Processo de inventário;
bens comuns; arrolamento
I - Vigorando entre os cônjuges o regime da comunhão de adquiridos, o artigo 1724.º do CC prevê que fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges (al. a) bem como os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (al. b), mais dispondo o artigo 1725.º do CC que, quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns.
II - Discutindo-se para efeitos de partilha subsequente a divórcio se é próprio ou comum um estabelecimento comercial revela-se fundamental determinar quais os elementos essenciais que o compõem, por forma a aferir com que meios foram adquiridos e quando o mesmo foi criado e adquirido.
III - O arrolamento, enquanto providência cautelar de garantia ou de natureza conservatória, está sempre na dependência de uma ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.
IV - A finalidade do arrolamento como preliminar ou incidente do processo de divórcio é idêntica à do arrolamento como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente a divórcio, mantendo-se até à subsequente partilha do património comum dos ex-cônjuges.
V - Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409.º, n.º 3, do CPC quanto à dispensa da necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto incidente do inventário instaurado para partilha do património comum dos ex-cônjuges, porquanto nesses casos ocorre situação merecedora de idêntica tutela.
VI - Comprovado o regime de bens do casal (comunhão de adquiridos) e considerada a presunção de comunicabilidade dos bens móveis (artigo 1725.º do CC), bem como a notória dificuldade do requerente em aceder às contas que não estão em seu nome, por via do sigilo bancário, está preenchido o fumus boni juris que justifica o decretamento do arrolamento dos saldos e/ou valores de qualquer conta de depósitos, à ordem ou a prazo, poupança, fundos de investimento mobiliário, ações ou quaisquer outros títulos e valores depositados que a requerida seja titular ou cotitular em qualquer Banco ou instituição financeira a operar em Portugal, tanto mais que a titularidade de uma conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles, sendo este dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas e consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens - cf. artigos 403.º e 406.º do CPC.
Neste domínio, acrescentam ainda os artigos 404.º e 405.º do CPC, o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo o requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação devendo ainda, caso o direito relativo aos bens dependa de ação proposta ou a propor, convencer o Tribunal da provável procedência do pedido correspondente. O juiz ordenará as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.
Contudo, o artigo 409.º, do CPC com a epígrafe «Arrolamentos especiais» prevê, no seu n.º 3, não ser aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 403.º do CPC aos arrolamentos previstos nos n.ºs 1 e 2 do preceito, ou seja, dispensa a necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, nos seguintes casos:
- arrolamento, requerido por qualquer dos cônjuges, de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento (n.º 1);- arrolamento de bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração (n.º 2).
Ponderando o âmbito e a finalidade de tal dispensa, esclarecem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (5): «A situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim “presumir”, juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação (…), poupando, aliás, mais um motivo de discussão entre os cônjuges. Mas a dispensa não é extensível ao fumus boni juris, pelo que o cônjuge requerente tem de provar que é casado com o requerido e que há séria probabilidade de os bens a arrolar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge (…), entendendo-se também que o requerente está igualmente dispensado de demonstrar a probabilidade da procedência da acção proposta ou a propor (…)».
No caso dos autos não estamos perante preliminar ou incidente de ação judicial de separação de pessoas e bens ou de divórcio uma vez que, tal como resulta assente, o matrimónio existente entre requerente e requerido foi dissolvido em 06 de abril de 2017, por decisão proferida pela Conservatória do Registo de … no processo de divórcio por mútuo consentimento, e transitada em julgado na mesma data, sendo que na sequência da dissolução do casamento foi intentado o processo de inventário, com vista à partilha dos bens comuns do extinto casal.
Assim sendo, resulta manifesto que o arrolamento aqui em apreço surge como incidente e como dependência de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.
A questão de saber se a dispensa da verificação do requisito previsto no n.º 1 do artigo 403.º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409.º, n.º 3 do CPC, é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal após a dissolução do casamento por divórcio tem sido objeto de controvérsia jurisprudencial.
Ora, conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-11-2015 (Relator Bernardo Domingos; p. 1423/15.6T8STR.E1 disponível em www.dgsi.pt.) «Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das acções aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da acção, mas os actos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na acção de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efectuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens. E por isso já se entendeu que nos arrolamentos previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, cabe também o arrolamento requerido após o divórcio, separação de bens ou declaração de nulidade ou anulação de casamento, desde que não tenha sido realizada a partilha, ou seja como preliminar ou incidente, já não daquelas acções, mas sim do inventário para partilha de meações» (Em sentido idêntico, cf. ainda, entre outros, os Acs. TRG de 26-05-2022 (relator: António Figueiredo de Almeida), p. 323/11.3TMBRG-A. G1; TRL de 28-06-2018 (relator: António Valente), p. 21568/17.7T8SNT.L1-8; de 10-03-2016 (relator: Ezagüy Martins), p. 169/13.4TMFUN-A-L1-2; de 18-09-2014 (relatora: Teresa Pais) p. 2170/14.1TBSXL.L1-8; de 19-12-2013 (relatora: Graça Amaral), p. 7669/12.1TCLRS-C. L1-7; do TRP de 17-11-2009 (relatora: Maria Eiró) p. 2186/06.1TBVCD-A. P1; em sentido divergente, cf. Acs. TRP de 2-05-2005 (relator: Sousa Lameira); do TRL de 17-07-2000 (relator: Sampaio Beja) p. 070091; todos disponíveis em www.dgsi.pt.). [...]
A este propósito, sublinha Marco Carvalho Gonçalves (Cf. Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais): «visando o arrolamento conservar os bens comuns do casal até que se verifique a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art. 409.º, n.º 1, deve igualmente ser aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal do vínculo conjugal, pois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até à concretização da partilha do património comum».
Daí que seja de sufragar o entendimento no sentido de que a dispensa da verificação do requisito previsto no n.º 1 do artigo 403.º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409.º, n.º 3, CPC é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.
Por conseguinte, sendo o presente arrolamento instaurado como incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio, estava o ora recorrido, na qualidade de ex-cônjuge requerente, dispensado de alegar e demonstrar a existência de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens que identifica."
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