"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/05/2023

Jurisprudência 2022 (177)


Acção de divórcio;
causa de pedir; constituição*



1. O sumário de STJ 15/9/2022 (381/18.0T8ABT.E1.S1) é o seguinte:

I. Na acção de divórcio a atendibilidade da manutenção da situação de saída de casa e ausência de relacionamento durante o decurso da acção não constitui alteração da causa de pedir sendo permitida pelo artigo 611º do CPC.

II. Tendo o legislador estabelecido que a separação de facto por um ano consecutivo é prova bastante da ruptura definitiva do casamento, por maioria de razão o será a separação por mais de dois anos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Com a Lei 61/2008, 31OUT, o nosso ordenamento jurídico abandonou a concepção do divórcio-sanção (por violação culposa dos deveres conjugais) adoptando uma concepção de divórcio-ruptura (baseado na ruptura definitiva do casamento).

A ‘ruptura definitiva do casamento’ que é fundamento genérico do divórcio sem consentimento do outro cônjuge – al. d) do artigo 1781º do CCiv – é um conceito indeterminado que deve ser preenchido, até por referência com os fundamentos específicos do divórcio estabelecidos nas restantes alíneas do mesmo artigo, pela prova de factos que, pela sua gravidade ou reiteração, evidenciem objectivamente (sem quaisquer considerações sobre culpa e sem cair em situações de divórcio-a-pedido) o termo da comunhão de vida que é pressuposto do casamento, bem como da definitividade desse termo, pelo firme propósito, pelo menos pela parte de um dos cônjuges, de a não restabelecer.

Para além de estabelecer esse fundamento geral do divórcio o legislador não deixou de especificar concretas situações factuais em que entende (presume ‘jure et de juris’) serem demonstrativas da ruptura definitiva do casamento, e que são as elencadas nas als. a) a c) do referido artigo 1781º.

Uma dessas situações é a separação de facto por um ano consecutivo (al. a)).

A 1ª instância considerou que tal fundamento não se verificava à data da propositura da acção e, por isso, não podia decretar o divórcio com esse fundamento; mas, por outro lado ficara demonstrado que essa separação de facto perdurava já há mais de dois anos e que, como tal, evidenciava objectivamente o fundamento geral da al. d) do artigo 1781º do CCiv. E assim decretou o divórcio.

A Relação, por seu turno, considerou que não podia atender-se à subsistência da separação de facto durante a pendência da causa, porquanto tal atendibilidade resultaria em inadmissível alteração da causa de pedir.

Não sufragamos, no entanto, tal entendimento.

Um mesmo conflito de interesses pode ser fonte de uma diversidade de pretensões judiciais, consoante os diversos modos de tutela jurídica que o mesmo potencie, cabendo ao impetrante optar por aquele que, em função dos meios de prova de que disponha ou de outras condicionantes, melhor satisfaça o interesse pretendido.

Não sendo imposto ao Autor qualquer ónus de cumular na mesma acção pretensões distintas que, porventura, possa deduzir com base na mesma factualidade, o que, de resto, melhor condiz com o princípio do dispositivo, é-lhe lícito formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir. Efeito preclusivo só se verifica aqui no domínio pouco importante das questões secundárias ou instrumentais, ou seja, as referentes a factos que visam completar o objecto da acção anteriormente apreciada.

A causa de pedir é, assim, constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. Nesse sentido a causa de pedir não se basta com a mera alegação de factos naturalísticos (factos ‘brutos’), mas antes esses factos devem ser alegados por referência a um quadro jurídico-normativo (factos ‘institucionais’) em função do efeito jurídico pretendido.

Não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelas partes, incumbindo-lhe antes proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa (Cf. acórdão do STJ de 18SET2018, proc. 21852/15.4T8PRT.S1).

Nas acções em que a pretensão deduzida é o divórcio não se nos afigura curial configurar cada uma das situações elencadas no artigo 1781º do CCiv como correspondendo a distintas causas de pedir; pelo contrário, a causa de pedir é a mesma: o elenco de factos demonstrativos da ruptura do casamento por referência ao quadro jurídico de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge. Determinar, dentro desse quadro jurídico, qual é o que especificamente se adapta ao caso, ou se o mesmo não cabe nesse quadro jurídico, já é matéria de qualificação.

E assim não se vê qualquer obstáculo a que, de acordo com o estatuído no artigo 611º do CPC, se considerem os factos supervenientes, ainda que constitutivos, que se produzam durante o decurso da acção, para que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (no mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 23FEV2021 no proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1).

Mas ainda que se entendesse que as diferentes alíneas do artigo 1781º do CCiv correspondessem a diferentes causas de pedir, não ocorreria no caso alteração da causa de pedir.

Com efeito, o Autor alegou circunstâncias factuais – saída de casa em função do mau relacionamento do casal, terminando a vida em comum e com intensão de a não reatar – que considerava evidenciarem, à data da propositura da acção, a ruptura definitiva do casamento em conformidade com a al. d) do artigo 1781º do CCiv. A consideração da reiteração da ausência de convivência durante o curso da acção é apenas complemento do que foi alegado como causa de pedir.

É que não há uma estanquicidade entre as alíneas a) e d) do artigo 1781º do CCiv. A separação de facto é uma circunstância objectiva da ruptura do casamento, mas só por si não evidencia a definitividade dessa ruptura. Essa definitividade pode resultar de dois modos: por ter perdurado por um ano consecutivo (al. a), ou, não tendo essa duração, pela verificação de outras circunstâncias factuais que objectivamente induzam a definitividade da recusa (al. d)).

Ou seja, não vemos qualquer impedimento a que o tribunal tenha atendido na fixação dos factos aos que se verificaram no decurso da acção, designadamente os atinentes à perduração da ausência de vida em comum, e que tenha concluído, em função disso, pela ruptura definitiva do casamento. Ademais tendo o legislador estabelecido que a separação de facto por um ano consecutivo é prova bastante da ruptura definitiva do casamento, por maioria de razão o será a separação por mais de dois anos."


*3. [Comentário] O STJ segue, salva a devida consideração, a infeliz jurisprudência segundo a qual o prazo de um ano de separação entre os cônjuges se pode completar durante a pendência da acção de divórcio. Esta orientação implica admitir que a causa de pedir se pode constituir durante essa pendência, o que é, naturalmente, inaceitável. 

Como já houve oportunidade de referir neste Blog, é aceitável que uma acção de incumprimento contratual possa ser instaurada antes de terminar o prazo de cumprimento, com o argumento de que esse prazo se completará e esgotará durante a pendência do acção? Supõe-se que a resposta é evidente.

MTS