"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/05/2023

Jurisprudência 2022 (176)


Reconvenção;
conexão objectiva; compensação


I. O sumário de RE 15/9/2022 (249/21.2T8VVC.E1) é o seguinte:

1 – A admissibilidade de reconvenção depende da verificação de um dos pressupostos de natureza substancial ou factores de conexão estabelecidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.

2 – Apenas há lugar para a ponderação da verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre o pedido do autor e o pedido reconvencional, nos termos do n.º 3 do artigo 266.º do CPC, se se verificar algum dos factores de conexão estabelecidos no n.º 2.

3 – O n.º 3 do artigo 266.º do CPC não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão de reconvenção.

4 – Não se verifica o factor de conexão estabelecido no artigo 266.º, n.º 2, al. c), do CPC, se, em acção com processo especial de divisão de coisa comum, a ré deduz um pedido reconvencional de reconhecimento de um direito de crédito, contra o autor, correspondente a metade das quantias que alega ter pago para amortização do empréstimo contraído com vista à aquisição do prédio a dividir, nos seguintes termos: 1) Na hipótese de o prédio lhe ser adjudicado, o direito de crédito que invoca deve ser compensado com o direito de crédito que o autor vier a adquirir a título de tornas; 2) Na hipótese de o prédio ser adjudicado ao autor, aquele direito de crédito acrescerá às tornas que a ré tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, aquele direito de crédito acrescerá ao valor que a ré tiver direito a receber.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Através da propositura desta acção com processo especial de divisão de coisa comum, o recorrido pretende, essencialmente, a declaração da indivisibilidade do prédio urbano de que é comproprietário em conjunto com a recorrente, a fixação de cada uma das quotas em 50% e a passagem à fase executiva, com a adjudicação de uma dessas quotas ao titular da outra ou a venda da totalidade do prédio a terceiro, dividindo-se o produto dessa venda, em partes iguais, entre si e a recorrente. O mais que o recorrido peticionou foi julgado improcedente, tendo-se ele conformado com tal decisão.

A recorrente sustenta que, em vez de proferir decisão sumária julgando procedente a descrita pretensão do recorrido, o tribunal a quo devia ter admitido a reconvenção e conhecido desta, reconhecendo a existência do direito de crédito por si invocado, no montante de € 10.044,83, correspondente a metade das quantias que alega ter pago para amortização do empréstimo contraído com vista à aquisição do prédio, para que tal direito de crédito: 1) Na hipótese de o prédio lhe ser adjudicado, seja compensado com o direito de crédito que o autor venha a adquirir a título de tornas; 2) Na hipótese de o prédio ser adjudicado ao autor, acresça às tornas que a recorrente tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, acresça ao valor que a recorrente tiver a receber.

Os pressupostos da admissibilidade da dedução de reconvenção encontram-se previstos no artigo 266.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.

O n.º 2 estabelece, em alternativa, vários pressupostos de natureza substancial, material ou objectiva, que garantem a existência de “uma certa conexão entre o pedido do autor e o pedido reconvencional” [Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª edição - Reimpressão, Edições Almedina, 2020, pág. 174.], ou seja, entre as duas acções cruzadas que, por efeito da dedução da reconvenção, passam a existir no mesmo processo [Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada de acordo com o Dec.-Lei 242/85, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 324.]. A admissibilidade irrestrita da dedução de reconvenção “poderia redundar em grave perturbação da regular e ordenada tramitação do processo” [Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, obra citada, pág. 174.]. “Se ao exercício do poder reconvencional não fossem postos quaisquer entraves, resultariam graves inconvenientes para o autor, ocasionados sobretudo pelo retardamento da concessão da tutela judiciária por ele invocada. De facto, a reconvenção incondicionada abriria as portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos de que o tribunal teria de conhecer concomitantemente com o formulado por este, que veria assim, o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica.” [Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Livraria Almedina, 1981, pág. 172.]

O n.º 3, por seu turno, estabelece que não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações. A aplicabilidade da restrição, de natureza processual, estabelecida no n.º 3, pressupõe que se verifica um dos pressupostos substanciais previstos nas diversas alíneas do n.º 2. Se nenhum destes pressupostos substanciais se verificar, a questão da compatibilidade processual entre os pedidos do autor e do réu nem sequer se coloca. “Para que a reconvenção seja admissível, terá de se verificar algum dos factores de conexão com o pedido do autor indicados no artigo 266.º-2 e não poderá verificar-se nenhum dos requisitos negativos de compatibilidade processual a que se refere o artigo 266.º-3, sem prejuízo do disposto no artigo 37.º, n.ºs 2 e 3.” [José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, págs. 144-145.] (o sublinhado é da nossa autoria). O n.º 3 não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão da reconvenção.

Comecemos, pois, por analisar se se verifica algum dos pressupostos substanciais, isto é, dos factores de conexão que o n.º 2 do artigo 266.º do CPC estabelece.

A não verificação dos factores de conexão estabelecidos nas alíneas a), b) e d) é evidente. A recorrente não os invoca, antes sustentando que a reconvenção é admissível ao abrigo do disposto na alínea c). Esta alínea admite a reconvenção quando o réu pretenda o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. Todavia, facilmente se conclui que também este factor de conexão se não verifica.

A referida alínea c) tem em vista a hipótese de o direito invocado pelo autor ter natureza creditícia. A sua parte final não deixa dúvidas a esse respeito, ao prever a hipótese de o reconhecimento de um direito de crédito invocado por via reconvencional visar a obtenção do pagamento do valor “em que o crédito invocado excede o do autor”. Prevê-se, claramente, a hipótese de confronto entre dois direitos de crédito, invocados, um pelo autor e o outro pelo réu.

O regime substantivo da compensação, constante dos artigos 847.º a 856.º do Código Civil, confirma a exigência de que, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo do disposto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC, têm de estar em confronto direitos de crédito. O corpo do n.º 1 do artigo 847.º não podia ser mais claro a esse respeito: “Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (…)”. Portanto, não há compensação se um ou ambos os direitos em confronto não tiverem natureza creditícia.

No caso dos autos, o autor/recorrido pretende, como anteriormente referimos, a declaração da indivisibilidade do prédio de que é comproprietário em conjunto com a ré/recorrente, a fixação de cada uma das quotas em 50% e a passagem à fase executiva, com a adjudicação de uma dessas quotas ao titular da outra ou a venda da totalidade do prédio a terceiro, dividindo-se o produto dessa venda, em partes iguais, entre si e a recorrente. O direito potestativo à divisão, concedido a qualquer dos comproprietários pelo n.º 1 do artigo 1412.º do Código Civil, tem natureza real, pois integra o conteúdo do direito de propriedade quando este tenha mais de um titular, e não creditícia, pelo que não é compensável com o direito de crédito invocado pela recorrente.

Não se objecte que a reconvenção é admissível, nos termos do artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC, porquanto a recorrente pretende que o direito de crédito por si invocado seja reconhecido tendo em vista os resultados possíveis da fase executiva da presente acção, nos seguintes termos: 1) Na hipótese de o prédio lhe ser adjudicado, o direito de crédito que invoca deve ser compensado com o direito de crédito que o recorrido adquirir a título de tornas; 2) Na hipótese de o prédio ser adjudicado ao recorrido, aquele direito de crédito acrescerá às tornas que a recorrente tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, aquele direito de crédito acrescerá ao valor que a recorrente tiver direito a receber. Nas segunda e terceira hipóteses, nada que se assemelhasse a uma compensação ocorreria, pois o direito cujo reconhecimento a recorrente pretende somar-se-ia a um novo direito de crédito que ela própria adquiriria por via da adjudicação ou da venda. Na primeira hipótese, estaríamos perante uma compensação entre um direito de crédito de que a recorrente já seria titular à data da dedução da reconvenção com um direito de crédito que, eventualmente, o recorrido poderia vir a adquirir futuramente, em função do resultado da fase executiva do processo. Ora, uma compensação nesses termos não é admitida pelos artigos 847.º a 856.º do Código Civil, que pressupõem que aquela opere entre créditos existentes e não entre um crédito existente e um crédito que eventualmente possa vir a constituir-se no futuro. Daí que o artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC, também tenha em vista o confronto entre um direito de crédito invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão e o direito de crédito que o réu pretende invocar mediante reconvenção. Se o direito invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão não tiver natureza creditícia, ficará inexoravelmente afastada a aplicabilidade da referida alínea c) e, consequentemente, a reconvenção não poderá ser admitida ao abrigo de tal norma.

Resulta do exposto que não se verifica o factor de conexão entre o pedido do recorrido e o pedido reconvencional previsto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC. É quanto basta para concluir que o pedido reconvencional formulado pela recorrente é inadmissível."

[MTS]