"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/05/2023

Jurisprudência 2022 (189)


Embargos de executado;
efeito de caso julgado; excepção de caso julgado*


1. O sumário de RL 28/9/2022 (2171/20.0T8CSC.C1) é o seguinte:

Se o executado alegou, como fundamento da oposição à execução a titularidade do direito real sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial representada pela penhora e a irresponsabilidade desse bem pela satisfação da obrigação exequenda, e o exequente adquiriu, na execução, que prosseguiu por força da decisão de improcedência daquela oposição, aquele direito real, o caso julgado constituído sobre essa decisão, impede o reconhecimento ou a declaração, em acção posterior, contra o exequente, de que o executado é titular daquele direito real e o cancelamento do registo, daquela aquisição, a favor do exequente.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, cumpre notar que, ao contrário do que alega no recurso, a apelante [agora autora e ex-executada nos termos do art. 54.º, n.º 2, CPC] não se limitou a pedir, na acção, a declaração de nulidade dos registos da aquisição a favor da apelada [agora ré e ex-exequente] do direito real de propriedade  por compra e adjudicação em execução - sobre a fracção à custa da qual foi satisfeito coactivamente, designadamente na acção executiva a que se opôs por embargos, o crédito objecto do pedido executivo; a apelante formulou ainda – cumulativamente – um outro pedido de maior relevo ou alcance: a condenação da apelante no reconhecimento do seu direito real de propriedade sobre aquele mesmo bem imóvel. E é este, de resto, o fundamental efeito jurídico que o apelante se propõe obter com a acção: a declaração de que é e ele – e não a apelada  o titular do direito real de propriedade sobre o bem imóvel sobre que foi constituída, na execução, a garantia patrimonial representada pela penhora e à custa do qual foi satisfeito, por adjudicação, o crédito da apelada, e é mesmo tal declaração que é susceptível de determinar o cancelamento do registo da aquisição daquele direito real a favor da recorrida, por evidente desconformidade entre a situação jurídica publicitada pelo registo – a titularidade desse direito pela apelada - e a realidade jurídica subjacente – a titularidade desse mesmo direito pelo apelante.

Consabidamente, o bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a terceiro, seja porque a garantia real foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, seja porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia. Se a garantia tiver sido constituída ou incidir sobre um bem que não pertence ao devedor, o direito de execução recai sobre o mesmo bem (art.º 818.º, 1.ª parte, do Código Civil). Na hipótese de o bem onerado pertencer a terceiro, verifica-se uma cisão entre a titularidade do débito – que é o devedor – e o sujeito que é responsável – que é o terceiro. Mas, mesmo neste caso, a legitimidade do terceiro assenta, ainda, na responsabilidade patrimonial.

Ora como decorre da petição de oposição à execução e da decisão que a indeferiu in limine, aquela tinha por fundamento o facto de a titularidade do direito real de propriedade sobre aquele o bem se encerrar [sic] na titularidade do apelante, por o ter adquirido por compra, e de aquele não ser devedor da quantia exequenda e, portanto, aquele bem não responder pela satisfação do crédito exequendo  fundamento de oposição exasperadamente infundado, dado que o bem se encontrava onerado por uma garantia real – a hipoteca – uma vez que o apelante o adquiriu com esta garantia.

Quer dizer: o fundamento alegado pelo apelante nesta acção e o que invocou para se opor à execução são absolutamente homogéneos: a titularidade do direito real de propriedade sobre o bem à custa do qual foi satisfeito o crédito objecto da execução e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito exequendo. Homotropia que também se deve julgar verificada no tocante aos efeitos jurídicos visados pelo apelante com a oposição à execução e com a acção. É exacto que na oposição à execução se pediu a extinção da execução, não se tendo pedido – como, em regra, se não pede  o reconhecimento do direito real de propriedade sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial em que a penhora se resolve e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito objecto de satisfação coativa. Mas não o é menos que, um tal pedido está necessariamente implícito quando se invoca, como fundamento de contestação da execução, a titularidade do direito real bem que deve ser sacrificado para satisfazer o crédito exequendo e a sua irresponsabilidade pela satisfação do crédito objecto do pedido executivo, da mesma maneira que, caso a oposição procedesse por tal fundamento, a decisão correspondente teria necessariamente implícito, como pressuposto lógico irrecusável, o reconhecimento daquela titularidade e desta irresponsabilidade, reconhecimento que determinaria a extinção da execução, com a consequente impossibilidade de o exequente satisfazer o seu crédito, através da aquisição do direito real sobre o prédio e, evidentemente, de proceder ao registo, a seu favor, dessa aquisição.

Maneira que, se o executado se opõe à execução com fundamento no facto de ser titular do direito real de propriedade sobre o bem objecto da penhora – e posteriormente de venda ou de adjudicação executivas – e na irresponsabilidade desse bem pela satisfação do crédito exequendo, e a oposição é julgada improcedente, não lhe é lícito fazer valer contra o exequente, que adquiriu aquele direito na execução, em acção posterior, aquele direito real ou qualquer outro efeito jurídico – como, por exemplo, o cancelamento do registo de aquisição daquele direito e favor do exequente - que suponha a titularidade daquele direito real.

Sendo isto exacto, então há que concluir pela verificação no caso a apontada relação de identidade, i.e., a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa petendi, exigida pelo caso julgado.

Com efeito, se os sujeitos e o objecto desta acção são iguais ao da primeira acção – a oposição à execução – há que excluir a repetição da pronúncia do tribunal da execução, resultado que se obtém através da proibição da repetição da decisão anterior e da aplicação da excepção do caso julgado.

Mas vamos que um tal entendimento do problema se não deve ter por correcto [sic].

Como se observou, o executado tem o ónus de alegar na oposição ou nos embargos à execução todos os fundamentos possíveis de contestação da execução e o caso julgado que se forme sobre a decisão que julgue improcedente essa contestação, importa, por um lado, a execução da obrigação exequenda e, por outro, a preclusão de todo e qualquer outro fundamento de oposição, pelo que ao executado não é admissível obter, noutra acção, o reconhecimento de qualquer direito contra o exequente. Preclusão que opera através do caso julgado, e que prescinde mesmo da identidade de objecto entre a oposição à execução e a acção posterior. Assim, mesmo que o apelante não tivesse alegado, nos embargos, como fundamento destes, a titularidade do direito real e a irresponsabilidade do bem que constitui o seu objecto mediato pela satisfação do crédito referido no pedido executivo, que alega agora na acção superveniente, sempre se imporia concluir, no caso do recurso, pela verificação da excepção da res judicata.

Por último, uma decisão que reconhecesse, agora, o apelante como titular do direito real de propriedade seria, de todo, incompatível com a decisão de improcedência dos embargos e, consequentemente, com o prosseguimento da execução e com a satisfação coactiva do crédito exequendo à custa daquele direito, designadamente através da sua adjudicação ao exequente. Tendo-se decidido que nada obstava à satisfação coactiva do crédito objecto de execução, v.g. através da adjudicação daquele direito à apelada, não é admissível, por força do caso julgado, decidir agora que, afinal, o titular daquele direito não é o apelante – mas a recorrida. Uma tal decisão colidiria frontalmente com a decisão de indeferimento da oposição execução – da qual decorre a declaração de que nada obstava à execução da obrigação exequenda – e, consequentemente, com um efeito jurídico produzido nessa execução, subtraindo à apelante um direito que, na acção executiva, lhe foi atribuído.

Efectivamente, se o objecto da segunda acção é contraditório com o objecto da primeira, também há que excluir uma pronúncia contraditória com a anterior, desiderato que é conseguido através da proibição de contradição da decisão anterior e da excepção do caso julgado.

Todas as contas feitas, a conclusão a tirar é a da correcção da decisão impugnada no recurso. Cumpre, por isso, julgá-lo improcedente.

O conjunto da argumentação que determina a improcedência do recurso pode sintetizar-se nestes enunciados:

- O caso julgado constitui uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver;

- A excepção do caso julgado – dado que assenta na ideia de repetição de causas – exige uma relação de identidade quanto aos elementos subjectivos – partes – e objectivos – pedido e causa de pedir – da instância;

- Se, porém, a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado mantém a sua relevância: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial – i.e., que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto – vale como autoridade de caso julgado na acção que no qual se discuta o objecto dependente;

- Relativamente à identidade de pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem, sendo, portanto, suficiente uma identidade meramente relativa, dado que fica abrangido não só o efeito jurídico obtido no primeiro processo – como qualquer outro efeito jurídico que houvesse estado implícita, mas necessariamente em causa:

- A decisão de mérito proferida nos embargos à execução produz caso julgado, desde logo, quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda;

- O caso julgado da decisão de improcedência dos embargos importa não só a definição de que a obrigação exequenda não é inexistente, inválida ou inexigível com base no fundamento alegado pelo executado – mas também que a obrigação é existente, válida e eficaz, do que decorre um irrecusável efeito preclusivo quanto à possibilidade de alegação de qualquer outro fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade daquela obrigação.

- O executado tem o ónus de invocar, logo na petição dos embargos todos os possíveis fundamentos de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda e, uma vez decidido que esta obrigação não é inexistente, inválida ou inexigível pelo fundamento alegado pelo executado, é inevitável a execução da obrigação exequenda na acção executiva de que os embargos constituem dependência, pelo que não é admissível que ao executado possa vir a ser reconhecido, posteriormente, qualquer direito contra o exequente;

- Sempre que objecto da segunda acção seja contraditório com o objecto da primeira, também há que excluir uma pronúncia contraditória com a anterior, finalidade que é conseguida através da proibição de contradição da decisão anterior e da excepção do caso julgado:

- Se o executado alegou, como fundamento da oposição à execução a titularidade do direito real sobre o bem sobre que foi constituída a garantia patrimonial representada pela penhora e a irresponsabilidade desse bem pela satisfação da obrigação exequenda, e o exequente adquiriu, na execução, que prosseguiu por força da decisão de improcedência daquela oposição, aquele direito real, o caso julgado constituído sobre essa decisão, impede o reconhecimento ou a declaração, em acção posterior, contra o exequente, de que o executado é titular daquele direito real e o cancelamento do registo, daquela aquisição, a favor do exequente.

O apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-o responsável pelo pagamento das respectivas custas (art.º 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

*3. [Comentário] A RL decidiu bem. Se um executado, demandado pela circunstância de ser o titular do bem onerado com a hipoteca a favor do exequente (art. 54.º, n.º 2, CPC), deduz embargos de executado que são julgados improcedentes, não pode essa mesma parte pretender obter numa outra acção um efeito que seja incompatível com aqueles que resultaram da penhora desse bem e subsequente adjudicação ao exequente.

MTS