

Assim, se podemos aceitar que a perda pelo demandante de uma acção fundada juridicamente em responsabilidade civil contratual contra certo réu pode justificar a condenação do mesmo réu em causa subsequente em restituição do que for devido com base jurídica no enriquecimento sem causa, a verdade é que tal só é possível, por só desse modo se contornar a questão da força do caso julgado, desde que na primeira acção o autor não tenha invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento.

O que não ocorre no caso sub judice dado que a Apelante entendeu que os factos julgados definitivamente na acção n.º 1846/17.6T8LRA permitem por si, também, o enquadramento jurídico no instituto do enriquecimento sem causa tendo-os invocando integralmente na presente acção conferindo-lhes tal qualificação jurídica.

Em suma, verificando-se a tripla identidade entre a presente acção e a acção julgada por acórdão anteriormente transitado em julgado, improcedem, pois, as conclusões recursivas da Apelante, não merecendo censura a decisão recorrida."

*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, a RE não atentou num aspecto relevante.

Como se afirma no próprio acórdão, a autora da presente acção teria podido deduzir na anterior acção -- na qual formulou um pedido de indemnização por responsabilidade contratual -- um pedido subsidiário respeitante ao enriquecimento sem causa da demandada.

Ora, o pedido subsidiário tem de ser, por natureza, um pedido diferente do pedido principal. Sendo assim, o que distingue as duas acções são os diferentes pedidos que nelas são formulados, ainda que se possa encontrar em ambas um núcleo factual comum que sustente cada um desses pedidos.

Com esta afirmação não se quer dizer que o que basta para fundamentar um pedido respeitante à responsabilidade contratual seja suficiente para fundamentar um pedido relativo ao enriquecimento sem causa (e, naturalmente, vice-versa). No entanto, saber se os factos alegados pela autora na segunda acção são suficientes para conduzir à procedência do pedido relativo ao locupletamento sem causa, isso é, naturalmente, algo que tem a ver com a apreciação do mérito da causa.

b) Para confirmar o anteriormente referido, atente-se-se numa situação muito simples:

-- Um autor intenta uma acção no qual pede a reivindicação da sua propriedade sobre um imóvel; a acção é julgada improcedente;

-- Nada impede -- nem mesmo a circunstância de, na primeira acção, o autor poder ter formulado um pedido subsidiário de reivindicação do usufruto -- que, após a improcedência da primeira acção, o mesmo autor intente contra o mesmo demandado e baseado nos mesmos factos uma acção de reivindicação do usufruto; os factos que não justificam o reconhecimento da propriedade podem justificar o reconhecimento do usufruto.

O que impede o funcionamento da excepção de caso julgado entre as duas acções é a diferença de pedidos.

MTS