1. O sumário de RC 13/9/2022 (1650/22.0T8LRA.C1) é o seguinte:
Insurge-se a Requerente/Apelante, contra o decidido, com a seguinte fundamentação: [...]
- tendo os requeridos alegado a nulidade da procuração usada pela requerente para transmitir a quota, sem que tivessem alegado qual o motivo da alegada nulidade da procuração, tal nulidade não tinha como ser atendida;
- não sendo objeto dos autos a validade da transmissão de quotas, não podia o tribunal pronunciar-se sobre essa mesma validade e consequente legitimidade da Requerente para intentar a presente ação.
Vejamos, então, se o facto de ter sido proferido despacho de dispensa do contraditório relativamente ao procedimento de suspensão imediata das funções de gerente, impedia o juiz de conhecer da questão da nulidade da procuração usada pela Requerente para transmitir a quota, a validade da cessão efetuada a seu favor e a consequente questão da sua legitimidade para a instauração da presente ação, começando por analisar os fundamentos sustentados a tal respeito pela Apelante: [...]
c. Não sendo objeto dos presentes autos a validade ou transmissão de quotas, não poderia o tribunal pronunciar-se sobre essa mesma validade e consequente legitimidade ou não do requerente para intentar a presente ação.
A verdadeira questão que aqui se coloca consiste em determinar se, uma vez dispensada a sua audiência prévia, podia o tribunal, nesta fase, a que se refere o artigo 1055º, nº 2 CPC – em que não está prevista a intervenção dos requeridos e que era suposto decorrer na sua ausência –, conhecer das questões levantadas pelos requeridos em tal requerimento.
Não podendo, em regra, o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (artigo 609º, nº2 do CPC), será nula a sentença que o faça, por conhecer de questões de que não podia conhecer, nos termos artigo 615º, nº1, al. d), do CPC.
No caso em apreço, a resposta à questão de saber se podia, ou não, o tribunal apreciar as questões em causa, será necessariamente afirmativa se se encontrarem em causa questões de conhecimento oficioso por parte do tribunal.
E é precisamente o caso: ainda que não tenha sido deduzida contestação, por ter sido dispensada, nesta fase, a audição dos Requeridos, ao tribunal incumbia, desde logo e em primeiro lugar, apreciar a questão da legitimidade, não só processual, mas também substantiva, da requerente para deduzir as pretensões aqui apresentadas contra o gerente e a sociedade, da qual se intitula sócia.
Assim sendo, alegando a Requerente ter adquirido a quota de 12.000,00 € da titularidade do gerente BB, através de uma procuração irrevogável, emitida por este a seu favor, pela qual lhe conferia poderes para ceder tal quota a terceiros, inclusive a si própria, e sendo requisito de legitimidade a qualidade de sócia da requerida, ao tribunal incumbia a tarefa de apreciar se tal procuração preenchia os requisitos legais, quer quanto à forma, quer para aferir se os poderes atribuídos por esta lhe conferiam a faculdade de realizar um negócio consigo mesma.
E, tal conhecimento oficioso mais se impunha pela circunstância de, tratando-se de ação de suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais, se inserir no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, onde o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (artigo 986º, nº2 do CPC).
“O nº 2 prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do inquisitivo, de modo a que «os factos essenciais que constituem a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal, já que este pode considerar outros factos (complementares, concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual), para além daqueles que são alegados pelas partes [António José Fialho, “Conteúdo e Limites do Princípio do Inquisitório na Jurisdição Voluntária”, p. 97, citado por António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, nota 5. ao artigo 986º, p.436.]
Quer se trate de “factos integrantes da causa de pedir ou das exceções, de factos complementares ou concretizadores desses factos essenciais, ou de factos instrumentais ou indiciários (…) na jurisdição voluntária, os poderes do tribunal não dependem do cumprimento de nenhum ónus de alegação, na medida em que o tribunal pode conhecê-los oficiosamente, investigando-os por sua iniciativa ou em consequência da alegação dos interessados [Maria dos Prazeres Beleza, “Jurisprudência sobre o Rapto Internacional de Crianças”, Revista Julgar, nº 124, p. 70.]
Ou, como se afirma no Acórdão do STJ de 16-06-2015 [Acórdão relatado por Fonte Ramos, disponível in www.dgsi.pt.], no processo de suspensão ou destituição de órgãos sociais, previsto no art. 1055ºº CPC, o tribunal tem o poder/dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986º, n.º 2, do CPC) – o material de facto, sobre o qual há de assentar a resolução, é não só o que os interessados ofereçam, senão também o que o juiz conseguir trazer para o processo pela sua própria atividade.
Como tal, e independentemente de que a questão ter sido suscitada (ou não) pelos requeridos, para apreciar o direito invocado pela autora, e invocando esta a aquisição da quota com base numa procuração irrevogável que lhe atribuía poderes para ceder a quota, inclusive a si própria, o tribunal podia e devia, oficiosamente, apreciar a validade de tal procuração, e daí retirar as devidas consequências quanto à própria validade da cessão de quotas, por essencial à determinação da legitimidade da requerente, dependente da comprovação da qualidade de sócio (art. 257º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais).
Como tal, não se verifica a invocada nulidade por excesso de pronúncia."
[MTS]