"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/05/2023

Jurisprudência 2022 (175)


Procedimento de injunção;
meios de defesa; preclusão*


1. O sumário de RG 15/9/2023 (2814/21.9T8LLE-A.E1) é o seguinte:

A petição de embargos de executado deve ser liminarmente indeferida se nela vem invocado como fundamento da oposição o pagamento da quantia exequenda em data anterior à apresentação do requerimento de injunção.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os embargos de executado consistem no instrumento através do qual o Executado deduz oposição à Execução.

“A apresentação de um documento dotado de força executiva justifica a presunção da existência e persistência do direito de crédito nele configurado e da correspetiva obrigação, radicando aí a instauração da ação executiva com vista ao cumprimento coercivo da obrigação. Mas isso não afasta a possibilidade de tal presunção ser rebatida pelo executado, sendo os embargos o mecanismo ajustado a combater execuções injustas ou destituídas dos respetivos pressupostos gerais ou específicos.” [Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. II, pág. 77].

A oposição por embargos de executado constitui, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à ação executiva e assume o caráter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo, cujo escopo é obstar ao prosseguimento da ação executiva mediante a eliminação, por via indireta, da eficácia do título executivo enquanto tal; quando a oposição por embargos tem um fundamento de cariz processual, tem em vista o acertamento negativo da falta de pressuposto processual, que pode ser o próprio título executivo, igualmente obstando ao prosseguimento da ação executiva, mediante o reconhecimento da sua inadmissibilidade. [José Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 1993, págs. 162 e 163.] Constituem, na verdade, uma verdadeira ação declarativa enxertada no processo executivo, visando contrariar os efeitos que o exequente procura extrair da apresentação do título executivo. [Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 77].

A petição de embargos é submetida a controlo judicial, devendo ser liminarmente rejeitada se tiver sido apresentada fora do prazo, se assentar em fundamentos diferentes dos legalmente permitidos ou se for manifesta a respetiva improcedência – artigo 732.º, n.º 1, alíneas a) a c), do CPC.

No caso em apreço, a oposição tem em vista destronar a ação executiva com fundamento em não ser devida a quantia exequenda por ter sido paga em momento anterior ao da apresentação do requerimento de injunção.

Em 1.ª Instância exarou-se que «o fundamento invocado é o pagamento parcial (em data anterior ao da propositura do requerimento de injunção) e a alegação da mora do credor, donde extrai que não seriam devidos juros moratórios (mas onde também sempre se colocaria a exigibilidade da obrigação, caso se provasse a mora do credor).

Como se vê, os invocados fundamentos de defesa poderiam ser invocados em oposição no procedimento de injunção.

Deste modo, os fundamentos da oposição não se enquadram nos fundamentos previstos no artigo 729.º nem nos meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A». O que implicou na rejeição liminar dos embargos.

Ora vejamos.

Uma vez que a execução se funda em requerimento de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º, aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual – artigo 857.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Os fundamentos elencados no artigo 729.º do CPC são os seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.

Já o artigo 14.º-A do regime aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, sob a epígrafe Efeito cominatório da falta de dedução da oposição, estatui o seguinte:

1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.

O pagamento que vem invocado na petição de embargos constitui um facto extintivo da obrigação exequenda. Contudo, uma vez que vem alegado ter o pagamento ocorrido em momento anterior à apresentação do requerimento de injunção, o fundamento invocado não se enquadra na alínea g) do artigo 729.º do CPC. Nem sequer em qualquer outra.

Por outro lado, o fundamento invocado não encontra acolhimento em qualquer uma das alíneas do n.º 2 do citado artigo 14.º-A. Na verdade, não assiste razão ao Recorrente quando invoca que, por se encontrar paga a quantia reclamada à data da apresentação do requerimento de injunção, se verifica o uso indevido do procedimento de injunção. O uso indevido do procedimento de injunção ocorre quando é formulado um requerimento de injunção que não é destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro – cfr. artigo 7.º do regime aprovado em anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação atual. Se o requerimento de injunção se reporta a uma dessas obrigações, mas cujo pagamento foi já realizado, então estamos diante de um facto extintivo da obrigação que carece de ser invocado em sede de oposição, sob pena de ficar precludido tal direito de defesa – cfr. artigos 14.º-A e 15.º do referido regime.

Termos em que se conclui que, por via das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 732.º, n.º 1, alínea b) e 857.º, n.º 1, do CPC, não resta outra sorte à petição de embargos que não seja o do indeferimento liminar.

Por via disso, não cabe conhecer dos factos alegados em tal articulado, designadamente quanto ao instituto da litigância de má-fé decorrente da interpelação para pagamento de quantia alegadamente paga. O que, manifestamente, não coloca em causa os princípios constitucionais do acesso ao direito e da dedução da defesa: estes hão-de exercer-se em conformidade com as regras processuais estabelecidas para o efeito, e não ao arrepio das mesmas."

*3. [Comentário] O acórdão reflecte a nova fisionomia dada ao procedimento de injunção introduzida pela L 117/2019, de 13/9. Essa nova fisionomia dignificou o procedimento de injunção e, acima de tudo, acabou com uma incompreensível dicotomia até aí existente na ordem jurídica portuguesa:

-- Numa injunção decretada segundo as regras internas portuguesas, podia não operar uma regra da preclusão dos meios de defesa;

-- Numa injunção de pagamento europeia, decretada (mesmo em Portugal) ao abrigo do disposto no Reg. 1896/2006, operava necessariamente uma regra de preclusão desses meios.

MTS