"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/05/2023

Jurisprudência 2022 (183)


Advogado; sigilo profissional;
recusa de depoimento


1. O sumário de RC 13/9/2022 (1707/20.1T8CTB-A.C1) é o seguinte:

I – É legítima a recusa de uma advogada a depor como testemunha sobre os termos de uma partilha, designadamente sobre a existência de um pacto fiduciário subjacente a esse negócio, quando o seu conhecimento sobre a questão resultar do facto de ela, no exercício das suas funções, ter prestado serviços de apoio jurídico na realização daquele negócio.

II – Apesar de o depoimento da testemunha ser importante para o apuramento da verdade, não é de dispensar a advogada do dever de sigilo pois, no confronto entre os interesses particulares da acção e os relevantes interesses públicos que presidem ao sigilo profissional dos advogados, é de dar prevalência a estes últimos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Da legitimidade da recusa.

A testemunha DD recusou-se a depor sobre a existência de um negócio fiduciário, subjacente ao contrato de partilha outorgado entre o Autor, o seu pai e a sua irmã BB, alegado pelo Autor na petição inicial, invocando a sua qualidade de advogada da irmã do Autor, BB na preparação e acompanhamento da sua cliente na outorga daquele contrato de partilha.

O Autor alega que, não tendo aquela testemunha representado qualquer um dos outorgantes na celebração do referido negócio e não tendo o mesmo sido celebrado sob segredo, não se verifica nenhuma das situações previstas no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Dispõem os n.º 1 e 2 deste preceito:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

 b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

 c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

 d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

 e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

 f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

Conforme revela a utilização do termo “designadamente”, o elenco das situações de segredo profissional contante das alíneas do n.º 1, não é taxativa, verificando-se essa vinculação em todas as demais situações em que o advogado tem conhecimento dos factos por causa do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, não sendo necessário que sobre esses factos tenho existido um pacto de segredo.

O segredo profissional é um instrumento de proteção de três grandes objetivos:

- garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente;

- dignificar a função do advogado, enquanto agente ativo na administração da justiça;

- promover o papel essencial do advogado na composição extrajudicial dos conflitos [Acórdão do S.T.J. de 5.5.2022, relatado por João Cura Mariano e acessível em www.dgsi.pt.]

Ora neste caso, constata-se que o conhecimento que a testemunha terá sobre os termos da partilha em causa, designadamente sobre a existência de um pacto fiduciário subjacente a esse negócio, resultou do facto dela ser a advogada de uma das suas outorgantes, tendo-lhe prestado serviços de apoio jurídico na realização daquele negócio, pelo que é inequívoca a sua vinculação ao segredo profissional, por força do disposto no corpo do art.º 92º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à revelação de factos que esclareçam os termos reais em que o contrato de partilha foi outorgado.

E conforme expressamente consta do n.º 2, do referido art.º 92º, não é necessária que a intervenção do advogado ocorra em representação do cliente para que a obrigação do segredo profissional exista, pelo que se confirma a decisão do tribunal da 1ª instância no sentido da legitimidade da recusa.

III – Da quebra do sigilo

Conforme tem sido afirmado pela jurisprudência dos nossos tribunais o sigilo profissional do advogado só deve ser quebrado, contra a sua vontade ou do seu cliente, em situações muito excecionais e quando estejam em causa interesses altamente relevantes que não possam ser satisfeitos por outra via.

O Autor justifica a quebra do sigilo pretendida pelo facto do depoimento desta testemunha ser essencial e insubstituível para a descoberta da verdade, tendo em conta que a Testemunha terá sido a única pessoa que terá presenciado o alegado acordo, celebrado entre o A. e outras duas pessoas que já faleceram ... além de estar em causa património imobiliário no valor de 63.0000,00 €, que é muito dinheiro na perspetiva do AA. e da sua família, estando também em causa a ligação emocional que o A. tem a este prédio, por ter pertencido aos seus pais, na localidade onde cresceu, e para onde quer retornar logo que se reforme, bem como a honra e respeito pela memória do seu pai e irmã.

O Conselho Regional da Ordem dos Advogados emitiu um parecer no sentido de não se proceder à quebra do sigilo profissional, pelas seguintes razões:

Considerando que nos presentes autos o que está em causa são interesses das partes, de natureza privada e não um qualquer interesse público, na ponderação de interesses que deve ser feita deverá prevalecer o interesse público decorrente do segredo profissional do advogado, mantendo-se o mesmo em detrimento dos interesses das partes ... Acresce que, o Advogado apenas pode depor a favor do seu cliente, incluindo-se, neste caso, face à prejudicialidade do mandato anterior e do objeto processual, os sucessores do cliente titular do segredo profissional, não sendo, em caso algum, permitido que o advogado titular do segredo profissional seja autorizado a depor contra o seu cliente.

Reconhece-se a posição privilegiada da testemunha DD relativamente à perceção dos factos sobre os quais se recusou a depor, tendo-se acentuado a importância do seu depoimento com o falecimento de alguns dos intervenientes nesse negócio, dos quais só resta o próprio Autor e o Réu FF, sem que, contudo, se possa confirmar que esse é o único meio de produção de prova possível sobre a existência do alegado acordo fiduciário, desde logo porque pode o Autor requerer, não só o depoimento de parte do Réu FF, como o seu próprio depoimento.

No entanto, apesar da inegável importância fulcral do depoimento da testemunha para o apuramento da verdade dos factos, tendo em consideração que nesta ação apenas estão em jogo interesses privados, revelar-se-ia flagrantemente desproporcionado sacrificar os relevantes interesses públicos que presidem ao sigilo profissional dos advogados, impedindo que um advogado se escuse a depor sobre matéria relativa ao exercício de seu mandato e que poderá ser prejudicial aos interesses dos herdeiros da sua cliente, entretanto falecida. A pretendida quebra do sigilo profissional afetaria insuportavelmente a confiança nas relações advogado-cliente, a qual é imprescindível ao exercício de uma advocacia que garanta um esclarecido acesso ao direito aos cidadãos.

Por estas razões deve ser indeferido o pedido de quebra do sigilo profissional que incide sobre a testemunha DD."

[MTS]