"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/05/2023

Jurisprudência 2022 (180)


Alteração da verdade dos factos;
litigância de má fé


1. O sumário de RP 27/9/2022 (1990/20.2T8OVR-A.P1) é o seguinte:

I - Não se pode ignorar que a concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, cfr. art.º 20.º da C.R.Portuguesa.

II - A infracção do “dever honeste procedere” pode resultar de uma má-fé subjectiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.

III - A conduta do embargante nos presentes autos foi, além do mais já acima referido, grave do ponto de vista ético e assim manifestamente reprovável pelo que tem de ser, correspectivamente, sancionada por litigância de má-fé substancial.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A 1.ª instância decidiu julgar procedente o pedido formulado pela embargada, e em consequência condenou o embargante, como litigante de má-fé, na multa de 5 UC e na indemnização a pagar à embargada, a fixar posteriormente.

Para tanto, considerou o Tribunal recorrido que: “Considerando que os embargos tinham por fundamento a posse jurídica dos bens penhorados e não tendo ficado demonstrados os factos que substanciam essa posse, não resta senão julgar improcedentes os embargos, por falta de prova.

Cabe, todavia, apreciar a conduta processual do embargante que, tendo alegado na sua peça que todos os bens lhe pertenciam, acabou por afirmar na audiência final que nenhum dos bens lhe pertence. Trata-se de uma conduta censurável que o embargante não podia deixar de ignorar pois não pode submeter à pronúncia do tribunal uma pretensão infundada que o próprio sabe que não é verdade.

Esta conduta de má-fé material subsume-se a al. a) n.º 2 do art.º 542.º CPC.

Tendo em conta a moldura da multa aplicável à litigância de má-fé (cf. art.º 27.º, n.º 3, RCP) e considerando que aos costumes o embargante referiu ser empresário do ramo da panificação e equipamento hoteleiro, reputo adequado fixar em 5UC a multa por litigância de má-fé.

Não dispondo o tribunal de elementos para fixação da indemnização a que alude o art.º 543.º do mesmo código, ao abrigo disposto no n.º 3 daquele preceito legal ficam as partes notificadas para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre o montante daquela indemnização, nomeadamente a embargada, que deverá junta documentos que suportem a sua pretensão”.

*

O embargante/apelante insurge-se contra o assim decidido, dizendo que não há litigância de má-fé, quando muito, a tal ser entendido, poderia ter havido apenas uma lide ousada/temerária.

*

Vejamos.

Preceitua o n.º1 do art.º 542.º do C.P.Civil, que tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir.

E como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

In casu” depois de compulsados os autos principais e para além dos factos que acima se deixaram consignado, verificamos que BB intentou a presente execução para pagamento de quantia certa contra CC, indicando-o como residente na Rua .... ... Aveiro, e para haver dele o pagamento coercivo da quantia de €29.899,40, alegando para tanto que “Por documento particular autenticado denominado “Confissão de Divida”, o executado declarou-se devedor à exequente da quantia de €29.000,00 (vinte e nove mil euros). (conforme doc. n.º 1 que se junta para todos os efeitos legais). Declarou ainda o executado comprometer-se a liquidar a totalidade da quantia referida em 1. até 31 de Janeiro de 2020, ou, não o fazendo, a liquidar a mesma quantia em prestações mensais e sucessivas no valor de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) cada uma delas, vencendo-se a primeira até final de Fevereiro de 2020. O Executado não pagou a totalidade da sua divida até 31.01.2020, nem liquidou qualquer das prestações acordadas por conta da referida divida, vencendo-se assim, de imediato, a totalidade da mesma, como é de lei, e conforme consta do parágrafo 2., última parte, do doc. n.º 1 atrás referido. Assim, o executado é responsável pelo pagamento do montante titulado pelo título de divida, ou seja, €29.000,00, bem como pelo pagamento dos juros de mora vencidos, que na presente data, calculados à taxa de juro em vigor, ascendem a €899,40, e ainda os juros que se vencerem até efectivo e integral pagamento”.

Em 18.01.2020 a Sr. Agente de Execução procedeu à penhora de 14 bens móveis existentes na Rua ...., em Aveiro e dos quais o embargante, ora apelante ficou fiel depositário.

Ordenada, em Janeiro de 2021, a citação do executado, foi este citado pessoalmente no 13.01.2021 na morada indicada, ou seja, na Rua ...., em Aveiro.

Na petição dos presentes embargos de terceiro, o embargante afirma, além do mais, que: “O embargante é pai do executado CC, sendo que nada sabe do seu filho já há mais de oito anos a esta parte, pelo que o mesmo não faz parte integrante do agregado familiar deste para os devidos efeitos legais”; “Na execução em que os presentes embargos são pendência foi realizada uma penhora incidente sobre bens do aqui embargante”; “Conforme se alcança do respectivo auto de penhora, a mesma recai sobre bens móveis existentes na habitação familiar do aqui embargante, nada pertencendo ao executado CC”; “Aliás, o mesmo tem como morada fiscal a morada do aqui embargante sito na Rua ..., ..., ... ... Aveiro, e que o embargante desconhecia visto que o executado não reside efectivamente com este”; “Sucede que, o embargante teve conhecimento que foram penhorados bens pertencentes ao recheio da habitação do mesmo”; “Os bens penhorados são propriedade do embargante, que exerce sobre os mesmos uma posse real efectiva” e ”Pois que, a referida habitação é do embargante e sua esposa, pelo que todo o recheio que compõe a fracção é propriedade do embargante (…)”.

No âmbito do julgamento dos presentes autos, o embargante foi ouvido em depoimento e declarações de parte, tendo sido elaborada a devida Assentada, que o mesmo confirmou e de onde consta:

“a) O embargante confessa que durante os anos 2020 e 2021, o executado CC recebia a sua correspondência na sua morada (embargante);

b) O executado CC trabalhou com o seu pai (embargante), na empresa deste, designada C... Unipessoal Ld.ª e durante esse período residiu com ele (embargante), durante cerca de dois anos.

c) Posteriormente, e depois de sair da empresa do embargante o executado trabalhou na empresa A... Ld.ª com sede em Aveiro, mantendo-se a residir com o embargante até por altura da diligência de penhora”.

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Não se cuida aqui averiguar da real propriedade e posse dos bens penhorados nos autos de que este é um apenso, mas sim face ao que resultou provado e não provado nos autos, da actuação processual do embargante.

A 1.ª instância analisou essa conduta processual dizendo, em síntese, que tendo o embargante “alegado na sua peça que todos os bens lhe pertenciam, acabou por afirmar na audiência final que nenhum dos bens lhe pertence. Trata-se de uma conduta censurável que o embargante não podia deixar de ignorar pois não pode submeter à pronúncia do tribunal uma pretensão infundada que o próprio sabe que não é verdade.

Esta conduta de má-fé material subsume-se a al. a) n.º2 do art.º 542.º CPC (…)”.

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Não se pode olvidar que a concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, cfr. art.º 20.º da C.R.Portuguesa, não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental, cfr. n.ºs 2 e 3, do art.º 18.º da C.R.Portuguesa.

Como refere Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé abuso do Direito de Acção e Culpa”, pág. 26 e in “Da Boa-Fé no Direito Civil”, pág. 380., alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo. Dolo, esse, que supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida - dolo substancial directo - ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial - dolo substancial indirecto, podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais.

Também Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, pág. 62, diz que que a infracção do “dever honeste procedere” pode resultar de uma má-fé subjectiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.

A nossa Jurisprudência tem entendido que a negligência grave é caracterizada como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um, cfr. Ac do STJ de 8.12.2001, in www.dgsi.pt.

No caso em apreço nos autos, e atentos os factos provados e não provados, é manifesto que o embargante, ora apelante, ao intentar os presentes embargos de terceiro, com os fundamentos e imputações que fez - deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar; alterou a verdade dos factos e usou os presentes autos de forma manifestamente reprovável com o fim de conseguir objectivo ilegal – e ainda quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, como também à exequente. Ora, não restam quaisquer dúvidas que o embargante/apelante actuou senão dolosamente, pelo menos, com negligência muito grave. Logo, afastada fica a alegação do mesmo de que se estaria perante uma mera lide temerária ou ousada!!!.

Destarte e sem necessidade de outros considerandos a conduta do embargante nos presentes autos foi, além do mais já acima referido, grave do ponto de vista ético e assim manifestamente reprovável pelo que tem de ser, correspectivamente, sancionada por litigância de má-fé substancial.

O montante da multa, de harmonia com o disposto no art.º 27.º n.º3 do RCProcessuais, é fixado entre duas unidades de conta a cem unidades de conta. Sendo que “O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”, cfr. n.º4 do citado art.º 27.º.

Por fim dir-se-á ainda que a existência de litigância de má-fé determina a condenação numa indemnização à parte contrária, desde que exista pedido, cfr. art.º 542.º n.º 1 do C.P.Civil. Tal pedido deve ser formulado antes da prolação de decisão final, sob pena de preclusão.

O quantitativo da indemnização é delimitado pelo art.º 543.º n.º 1 do C.P.Civil. São previstos dois tipos de indemnização, a saber: danos emergentes directamente causados – alínea a); todos os prejuízos, incluindo lucros cessantes, em consequência directa ou indirecta da má-fé – alínea b).

A opção entre um e outro tipo de indemnização deve ser realizada em função da gravidade da conduta do litigante.

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O Tribunal “a quo” condenou o embargante/apelante na multa de 5 UC’s.

No que concerne ao montante da indemnização em que o mesmo foi condenado, tendo em consideração, o tempo de pendência destes autos e as suas vicissitudes, sem olvidar a difícil situação económica que o mundo, o país e cada cidadão enfrenta, mas ainda assim, importa fixar um valor que não seja desprezível, pois o comportamento do embargante é censurável e as situações de litigância de má-fé devem ser eficazmente punidas, por razões de prevenção geral, associadas à própria eficácia do sistema judicial, consequentemente julgamos que será mais justo e adequado, sancionar o embargante/apelante e que litigou de má-fé com o pagamento de uma multa no montante de apenas 3 UCs, cfr. art.º 102.º do CCJ.

Destarte, nenhuma censura nos merece a condenação do embargante/apelante como litigante de má-fé feita em 1.ª instância e a cuja fundamentação aderimos, todavia entendemos reduzir a respectiva multa a 3 UCs.

E no que respeita à indemnização devida à parte contrária ela é devida e será oportunamente, como está decidido, fixada em 1.ª instância."

[MTS]