Privacidade da correspondência;
prova ilícita; direito de defesa*
I - As provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, na correspondência ou nas telecomunicações são nulas.
II - Porém, neste domínio da prova ilícita, chocam-se frequentemente interesses conflituantes, isto quando, por um lado, a conduta que dá lugar ao aparecimento de um meio de prova é ilícita, porque reprovada pela lei, e quando, por outro lado, simultaneamente, a prova assim obtida é suscetível de tornar conhecido facto relevante para que o tribunal possa formar a sua convicção.
III - Só caso a caso este conflito de interesses pode ser resolvido, mediante a apreciação de todas as circunstâncias concretas e consoante os valores em jogo, aí desempenhando papel primacial o critério da proporcionalidade.
IV - Admitida a junção aos autos de prova obtida ilicitamente, porque a mesma se mostra estruturante para a decisão da ação, ambas as partes, aí se incluindo a que obteve essa prova ilicitamente, a podem utilizar a seu favor, exibindo-as às testemunhas.
V - Solução diferente desta iria contrariar o princípio da proibição da indefesa decorrente do art. 20º da Constituição da República. [...]
IX - A proteção legal do segredo de negócios pressupõe três requisitos: i) o carácter sigiloso do conhecimento; ii) o valor comercial desse conhecimento; iii) a vontade objetiva de o titular o manter oculto.
X – Verifica-se ato ilícito quando ocorre divulgação, aquisição ou utilização de segredos de negócio de um concorrente, sem o consentimento deste, desde que preenchidos, quanto a esses segredos, os requisitos referidos em IX.
XI – Assim, para que haja violação de segredos de negócio não é necessário que haja utilização desses segredos, bastando o mero conhecimento destes segredos, sem o consentimento do concorrente. [...]
XIV – O acesso à lista de scouting, o conhecimento do plano estratégico, de contactos comerciais e de condições contratuais são, pela sua natureza, elementos dos quais flui aquela potencial perda de clientela, sem prejuízo de que um padrão de agir honesto sempre pressuporia o respeito pela propriedade privada de outrem e pelos seus direitos de personalidade. [...]
XVIII – A tensão entre os direitos tendencialmente absolutos da liberdade de expressão e informação e da inviolabilidade da correspondência terá que ser resolvido com apelo aos princípios da adequação e da proporcionalidade. [...]
XXVI – Os juízos valorativos e as opiniões, ainda que ofensivos do bom nome, desde que tenham suporte factual, encontram-se legitimados ao abrigo do direito à liberdade de expressão e não podem fundar qualquer indemnização.
XXVII – A intimação para que não continue a violação de um direito reconhecido, ou de um interesse juridicamente tutelado pelo Cód. da Prop. Industrial deve ser decretada, e acompanhada de sanção pecuniária compulsória se o ofendido o requerer, quando se verifique que a infração cometida foi largamente repetida e só cessou quando o infrator foi notificado da providência cautelar ordenada, na qual se determinou que se abstivesse de continuar tal infração.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se foi correta a decisão da 1ª Instância proferida na sessão de julgamento de 7.3.2019, na qual se permitiu que toda a prova existente nos autos – incluindo os mails referentes ao domínio @X….pt, propriedade das Autoras, acedidos ilegitimamente – fosse utilizada por ambas as partes. [...].
Passemos à sua apreciação.
Antes de mais, impõe-se referir que através do despacho proferido em 11.1.2019 na audiência prévia o Mmº Juiz “a quo” determinou que os documentos provenientes da correspondência privada dos autores, que foram acedidos ilicitamente por inexistir autorização destes, se mantivessem nos autos, isto porque tais documentos surgem como estruturantes para a decisão dos autos.
Salientou-se nessa decisão que, em sintonia com o princípio da economia processual, não faria sentido desentranhar esses documentos que, pela sua natureza essencial para o processo, mais tarde iriam ser inevitavelmente juntos por via do disposto no art. 429º do Cód. de Proc. Civil, norma que, inclusive, já havia sido invocada pelos autores no seu requerimento probatório.
Acontece que esta decisão, na parte em que admitiu a permanência nos autos de tal documentação, não foi objeto de recurso e, por essa razão, terá que se considerar a mesma transitada em julgado – cfr. art. 628º do Cód. de Proc. Civil.
E estando esses documentos nos autos, conforme entende o Mmº Juiz “a quo”, os princípios da aquisição processual, do contraditório e da livre apreciação da prova levam a que eles possam ser utilizados em audiência por qualquer uma das partes.
Ora, os autores/recorrentes, nas suas alegações de recurso, vêm realçar que a sua discordância não é relativamente à manutenção daqueles documentos nos autos, mas sim no que toca à mobilização de tais elementos por parte dos réus/recorridos para produção de prova, a seu favor, no processo.
Ou seja, entendem que da admissibilidade da junção não se pode inferir a admissibilidade da mobilização pelos réus desses documentos em prejuízo da parte que com a sua obtenção se viu ofendida no seu direito à inviolabilidade da correspondência.
Assim, a mobilização de prova declarada ilícita pelos réus torna ilícita a prova testemunhal que a partir dela tenha sido produzida, isto é, as partes dos depoimentos testemunhais que tenham resultado da exibição dos documentos ilícitos por parte dos réus.
Na perspetiva dos autores, a utilização pelos réus desses elementos documentais significaria que não estaríamos perante um processo justo e equitativo, pois estes iriam beneficiar do seu próprio ilícito.
Em suma, sustentam os autores/recorrentes que aos réus deveria ser negada a possibilidade de produzirem prova – designadamente testemunhal – a partir da documentação proveniente da sua correspondência privada e que foi acedida sem a sua autorização.
Esta questão é, ao cabo e ao resto, o alfa e o ómega dos presentes autos, pois tudo neles se reconduz ao conteúdo dos mails obtidos ilicitamente, de tal modo que o Mmº Juiz “a quo” bem os referenciou como estruturantes para a decisão da ação.
Neste contexto, face ao seu conteúdo essencial para o processo e para a justa composição do litígio, entendemos que a correspondência privada dos autores, figurando nos autos, como não podia deixar de figurar, se pode ser mobilizada pelos autores a seu favor, também poderá ser mobilizada pelos réus, nada impedindo que estes a exibam às testemunhas.
Com efeito, apesar da argumentação nesse sentido expendida pelos autores, ancorada em pareceres jurídicos apresentados, a tese por estes defendida, em que pretendem que os documentos ora em causa apenas possam ser valorados para prova dos factos que os beneficiam, não poderá ser acolhida por significar uma manifesta violação do direito de defesa dos réus.
Para além de contrariar também de forma evidente o princípio da aquisição processual consagrado no art. 413º do Cód. de Proc. Civil, onde se dispõe que «O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las…».
Conforme escreve JOSÉ ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4ª ed., 1985, Coimbra Editora, pág. 273), “o juiz, quando decide a matéria de facto da acção, há-de tomar em consideração todas as provas constantes dos autos, quer elas tenham chegado a juízo por impulso da parte sobre que pesava o ónus de as produzir, quer por impulso da parte contrária, quer pela sua própria iniciativa.
O que importa, pois, é que os factos relevantes estejam apurados no processo; que a prova haja sido fornecida pela parte onerada com o encargo de demonstrar a existência deles ou por outra pessoa, é indiferente. Quer dizer, passa para plano secundário o ónus subjectivo e fica em primeiro plano o ónus chamado objectivo, ou seja, a necessidade real e efectiva de que tais e tais factos se achem suficientemente provados.”
Por seu turno, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 213), sobre o princípio da aquisição processual, escrevem que “no momento da decisão, é irrelevante que a proposição do meio de prova tenha provindo de uma ou outra parte, ou ainda que a produção do meio de prova constituindo ou a apresentação no processo do meio de prova pré-constituído tenha resultado de iniciativa oficiosa; uma vez produzida a prova constituenda ou admitida a prova pré-constituída, ela deve ser considerada na decisão; por isso, não pode a parte retirar do processo, para nele não ser considerado, o meio de prova por si proposto, sem prejuízo de o poder fazer antes de produzido (se se tratar de prova constituenda).”
E se a solução propugnada pelos autores contraria o princípio da aquisição processual, também dificilmente se compagina com o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º do Cód. de Proc. Civil, onde se estatui que «incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.»
Flui deste princípio que o juiz, quando determina oficiosamente a realização de diligências probatórias, tem como finalidade o apuramento da verdade, independentemente da prova poder beneficiar o autor ou o réu.
Por conseguinte, tal como considera a Sr.ª Prof.ª Maria José Capelo, no seu parecer jurídico junto aos autos pelos réus, a posição defendida pelos autores – no sentido de que a prova aqui em causa só deverá ser utilizada para demonstrar os factos essenciais às suas pretensões – dificilmente poderá coabitar com um regime em que vigore a iniciativa oficiosa.
“O nosso sistema não chancela qualquer regime de “ineficácia relativa/subjetiva” de um meio de prova, não podendo uma das partes solicitar a desconsideração/desentranhamento para efeitos probatórios de factos relativos à parte contrária ou a “divisibilidade” do resultado da prova (no sentido de não servir para demonstrar factos que lhe são desfavoráveis).”
O que interessa, primacialmente, é a verdade material em relação aos factos alegados pelas partes, nada impedindo que a prova de um facto se faça sobre elementos carreados para o processo, não pela parte a quem o facto aproveita, mas sim pela parte contrária, a quem o facto prejudica.
Não pode, assim, merecer acolhimento, de acordo com alguns dos princípios fundamentais que norteiam o nosso ordenamento jurídico-processual (princípios da aquisição processual, do inquisitório, do contraditório, da livre apreciação da prova) a tese dos autores, em que estas procuram sustentar a valoração da prova aqui em causa, face à sua ilicitude, apenas “in bonam partem”, impedindo os réus de dela se poderem valer.
Ao invés, impõe-se que a prova concernente à correspondência privada dos autores (mails) possa ser utilizada tanto por estes como pelos réus, podendo pois ser exibida, por estes últimos, aquando da produção da prova testemunhal.
Tal como bem escreve a Sr.ª Prof.ª Maria José Capelo no seu parecer “de acordo com as regras do ónus da prova, recairá sobre os Autores a demonstração da realidade dos factos constitutivos das suas pretensões, e aos Réus, em exercício de contraditório e em vista dos mesmos e-mails, assiste o direito de contrariar as pretensões dos Autores, assim como de, legitimamente, discutir pretensões próprias intrinsecamente conexas com o objeto tal como foi conformado pelos Autores.”
Por outro lado, em sentido concordante, se mostra também o parecer do Prof. Michele Taruffo junto aos autos, que reconhecendo na interceção de numerosas mensagens eletrónicas do X... um grave e repetido acesso ilegítimo ao sistema informático desta entidade, entende não ser inadmissível a junção ao processo do registo dessas mensagens.
Escreve este que “o princípio generalíssimo de descoberta da verdade judicial prevalece, com efeito, sobre quaisquer considerações contrárias, e determina a admissibilidade da prova em questão, não obstante a ilicitude originária do acesso ao arquivo de e-mails do X....”
Deste modo, “sendo a prova admissível em linha geral, a mesma deve ser valorada pelo juiz relativamente a todos os factos aos quais a mesma se refere, já que se trata de alcançar uma decisão fundada no acertamento da verdade destes factos. Eventuais preferências ou indicações das partes não têm nenhum relevo no sentido de influenciar a decisão do juiz: esta deve simplesmente fundar-se sobre todas as informações atendíveis, fornecidas pelas provas de que o mesmo dispõe.”
Neste contexto, sempre salvo melhor entendimento, não se nos afigura que possa ser sustentável a posição dos autores que pretendem que a prova atinente aos mails seja valorada apenas em função dos seus interesses, surgindo, nesta perspetiva, manifesta confusão entre a sua posição processual e a posição do próprio tribunal.
Só que ao tribunal não importam os interesses particulares de cada uma das partes, mas tão-só a justa composição do litígio a atingência da verdade judicial e, por isso, os meios documentais reunidos nos autos, e aqui em causa, reportar-se-ão ao universo dos factos controvertidos e não são mobilizáveis apenas por uma das partes para prova da sua posição.
Aliás, o princípio da proibição da indefesa, decorrente do art. 20º da Constituição da República, sempre impediria que os mails fossem utilizados somente em benefício dos autores.
Com efeito, não pode ser coartada aos réus a possibilidade de se defenderem e o exercício desse direito – de defesa – implicará, na situação dos presentes autos, a utilização dos mails no julgamento e a exibição dos mesmos às testemunhas para prova da sua versão dos factos.
Prosseguindo, entende-se ainda que a possibilidade de utilização pelos réus, neste caso, da prova acedida ilicitamente também na sua defesa, de modo a demonstrar as suas pretensões, não envolve violação de qualquer preceito constitucional e designadamente daqueles que vêm mencionados nas alegações de recurso dos autores [arts. 32º, nº 8, 34º, nºs 1 e 4, 18º, nºs 1 e 2 e 20º, nºs 1 e 4 da Constituição da República].
Antes se compagina, a nosso ver, com as normas e princípios constitucionais, em particular com o já referido princípio da proibição da indefesa, a cujo desrespeito conduziria a adoção da posição sustentada pelos autores.
Além do mais, haverá também a salientar que a posição processual assumida, neste segmento, pelos autores, perfila-se como contraditória, atendendo a que estes, num primeiro momento, vêm requerer, em termos probatórios, que os réus entreguem nos autos a correspondência privada das autoras [mails] que foi obtida ilegitimamente e, num segundo momento, pretendem que os réus não se possam valer, para sua defesa, dessa mesma correspondência.
Os referidos mails são os elementos estruturantes e axiais da presente acção, é a eles que tudo se reconduz na procura da justa composição do litígio e, por isso, em nome dos acima mencionados princípios fundamentais que regem o processo civil - aquisição processual, inquisitório, contraditório, livre apreciação da prova – aos réus, na perspetiva da sua defesa, foi acertadamente concedida a possibilidade de exibirem esses mails aquando da produção da prova testemunhal, o que implica a confirmação do despacho recorrido proferido na sessão de julgamento efectuada em 7.3.2019.
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida proferida na sessão de julgamento de 7.3.2019."
*3. [Comentário] Dado que a acção se baseia numa alegada ilicitude da conduta dos réus -- alicerçada no acesso ilegítimo destes à correspondência privada da autora --, é claro que a correspondência acedida, apesar de ser qualificada como uma prova ilicitamente obtida pelos réus, tem de ser junta ao processo. Neste quadro, a mesma não pode deixar de ser utilizada por ambas as partes e, portanto, nomeadamente para a defesa dos réus.
Questão completamente diferente é saber se os réus podem fundamentar qualquer pedido reconvencional contra a autora com base nas provas que obtiveram ilicitamente. A resposta não pode deixar de ser negativa. Em linguagem futebolística: o que vale para a defesa não pode valer para o contra-ataque.
MTS
*3. [Comentário] Dado que a acção se baseia numa alegada ilicitude da conduta dos réus -- alicerçada no acesso ilegítimo destes à correspondência privada da autora --, é claro que a correspondência acedida, apesar de ser qualificada como uma prova ilicitamente obtida pelos réus, tem de ser junta ao processo. Neste quadro, a mesma não pode deixar de ser utilizada por ambas as partes e, portanto, nomeadamente para a defesa dos réus.
Questão completamente diferente é saber se os réus podem fundamentar qualquer pedido reconvencional contra a autora com base nas provas que obtiveram ilicitamente. A resposta não pode deixar de ser negativa. Em linguagem futebolística: o que vale para a defesa não pode valer para o contra-ataque.
MTS