"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/03/2023

Jurisprudência 2022 (147)


Incidente de liquidação;
caso julgado; matéria de facto


1. O sumário de RP 13/7/2022 (7444/10.8TBVNG.P1) é o seguinte:

Tendo-se julgado provado, na sentença objeto de liquidação, que a colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno expropriadas, e não apenas nalguma ou nalgumas delas, e tendo-se relegado para momento ulterior a determinação do montante indemnizatório decorrente desse impacto sobre as ditas parcelas, não se pode concluir depois, no âmbito do incidente de liquidação, que a colocação das ditas linhas não teve qualquer impacto visual numa das parcelas em questão.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte;

"C- Análise dos fundamentos do recurso

Como vimos, começa por nele estar em causa a questão de saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto. Mais concretamente, se os pontos 3 a 7 (inclusive) dos Factos Provados, devem contemplar as percentagens de desvalorização decorrente do impacto visual da instalação das linhas elétricas de alta tensão nas parcelas expropriadas, indicadas pelo Apelante, ou se, pelo contrário, se devem manter os resultados que aí constam. Isto, sendo certo que as ditas percentagens só foram fixadas em relação às parcelas n.ºs 2, 3, 4 e 5, e não quanto à parcela n.º 1, em relação à qual se considerou na sentença recorrida que não havia qualquer desvalorização decorrente daquele impacto.

Ora, é justamente por causa desta última conclusão e por se terem considerado, em relação às demais parcelas, percentagens de desvalorização diversas das que foram adotadas no laudo pericial especificamente elaborado (na fase anterior) para determinar o referido impacto, que o Apelante reage. Mais concretamente, refere o Apelante que tendo nesse laudo sido fixada uma desvalorização de 10% para a parcela n.º 1, 10% a 30%, para a parcela n.º 2 e 30% a 50%, para as demais parcelas (fls. 443), não mais estes parâmetros poderiam ser desconsiderados, como se fez, no fundo, no laudo maioritário, elaborado neste incidente, e na sentença recorrida. Isto porque, a seu ver, essas referências são vinculantes quer para os peritos, quer para o Tribunal, visto que sobre elas recaiu sentença já transitada em julgado, ou seja, a sentença que, agora, está a ser objeto desta liquidação e, nessa medida, tinham de ser respeitadas neste incidente.

Mas, não é assim.

Com efeito, em parte alguma dessa sentença se refere que o aludido impacto visual teve semelhante expressão percentual.

Pelo contrário, o que nela se afirmou e se julgou provado é que esse impacto teve uma dimensão que não foi possível em concreto apurar. Mais especificamente, julgou-se demonstrado na sentença objeto desta liquidação que “[a] colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas, em percentagem que não foi possível em concreto apurar” (ponto 24 dos Factos Provados). E, por isso mesmo, aliás, é que se relegou para momento ulterior a liquidação do montante indemnizatório correspondente.

Como tal, deste ponto de vista, não há qualquer ofensa do caso julgado.

Mas, há, sob outro ponto de vista.

Na verdade, tendo sido julgado provado, como vimos, que “a colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas”, e não apenas nalguma ou nalgumas delas, não se pode concluir depois, como se concluiu na sentença recorrida, que a colocação das ditas linhas “não teve impacto visual na parcela n.º1”.

Não ignoramos, com isto, que foi esse o resultado do laudo pericial maioritário. Mas, nem esse laudo podia partir de um pressuposto de facto contrário ao já estabelecido na sentença que está a ser objeto desta liquidação (já transitada em julgado), nem sobretudo a sentença recorrida podia ter sancionado semelhante resultado.

É que, como resulta do disposto no artigo 619.º, n.º 1, do CPC, “[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 792.º”. [...]

Ora, na sentença recorrida, a nosso ver e pelas razões já apontadas, não se respeitaram estes efeitos.

É verdade que na parte decisória da sentença liquidanda não se discriminam as parcelas afetadas pelo impacto visual em análise neste incidente. Mas é justamente por isso e porque na fundamentação dessa sentença já se tinha julgado provado, como vimos, que “[a] colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas”, sem qualquer distinção entre elas, que não se pode, depois, introduzir essa distinção, afirmando que só apenas em quatro delas é houve desvalorização pelo apontado motivo e não numa delas.

A nosso ver, a letra da dita sentença não o consente. Nem na parte decisória, nem na fundamentação. E, como se refere Ac. do STJ de 03/02/2011 [Proferido no Processo n.º 190-A/1999.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.], “sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida – temos como seguro que se tem de aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº2 -, tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)”.

É este, no fundo, o método para determinar a extensão objetiva do caso julgado material e a sua força vinculativa [Cfr. neste sentido também o Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt].

De modo que, aplicando esse método e conjugando a fundamentação da sentença objeto desta liquidação com o que consta da sua parte decisória, temos como certo, como já adiantámos, que não se pode concluir neste incidente que a colocação das linhas de alta tensão não teve qualquer impacto visual na parcela n.º1.

Pois bem, dito isto, logo se vê que a redação constante do ponto 3 dos Factos Provados não se pode manter como está. Mas também não lhe podemos introduzir diversa redação, quantificando a desvalorização determinada pelo impacto visual decorrente da colocação das linhas de alta tensão na referida parcela, porque a prova produzida, a esse respeito, é insuficiente. Na verdade, só o perito nomeado pelo Apelante quantificou essa desvalorização e, mesmo assim, em percentagem superior àquela que o Apelante defende neste recurso.

De modo que há manifesta necessidade de ampliar a matéria de facto, para determinar essa quantificação. E isso, dada a natureza da matéria em questão, tendo em conta o disposto no artigo 388.º, n.º 1, do Código Civil, não pode deixar de ser antecedido de pronúncia dos peritos nesse sentido; ou seja, no sentido de, partindo do princípio de que a parcela expropriada n.º 1 sofreu, nalguma medida, desvalorização pela colocação das linhas elétricas em questão, quantificarem essa desvalorização. Só depois pode ser tomada posição jurisdicional sobre o assunto.

Em resumo, portanto, a sentença recorrida será anulada com este objetivo, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, al. c), do CPC, e o conhecimento dos demais fundamentos deste recurso fica, para já, prejudicado.

III- Dispositivo

Pelas razões expostas, delibera-se anular a sentença recorrida e determinar que, após a realização de prova pericial, se amplie a matéria de facto, quantificando o coeficiente de desvalorização sofrido pelo impacto visual decorrente da colocação das linhas elétricas de alta tensão na parcela expropriada n.º 1, decidindo-se, depois, em conformidade."

[MTS]