Mas não é assim.
Justificando:
É ponto assente nos círculos jurisprudenciais e doutrinários que a competência dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão. Como indica Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 91), a competência do tribunal determina-se pelo quid disputatum (quid decidendum, por contraposição com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que traduz precisamente a ideia de que a competência se determina em função do objeto (pedido e seus fundamentos) da causa tal como definido pelo demandante.
Estabelece a alínea c) do n.º 1 do art. 128º da LOSJ (Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, sucessivamente alterada) que compete aos juízos de comércio, e nomeadamente, preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais; e o n.º 3 estabelece que tal competência abrange os respetivos incidentes e apensos.
Direitos sociais são, numa primeira perspetiva mais restritiva, os direitos dos sócios - estabelecidos na lei ou nos estatutos da sociedade - que têm a ver com a vida ou dinâmica interna das sociedades (direitos dos sócios no domínio da sociedade). Nesta medida, direitos sociais são todos aqueles direitos que uma pessoa possui enquanto sócio de uma sociedade, tendentes, portanto, à proteção das vantagens decorrentes do facto de ser membro da sociedade. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal, estando subjacente a eles o contrato de sociedade. Ao invés, os direitos, nomeadamente os de crédito, que aos sócios de uma sociedade possam advir para além do contexto da vida ou dinâmica interna da própria sociedade, serão direitos extrassociais.
Daqui que, e como adequadamente se aponta no acórdão da Relação do Porto de 18 de Abril de 2016 (processo n.º 84362/15.3YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), e passa-se a citar, “para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais”, de sorte que “os direitos sociais ou corporativos, integráveis na previsão legal do normativo citado pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; iii) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais”.
Também Luis Brito Correia (Direito Comercial, 2º Volume, AAFDL, 1987, p. 306) nos diz que direitos sociais ou corporativos são “os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendem à proteção dos interesses sociais”. Por seu turno, Miguel Pupo Correia (Direito Comercial, 8ª ed., p. 574) expende que em matéria de direitos dos sócios há que distinguir entre os direitos extracorporativos ou extrassociais (estes direitos “são os direitos dos sócios que os posicionam como estranhos à sociedade, como terceiros face à relação jurídica social”) e os direitos corporativos ou sociais (estes direitos são os que cabem aos sócios enquanto membros da instituição societária, e que “integram o que podemos chamar o lado ativo da sua participação social”). Ainda, diz-nos Paulo Olavo Cunha (Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios, in Novas Perspetivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, p. 232) que “Os direitos sociais são direitos «sui generis» que resultam da posição que os sócios ocupam na sociedade, enquanto sócios. Estão fora do seu âmbito os «direitos creditórios» ou «extra-corporativos» - direitos de terceiros ou direitos dos sócios enquanto terceiros, ou seja, independentemente da sua posição social ou, conquanto dela possam ter resultado, autonomizaram-se quando concretizados”.
Numa segunda perspetiva mais ampla, e como se aponta no acórdão deste Supremo de 8 de maio de 2013 (processo n.º 5737/09, disponível em www.dgsi.pt) e no acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Abril de 2019 (processo n.º 591/18.0T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt), será ainda de entender que sendo embora os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular, e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (v. a propósito o art. 71.º e seguintes do CSComerciais). Será assim de concluir, nas palavras do referido acórdão deste Supremo, que “uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade; logo, os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária e/ou no contrato de sociedade”.
Ora, passando ao caso vertente, é certo que os Requerentes começam por fazer derivar geneticamente a sua pretensão de um antecedente “Acordo de Constituição de Agrupamento Concorrente Denominado A..., S.A”, e este não emerge enquanto tal da lei societária ou do contrato de sociedade da A..., S.A. (embora se possa dizer que esse contrato pressupõe, reflete ou tem subjacente o que foi firmado naquele Acordo).
Porém, menos certo não é que os Requerentes não se limitam a pedir em função do direito que lhes é atribuído nesse “Acordo” à transmissão das ações em caso de incumprimento por banda da outra parte das obrigações nele estabelecidas, senão também em função dos interesses da sociedade, e, como assim, dos seus próprios interesses sucedâneos de sócios da sociedade.
Com efeito, e como supramencionado, a pretensão dos Requerentes, sócios (acionistas), funda-se igualmente (aliás, essencialmente) na prejudicialidade que do falado “Acordo de Subordinação” resulta para a sociedade A..., S.A.. E isto relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito dos sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, á devida prossecução do seu objeto social e ao lucro (v. art.s 21.º do CSComerciais e 980.º do CCivil).
Está essencialmente em causa, pois, tal como o pedido e os seus fundamentos estão estruturados, o interesse social ou corporativo dos Requerentes enquanto sócios da A..., S.A., tudo se movendo no contexto da vida ou dinâmica interna da própria sociedade. E as providências que foram requeridas revelam-se aptas á satisfação de tais finalidades, constituindo o alegado direito à transmissão forçada das ações nos termos do referido “Acordo de Constituição de Agrupamento” o meio que os Requerentes entendem ser o adequado á neutralização da suposta lesão.
Portanto, e diferentemente do que defendem as Recorrentes («…o alegado incumprimento pelas Recorrentes (…) “nasce e morre” no Acordo de Constituição de Agrupamento, sendo independente da, e indiferente à, relação dos acionistas com a A..., S.A», não pode dizer-se que o presente procedimento tem em vista simplesmente o exercício de um direito extrassocial, muito pelo contrário.
Deste modo, tem o Juízo de Comércio onde o procedimento foi apresentado competência material, pois que é precisamente isso que decorre da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do art. 128.º da LOSJ.
Improcede, pois, o recurso, sendo de manter o acórdão recorrido e a decisão da 1ª instância."
[MTS]