Agente de execução; incompatibilidades;
aplicação da lei no tempo*
TC 20/4/2023 (212/2023) decidiu:
[...] Não julgar inconstitucional a interpretação conjugada do artigo 3.º, n.º 13, da Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro, e do artigo 165.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução aprovado em anexo ao mesmo diploma, no sentido de os advogados, que se encontravam habilitados a exercer funções de agente de execução ao abrigo do regime vigente antes da aprovação daquele diploma, ficarem proibidos de cumular essas funções com o mandato judicial em qualquer caso, a partir do dia 31 de dezembro de 2017 [...]
2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:
"1. Vencido
Acompanho a fundamentação do Acórdão até ao ponto 12., divergindo somente do seu ponto 13.: em meu entender, a proibição de exercício do mandato judicial em qualquer processo pelos advogados que haviam adquirido habilitação para exercer funções de agente de execução ao abrigo do regime anterior viola o princípio da proteção da confiança, ínsito no artigo 2.º da Constituição.
2. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, o legislador invocou «a necessidade de aumentar o número de agentes de execução». Face a esse objetivo, «alarga-se a possibilidade de desempenho dessas funções a advogados e define-se o modelo e as condições para assegurar aos agentes de execução a formação adequada ao desempenho das respetivas funções», o que impôs «alterações ao regime de incompatibilidades, impedimentos e suspeições dos agentes de execução, restringindo as condições de exercício desta profissão», estabelecendo-se a proibição de exercício de mandato forense na ação executiva.
Os advogados que responderam a tal repto — e ponderando a viabilidade legal de manutenção da sua atividade forense, que o legislador lhes garantiu — investiram na preparação e submissão a um exame de admissão, afetando tempo e recursos. Uma vez obtida a aprovação no exame, custearam e frequentaram um curso de formação sobre direitos fundamentais, tecnologias de informação, técnicas de resolução de conflitos, fiscalidade e contabilidade. Depois, procuraram patrono para realizar um estágio de, pelo menos, 7 meses de prática profissional. Findo o estágio, foram avaliados por uma entidade externa e independente (cfr. artigo 118.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, na redação do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro). Uma vez terminada esta fase, prestaram juramento perante a Câmara dos Solicitadores e perante a Ordem dos Advogados (n.º 2 do artigo 119.º). E investiram na aquisição de equipamentos informáticos, na obtenção de espaços e infraestruturas, bem como na contratação de pessoal, necessários ao exercício das funções de agente de execução.
Ora, este estado de coisas foi radicalmente modificado pela norma fiscalizada, em 2015, que priva o exercício do mandato judicial em qualquer processo por advogados habilitados para funções de agente de execução. Sendo aquele a função nuclear do causídico, pôs-se em causa a confiança da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado, face aos planos de vida desenvolvidos na convicção da viabilidade legal de exercício pleno da advocacia.
3. Nos termos da jurisprudência deste Tribunal — sintetizada no Acórdão n.º 128/2009 — a proteção jurídico-constitucional da confiança depende do preenchimento cumulativo de quatro requisitos: «é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados “expectativas” de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do “comportamento” estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa».
3.1. Em meu juízo, os três primeiros pressupostos são evidentemente preenchidos pelo incentivo legislativo à atração dos advogados, pela sua submissão a um rigoroso, dispendioso e moroso processo de habilitação para as funções de agente de execução e a um juramento público. O avultado tempo e investimento necessários, bem como o juramento solene, não se compadeceria com uma experimental ou precária autorização do exercício das funções; e só com a perspetiva de continuidade do comportamento estadual se explicam aqueles severos e dispendiosos investimentos, modificando os seus planos de vida.
Não posso acompanhar, pois, o argumento segundo o qual existia uma instabilidade legislativa que infirmasse tal expectativa. Em 2008, o legislador estimulou os advogados a suprir a carência de solicitadores de execução, estabelecendo um rigoroso regime de incompatibilidades e um demorado processo de habilitação, que gerou a legítima convicção de permanência do regime jurídico.
3.2. Resta saber, pois, se a frustração das fundadas expectativas dos advogados — que fizeram investimentos na perspetiva de poderem continuar a exercer mandato judicial fora do âmbito executivo — é justificada por necessárias e proporcionais razões de interesse público.
A posição que fez vencimento considerou que, ainda que existisse uma situação de confiança digna de tutela constitucional, o interesse público de robustecimento das garantias de independência da função de agente de execução e a circunstância de o legislador ter fixado um prazo de 2 anos para a cessação do exercício do mandato judicial sempre conduziriam à conformidade constitucional da violação das legítimas expectativas.
Não acompanho este raciocínio.
Desde logo, note-se que o legislador não pretendeu estabelecer um regime de independência entre as funções de advogado e de agente de execução, já que não proíbe o seu exercício concomitante: apenas veda a função nuclear da advocacia — o mandato forense. Não estará em causa, pois, qualquer propósito de separação de profissões jurídicas adequado à confiança do sistema de justiça: admite-se que, para além das funções de agente de execução, possa praticar quaisquer outros atos da competência do advogado (consulta jurídica, titulação de contratos, autenticação de documentos particulares, negociação tendente a cobrança de créditos, etc.).
Assim, apenas se pretenderá impedir que, no tribunal, um mesmo sujeito pudesse atuar ora com o título de auxiliar da justiça, ora com o título de representante de parte. Nessa medida, é manifesto que seria possível ao legislador, na sua ampla margem de conformação, reforçar o regime de incompatibilidades, realizando aquele precípuo objetivo sem determinar a proibição total de exercício do mandato judicial em todas as matérias, ações, recursos, jurisdições ou geografias, incluindo em tribunais arbitrais ou em processo tributário — onde nunca teria intervenção um agente de execução. Ora, a existência de outras medidas igualmente eficazes com menor frustração das legítimas expectativas dos interessados comprova a sua desnecessidade ou inexigibilidade.
A isto acresce que, face à duração, custo e dimensão dos investimentos assumidos pelos interessados a partir de 2008, o prazo transitório estabelecido na Lei n.º 154/2015 (2 anos para cessação do exercício do mandato forense, porventura inferior ao tempo despendido para adquirir a habilitação como agente de execução) é manifestamente insuficiente para se considerar razoável ou proporcionado, tendo também em consideração o reduzido período de vigência da disciplina em que os sujeitos confiaram.
4. Assim, dando-se por demonstrada a inexistência de necessárias e proporcionadas razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a frustração das legítimas expectativas dos interessados, entendo ter sido violado o princípio da proteção da confiança, integrante do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Afonso Patrão"