"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/05/2023

Jurisprudência 2022 (174)


Intervenção principal;
terceiro insolvente


1. O sumário de RG 15/9/2022 (84/21.8T8PVL-A.G1) é o seguinte:

I - A intervenção principal provocada pode destinar-se a sanar a preterição de litisconsórcio necessário, assegurando a legitimidade activa ou passiva, mas não se destina exclusivamente a esse efeito. Também no caso de litisconsórcio voluntário, autor e réu podem requerer a intervenção principal provocada de outros sujeitos passivos, embora as condições para tal sejam diferentes consoante se trate do autor ou do réu.

II - O réu pode provocar a intervenção principal, nomeadamente e no que ao caso interessa, “quando mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida” ou quando for condevedor solidário da prestação que lhe está a ser exigida e pretenda fazer intervir o outro condevedor solidário, a fim de obter o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação.

III - No caso em apreço, a lei confere à sociedade, cuja intervenção se pretende provocar (empreiteira), legitimidade para ser demandada, isoladamente ou a par da vendedora do imóvel (cfr. art.º 1225º n.º 1 do Código Civil), por ser igualmente responsável pelo prejuízo causado ao terceiro adquirente. Legitimidade para ser demandada que também lhe confere o Decreto-Lei n.º 67/2003 (VENDA DE BENS DE CONSUMO E DAS GARANTIAS A ELA RELATIVAS), nos seus art. ºs 4º, nº 6 e 6º. Diploma que igualmente prevê o direito de regresso do vendedor contra o produtor.

IV – Sendo o vendedor do imóvel demandado pelo comprador, por vícios de construção, é manifesto e atendível o interesse daquele em fazer intervir a construtora (empreiteira), em razão não só do eventual direito de regresso contra a construtora, mas também como auxiliar na defesa.

V - Contudo, nas concretas circunstâncias do presente caso, face à jurisprudência fixada pelo AUJ 1/2014 (DR, I Série, nº 39, de 25.02.2014), e especificamente a sua fundamentação, concluímos que a intervenção principal provocada requerida pela ré, aqui recorrente, não pode ser admitida, porque a sociedade construtora do imóvel, que se pretende fazer intervir, foi declarada insolvente e, como tal, não poderia ser aqui demandada pelos autores, que apenas poderiam exercer contra ela o seu direito de crédito na insolvência, através do meio processual próprio (reclamação de créditos). Ora, tal como a insolvente não poderia aqui ser demandada pelos autores, também a ré não a pode chamar a intervir a título principal, com fundamento no nº3 do art.º 316º do CPC (inutilidade).

VI - Do mesmo modo, não pode a ré, aqui recorrente, através desta acção, acautelar ou ver reconhecido o seu direito de regresso (art.º 317º do CPC), pois, mesmo que existisse sentença nesse sentido, ela não produziria qualquer efeito no processo de insolvência.

VII - Em suma, além de inadmissível, seria absolutamente inútil o chamamento da insolvente, carecendo assim a ré de qualquer interesse atendível nessa intervenção, inclusivamente a de auxiliar da sua defesa.

VIII – As mesmas razões ditam a inadmissibilidade de chamar a insolvente como parte acessória, acrescendo que a construtora (insolvente), tendo originariamente legitimidade para intervir como parte principal, nunca poderia ser chamada como parte acessória – cfr. art.º 321º nº 1 (parte final) do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso em apreço a lei confere àquela que se pretende fazer intervir (empreiteira) legitimidade para ser demandada, isoladamente ou a par da vendedora do imóvel (cfr. art.º 1225º n.º 1 do Código Civil), por ser igualmente responsável pelo prejuízo causado ao terceiro adquirente.

Legitimidade para ser demandada que também lhe confere o Decreto-Lei n.º 67/2003 (VENDA DE BENS DE CONSUMO E DAS GARANTIAS A ELA RELATIVAS), no seu art. ºs 4º nº 6 e 6º. Diploma que igualmente prevê o direito de regresso do vendedor contra o produtor.
Consequentemente, em face das citadas normas, poderia a ré, aqui recorrente, fazer intervir a litisconsorte (voluntária) desde que demonstrasse interesse atendível nesse chamamento.

Como refere Salvador da Costa (Os incidentes da instância, Almedina, 11ª edição, pág. 89): “O referido interesse do requerente é susceptível de se consubstanciar na defesa conjunta, no acautelamento do direito de regresso ou da sub-rogação legal ou na formação de caso julgado contra o chamado”.

Reconhecemos, em tese, ser objectivo o interesse da vendedora em fazer intervir a construtora (empreiteira) quando é demandada precisamente por vícios da construção.

Tal interesse resultaria não só do eventual direito de regresso contra a construtora, se os assacados defeitos resultarem da obra que esta realizou e a ré for condenada a eliminá-los, mas também para que a possa auxiliar na defesa, por ser precisamente aquela a quem é assacado o vício e quem deveria estar a par de como foi construído o edifício.

Contudo, nas concretas circunstâncias do presente caso, a intervenção principal provocada requerida pela ré aqui recorrente não pode ser admitida, porque a sociedade construtora do imóvel, que se pretende fazer intervir, foi declarada insolvente e, como tal, não poderia ser aqui demandada pelos autores, que apenas poderiam exercer o seu direito de crédito na insolvência, através do meio processual próprio (reclamação de créditos).

Efectivamente, a jurisprudência fixada pelo AUJ 1/2014 (DR, I SÉRIE, Nº 39, 25.02.2014, determina que “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C.)”.

O que, mutatis mutandis e até por maioria de razão, obviamente impediria a propositura da presente acção contra a insolvente, pois, o que obsta ao prosseguimento também impede a propositura.

Como se explana no douto AUJ citado:

“Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, destinando-se a massa insolvente – que abrange, por regra, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que adquira na pendência do processo - à satisfação dos seus créditos, 'ut' arts. 46.º/1 e 47.º/1).

E, dentro do prazo fixado, devem os credores da insolvência (2) (…) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, com as indicações discriminadas, sendo que a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e, mesmo que o credor tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento – art. 128.º, n.ºs 1 e 3.

O efeito da declaração de insolvência sobre os créditos que se pretendam fazer pagar pelas forças da massa insolvente vem categoricamente proclamado no art. 90.º:

Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência. (…)

Bastará lembrar que, na hipótese em que discorre, mesmo que obtivesse atempadamente o reconhecimento judicial do seu pedido na acção pendente, a respectiva sentença, valendo apenas inter partes, mais não constituiria do que um documento para instruir o requerimento da reclamação/verificação de créditos (art. 128.º/1), não dispensando a recorrente de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, nem a isentando da probabilidade de o ver impugnado e de ter de aí fazer toda a prova relativa à sua existência e conteúdo.”

Consequentemente, tal como a insolvente não poderia aqui ser demandada pelos autores, também a ré não a pode chamar a intervir a título principal, com fundamento no nº3 do art.º 316º.

Do mesmo modo, não pode a ré, aqui recorrente, através desta acção, acautelar ou ver reconhecido o seu direito de regresso (art.º 317º). Mesmo que existisse sentença nesse sentido, ela não produziria qualquer efeito no processo de insolvência.

Com efeito, parafraseando o citado AUJ, “sendo certo que a mera reclamação do crédito não assegura que o mesmo seja, a final, reconhecido, é igualmente seguro que a existência de uma decisão definitiva que o reconheça, não só não dispensa o credor de o reclamar, na insolvência, como não lhe assegura que tal crédito não seja impugnado”. [...]

Em suma, além de inadmissível, seria absolutamente inútil o chamamento da insolvente, carecendo assim a ré de qualquer interesse atendível nessa intervenção, inclusivamente a de auxiliar da sua defesa, face à dissolução da sociedade e do seu estabelecimento industrial, e aos fins prosseguidos pela insolvência, que visam apenas a liquidação do património para satisfação das dívidas da insolvente.

O que se acabou de explanar serve igualmente para rejeitar a possibilidade de admitir a insolvente a intervir como parte acessória, acrescendo que a construtora (insolvente) tendo originariamente legitimidade para intervir como parte principal, nunca poderia ser chamada como parte acessória – cfr. art.º 321º nº 1, parte final."

[MTS]