"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/03/2023

Jurisprudência 2022 (137)


"Conflito jurisprudencial"; interposição de recurso;
acórdão-fundamento


1. O sumário de STJ 7/6/2022 (753/20.0T8VNF-I.G1-A.S1) é o seguinte:

I - Invocando-se, como fundamento de recorribilidade, o “conflito jurisprudencial”, tem o recorrente que juntar cópia do acórdão fundamento (cfr art. 637.º, n.º 2, do CPC).

II - Não o fazendo, o recurso será rejeitado, porém, apenas após o recorrente ser convidado a aperfeiçoar a sua alegação recursiva (ou seja, após ser convidado a suprir a omissão de tal junção).

2. Na fundamentação do acórdão (que tem um voto de vencido) afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, o art. 637.º/2 do CPC – ou melhor, a interpretação que do mesmo foi feita – já foi por duas vezes apreciado pelo Tribunal Constitucional, tendo-se aí decidido, quer no Acórdão n.º 151/2020, quer no Acórdão 641/2020 [....], que o mesmo é inconstitucional quando interpretado no sentido de o recurso de revista, com fundamento em oposição de acórdãos, ser imediatamente rejeitado caso o recorrente não junte, com a alegação recursiva, cópia do Acórdão fundamento, ou seja, quando interpretado no sentido de o recurso de revista ser rejeitado sem que, antes, o recorrido haja sido convidado a suprir tal omissão.

Segundo tal jurisprudência do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade não está em o ónus processual – segundo o qual cabe ao recorrente a junção do Acórdão Fundamento – concretamente estabelecido no art. 637.º/2 do CPC ou a cominação – rejeição do recurso – para o incumprimento de tal ónus processual se mostrarem excessivos e desproporcionados: se o recorrente invoca como fundamento de recorribilidade, perante o STJ, uma contradição jurisprudencial, é razoável, segundo o TC, que a lei estabeleça que o mesmo tem o dever de instruir as alegações com os elementos necessários à apreciação do fundamento de recorribilidade invocado; ademais, ainda segundo o TC, não se trata sequer de um ónus particularmente gravoso ou difícil de satisfazer por parte do recorrente.

A inconstitucionalidade está, segundo o TC, em a cominação – rejeição do recurso – para o incumprimento do ónus processual concretamente estabelecido no art. 637.º/2 do CPC ser imediata, sem prévia formulação de um convite ao recorrente para suprir o elemento em falta (para juntar cópia do Acórdão fundamento).

Tal consequência – imediata rejeição do recurso, sem prévio convite à junção – é, segundo o TC, desproporcionada, na medida em que associa à falta de junção da cópia do Acórdão fundamento a definitiva perda do direito a recorrer, por razões que têm na base uma mera omissão formal.

“(…) Tal omissão – só por si – tem um caráter marcadamente secundário, pois é compatível com casos (…) em que o acórdão-fundamento está identificado com referências objetivas suficientes (tribunal, data e número de processo) nas alegações de recurso. Assim – só por si, insiste-se – a omissão revela uma negligência ligeira na instrução do recurso pelo Recorrente.

Não pode certamente afirmar-se que as exigências constitucionais de um processo equitativo podem apagar a autorresponsabilidade das partes ao ponto de transferir para o tribunal a obrigação de documentar o recurso com uma cópia do acórdão-fundamento, mas o convite ao aperfeiçoamento não tem esse significado nem essa consequência: trata-se de conceder uma oportunidade de suprir a falta, o que continua a ser um ónus da parte. Assim, a sensível desproporção não resulta propriamente da consequência (rejeição do recurso), mas sim do seu caráter imediato, sem intermediação de uma oportunidade de suprimento. (…)” [Como é referido no citado Ac. 151/2020.]

Em síntese, para o TC, o caráter secundário e estritamente formal da omissão, a gravidade da consequência (definitiva perda do direito a recorrer) e o diminuto impacto processual do convite ao aperfeiçoamento, fundam o juízo de desproporcionalidade da solução interpretativa que admite a rejeição do recurso sem a prévia formulação de um convite ao recorrente para suprir o elemento em falta; e fundam, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, o juízo de inconstitucionalidade da norma contida na segunda parte do n.º 2 do artigo 637.º do CPC, quando interpretada como estabelecendo, nos recursos em que se invoque um conflito jurisprudencial, que o recorrente tem que juntar obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia do acórdão fundamento, sem que antes seja convidado a suprir essa omissão.

E se é certo que tal juízo de inconstitucionalidade, a propósito de tal interpretação do art. 637.º/2 do CPC, ainda só foi proferido por duas vezes (nos dois acórdãos referidos) – ou seja, tal juízo de inconstitucionalidade ainda não foi proferido com força obrigatória geral, de acordo e nos termos do art. 281º/3 da CRP – a verdade é que exprime o entendimento/densificação que o Tribunal Constitucional vem retirando das exigências e do juízo de proporcionalidade a ter em conta quando estejam em questão a imposição de ónus processuais às partes e as consequências ligadas ao incumprimento de tais ónus – cf. Acórdãos 197/2007, 277/2007, 332/2007, 96/2016, 277/2016, 486/2016, 527/2016, 270/2018, 604/2018 e 440/2019.

Neste contexto, sem prejuízo de entendermos que não existe um genérico, irrestrito e ilimitado “direito” das partes à obtenção de um convite ao aperfeiçoamento e sem prejuízo de não aderirmos ao argumento da omissão da junção de cópia do Acórdão fundamento ser reveladora de uma mera “negligência ligeira” na instrução do recurso pelo recorrente – especialmente quando, como é o caso, há uma mera alusão ao sumário de dois acórdãos da Relação sem se identificar qual dos dois é o Acórdão fundamento e sem qualquer esforço visível para enunciar os concretos aspetos de identidade que mereceram respostas contraditórias no acórdão recorrido e no acórdão fundamento – vimos observando tal jurisprudência do Tribunal Constitucional e, por conseguinte, uma vez que a recorrente invoca, no requerimento de interposição da revista, a contradição jurisprudencial, não cumprindo, porém, devida e completamente, tal fundamento específico de recorribilidade, entendemos que a mesma deve ser convidada (na esteira do decidido nos referidos Ac. do TC de 151/2020 e 641/2020, considerando inconstitucional a imediata rejeição da revista) a indicar um único Acórdão fundamento (alude a dois: um do TR do Porto e outro do TR de Guimaraes), a explicitar onde se situa a contradição essencial entre os dois acórdãos (o recorrido e o fundamento) e, principalmente e como é imposto pelo art. 637.º/2 do CPC, a juntar cópia do Acórdão fundamento com nota de trânsito, sob pena de rejeição da revista."

[MTS]