"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/05/2023

Jurisprudência 2022 (181)


Audiência prévia, prova documental;
junção de documentos*


1. O sumário de RL 29/2/2022 (3202/18.0T8PDL-C.L1-2) é o seguinte:

I - O regime do art.º 423.º do CPC, atinente ao momento da apresentação dos documentos, não visa afastar ou excecionar a regra do art.º 598.º do CPC, a qual foi aditada à Proposta de Lei n.º 113/XII já na Assembleia da República e não podia ter sido visada pelo legislador quando delineou o regime do art.º 423.º do CPC.

II - A regra do art.º 598.º representa um plus relativamente à regra geral atinente à apresentação dos requerimentos probatórios nos articulados, complementando-a, ao possibilitar, em termos amplos, a alteração dos requerimentos probatórios; quando o regime do art.º 598.º não seja aplicável, então sim, as partes poderão lançar mão de outras regras legais, como a do art.º 423.º do CPC.

III - As regras do art.º 423.º podem não ser aplicáveis quando ao caso convierem outros princípios ou regras, em particular as relativas ao dever de gestão processual ou aos princípios da cooperação e do inquisitório (cf. art.ºs 6.º, 7.º e 411.º, do CPC). Com efeito, se o juiz convidar ou ordenar à parte que junte um documento, não poderá, caso esta corresponda ao convite ou determinação do tribunal, condená-la em multa.

IV - Nos presentes autos, os Réus-Apelantes viram atendida a sua pretensão de alteração do requerimento probatório, para a qual lhes havia concedido prazo na audiência prévia em termos amplos, sem qualquer espécie de restrição. Logo, à semelhança do que sucederia se o tivessem requerido na audiência prévia, por aplicação do disposto no art.º 598.º do CPC, podiam, não apenas, ter alterado o seu rol de testemunhas (conforme fizeram, mediante aditamento), mas também alterado a prova documental, juntando novos documentos, não se justificando a sua condenação em multa nos termos do art.º 423.º do CPC, aqui inaplicável.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] É sabido que o CPC de 2013 veio introduzir, no processo declarativo comum, a regra geral da apresentação pelas partes dos seus requerimentos probatórios nos articulados, o que, quanto à contestação, se encontra previsto no art.º 572.º, al. d), do CPC, sendo reiterado, de forma mais abrangente e especificamente quanto aos documentos, no art.º 423.º, n.º 1, do CPC.

No entanto, outras regras existem no sentido de mitigar as limitações que advêm desse ónus, designadamente as consagradas no art. 423.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, estabelecendo que, se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado; e que, após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

O desafio que o caso em apreço suscita é o da articulação destas regras com o disposto no art.º 598.º, n.º 1, do CPC, nos termos do qual o requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando à mesma haja lugar (ao abrigo dos art.ºs 591.º ou 593.º, n.º 3, ambos do CPC).

Sobre esta problemática, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 644-645, referem o seguinte [...]: «As partes podem alterar na audiência prévia, por substituição ou ampliação, a proposição da prova constituenda (isto é, daquela que se produz no processo: cf. art.º 415-2) feita nos articulados. Essa possibilidade de alteração também ocorre em momento anterior do processo (cf. os art.ºs 552-2, 2.ª parte, e 572-d-2.ª parte); não havendo audiência prévia, às partes deve ser consentida a alteração do requerimento probatório no prazo (geral) de 10 dias contados da notificação do despacho previsto no art.º 596-1, ainda que tal conduza à retificação do despacho de programação da audiência final. Com efeito, não se justificaria que o direito das partes à alteração do requerimento probatório precludisse com a dispensa da audiência prévia. (…) É controvertido o âmbito consentido para a alteração do requerimento probatório. Assim, por exemplo, se a parte inicialmente se tiver limitado a arrolar testemunhas, pode perguntar-se se mais tarde pode requerer prova pericial, ou se apenas lhe é lícito alterar o rol. PAULO RAMOS DE FARIA – LUÍSA LOUREIRO, Primeiras notas, cit., n.º 1.1. da anotação do art.º 598, adotam uma interpretação generosa do art.º 598-1, aceitando nomeadamente que a parte que inicialmente só ofereceu prova documental arrole testemunhas mais tarde (mas, ao invés, pronunciando-se contra a possibilidade de alteração do requerimento probatório quando a audiência prévia não se realize). Também no ac. do TRP de 12.5.15 (HENRIQUE ARAÚJO), www.dgsi.pt, proc. 7724/10, se entende que o conceito de requerimento probatório “pode abranger prova pericial, documental, testemunhal, etc.” Tendemos a perfilhar uma interpretação do art. 598-1, e, em geral, dos preceitos que aludem a requerimentos probatórios, mais restritiva do que esta: a prova documental está sujeita a um regime particular quanto ao seu momento de apresentação (o dos arts. 423 a 425), pelo que aqueles preceitos não a têm em vista, não consentindo, nomeadamente, a substituição de um documento por uma testemunha e vice-versa, ou o aditamento de uma testemunha à oferta de um documento e vice-versa; mas, dentro da prova constituenda, não vemos obstáculo à substituição ou ao aditamento (assim, proposta inicialmente apenas prova testemunhal, é lícito à parte requerer prova pericial nos termos do art.º 598-1).»

Mais adiante (cf. págs. 674-675), continuam estes ilustres professores, lembrando que face à exigência de que a prova seja proposta com os articulados [com a possibilidade de alteração do requerimento probatório após o articulado-resposta da parte contrária – cf. art.ºs 552.º, n.º 2, e 572.º, al. d), ambos do CPC] se colocou ao legislador de 2013 a questão de saber se – e em que termos – devia admitir-se a alteração do requerimento apresentado na audiência prévia, tendo a Comissão dois entendimentos sucessivos, um no Anteprojeto e outro, mais restritivo, no Projeto (PL 521/2012, de 2012-11-22) e Proposta de Lei (n.º 113/XII), deixando-se neste último de admitir a alteração, na fase da audiência prévia, dos requerimentos probatórios, vindo, todavia, a ser reintroduzida pela Assembleia da República a admissibilidade da alteração.

Não podemos, todavia, acompanhar, pelo menos não inteiramente, a posição destes ilustres professores, seja no tocante à facultade de alteração do requerimento probatório fora da audiência prévia apesar de não prevista na lei (em nosso entender, só consentida por via dos deveres de gestão processual e adequação formal – cf. art.ºs 6.º e 547.º do CPC), seja, no que ora nos ocupa, quanto à amplitude consentida à alteração do requerimento probatório pelo art.º 598.º do CPC, não descortinando razão para uma interpretação restritiva nos moldes referidos, antes se nos afigurando mais defensável a posição sufragada pela citada doutrina e jurisprudência.

Nesta linha de pensamento, além do aludido acórdão da Relação do Porto, também parece apontar o acórdão da Relação de Évora de 24-10-2019, proferido no proc. n.º 1670/13.5TBPTM-J.E1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que:

Uma coisa é alterar o requerimento probatório, que pode abranger prova pericial, documental testemunhal, outra coisa, bem mais limitada, é alterar ou aditar o rol de testemunhas, que é, apenas, um dos segmentos do requerimento probatório.

Os tempos de apresentação desses pedidos também são diferentes.

Enquanto a alteração do requerimento probatório pode ocorrer na audiência prévia, quando a esta haja lugar, o rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final.”

Na verdade, o regime do art.º 423.º do CPC (à semelhança do previsto no art.º 510.º do CPC quanto à substituição de testemunhas) não visa afastar ou excecionar a regra do art.º 598.º do CPC, a qual foi aditada já na Assembleia da República e não podia ter sido visada pelo legislador quando delineou o regime do art.º 423.º do CPC. A regra do art.º 598.º representa um plus relativamente à regra geral atinente à apresentação dos requerimentos probatórios nos articulados, complementando-a, ao possibilitar, em termos amplos, a alteração dos requerimentos probatórios; naturalmente, quando o regime do art.º 598.º não seja aplicável, então sim, as partes poderão lançar mão de outras regras legais, como a do art.º 423.º do CPC.

Diga-se ainda, face à argumentação expendida pelas Apelantes, ao invocarem o princípio da igualdade, que mesmo as regras do art.º 423.º podem não ser aplicáveis quando ao caso convierem outros princípios ou regras, em particular as relativas ao dever de gestão processual ou aos princípios da cooperação e do inquisitório (cf. art.ºs 6.º, 7.º e 411.º, do CPC). Com efeito, é óbvio que se o juiz convidar ou ordenar à parte que junte um documento, não poderá, caso esta corresponda ao convite ou determinação do tribunal, condená-la em multa. Tal seria ilógico e até atentaria contra o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático – cf. art.º 2.º da CRP).

Nos presentes autos, os Réus-Apelantes viram atendida a sua pretensão de alteração do requerimento probatório, para a qual, sublinhe-se, lhes havia sido concedido prazo na audiência prévia em termos amplos, sem qualquer espécie de restrição (como a propugnada pelos ilustres Professores).

Destarte, à semelhança do que sucederia se o tivessem requerido na audiência prévia, por aplicação do disposto no art.º 598.º do CPC, podiam, não apenas, ter alterado o seu rol de testemunhas (conforme fizeram, mediante aditamento), mas também alterado a prova documental, juntando novos documentos, não se justificando a sua condenação em multa nos termos do art.º 423.º do CPC, aqui inaplicável."


*3. [Comentário] a) A posição da RL é, quanto à articulação entre o disposto nos art. 423.º e 598.º, n.º 1, CPC, a seguinte:

-- O art. 598.º, n.º 1, CPC tem, mesmo em matéria de prova documental, um campo de aplicação mais amplo do que o art. 423.º CPC;

-- O art. 423.º CPC só é aplicável se o art. 598.º, n.º 1, CPC não o for.

Noutros termos: o disposto no art. 423.º CPC tem um campo de aplicação subsidiário perante o estabelecido no art. 598.º, n.º 1, CPC.

b) Salvo o devido respeito, não se acompanha esta solução pelas seguintes razões:

-- O art. 598.º, n.º 1, CPC apenas permite a alteração do requerimento probatório se houver audiência prévia;

-- Ainda que, de facto, a realização da audiência prévia seja a regra, o campo de aplicação do art. 598.º, n.º 1, CPC não pode ser mais amplo, em matéria de prova documental, que o do art. 423.º CPC; basta atentar que este preceito é aplicável independentemente da realização ou não realização da audiência prévia.

-- O art. 423.º CPC contém, por isso, a regra em matéria de apresentação de prova documental em 1.ª instância;

-- Aliás, se, como se entendeu no acórdão, o art. 423.º CPC só fosse aplicável se o não fosse o art. 598.º, n.º 1, CPC, então ter-se-ia um regime respeitante à apresentação de prova documental diferente consoante no processo se tivesse realizado ou não realizado a audiência prévia: no primeiro caso, a apresentação seria admissível sem quaisquer restrições; no segundo, valeriam as restrições impostas pelos n.º 2 e 3 do art. 423.º CPC; salvo melhor opinião, trata-se de uma consequência inaceitável;

-- O paralelismo entre o estabelecido no art. 598.º, n.º 2, CPC (quanto à alteração do rol de testemunhas) e no art. 423.º, n.º 2, CPC (quanto à apresentação de documentos) mostra que, se aquele preceito é aplicável independentemente de se realizar ou não realizar a audiência prévia, o mesmo tem de suceder quanto ao disposto no art. 423.º, n.º 2, CPC.

Em conclusão: 

-- O art. 598.º, n.º 1, CPC contém o regime geral de alteração do requerimento probatório quando se realize a audiência prévia;

-- O art. 423.º CPC contém o regime especial de apresentação da prova documental em 1.ª instância, independentemente da realização ou não realização da audiência prévia;

-- Logo, este regime especial deve prevalecer sobre aquele regime geral.

c) Posto isto, pode colocar-se a seguinte pergunta: se, em função do tratado e discutido na audiência prévia, se tornar indispensável a junção de um documento por qualquer das partes, qual é a solução? 

O art. 423.º, n.º 3, CPC responde: esse documento pode ser junto pela parte, porque a sua junção se tornou necessária em virtude de uma ocorrência posterior. Se a apresentação do documento é, nesta circunstância, admissível mesmo quanto já não faltem 20 dias para a realização da audiência final, então, por maioria de razão, essa apresentação é admissível quando ainda faltem mais de 20 dias para essa realização.

d) Em suma: 

-- O problema da apresentação da prova documental deve ser sempre resolvido a partir do disposto no art. 423.º CPC, não sendo relevante, para esse efeito, considerar se no processo se realizou ou não realizou a audiência prévia;

-- Procurar resolver o problema da apresentação da prova documental a partir da realização da audiência prévia e, portanto, do art. 598.º, n.º 1, CPC não só esquece o regime especial que consta do art. 423.º CPC para essa apresentação, como conduz a soluções distintas para esse problema.

MTS