Arresto de navio;
competência*
1. O sumário de RL 11/10/2022 (83/22.2TNLSB.L1-7) é o seguinte:
1.– É através da análise da causa de pedir e do pedido que se deve aferir a competência do tribunal, seja ela absoluta, seja ela relativa;
2.– A questão da (in)competência dos tribunais portugueses apenas assume relevância quando o caso trazido a juízo apresente uma qualquer conexão com outra ordem jurídica estrangeira, mantendo, ainda assim, uma conexão com a ordem jurídica portuguesa.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Vem o presente recurso interposto da decisão que indeferiu liminarmente o arresto requerido, por entender que os tribunais portugueses não são competentes para o mesmo.
A este propósito, pode ler-se na decisão recorrida que “No caso, verifica-se que a embarcação de recreio a arrestar encontra-se a navegar pelo mar da Sardenha, em Itália, totalmente fora da área de jurisdição deste Tribunal Marítimo, não tendo este, pois competência jurisdicional para proceder ao arresto requerido, já que não nos encontramos perante qualquer das situações a que aludem os arts. 59º, 62º e 63º do CPC, pois em causa está uma providência cautelar de arresto e não uma acção”.
Insurge-se a apelante com a decisão recorrida por entender que o tribunal competente para o presente procedimento é o Tribunal Marítimo de Lisboa, porquanto é este o local onde a obrigação deveria ter sido cumprida, a que acresce o facto de as partes serem ambas domiciliadas em Portugal. Mais alega que a decisão recorrida viola o disposto no nº 1 do art. 9º do DL 201/98 de 10 de Julho.
Adiantando a decisão, desde já se dirá que o despacho recorrido não pode subsistir.
A competência assume-se como um “pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa (…). Como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor” (Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 2ª Edição, pág. 13).
Quer isto dizer que é através da análise da causa de pedir e do pedido que se deve aferir a competência do tribunal, seja ela absoluta, seja ela relativa.
Donde, a questão da (in)competência dos tribunais portugueses apenas assume relevância quando o caso trazido a juízo apresente uma qualquer conexão com outra ordem jurídica estrangeira, mantendo, ainda assim, uma conexão com a ordem jurídica portuguesa.
Por esse motivo, a competência internacional dos tribunais portugueses resulta de um conjunto de critérios atributivos de competência estabelecidos no CPC e em convenções internacionais e que se encontram individualizados nos arts. 59º, 62º e 63º do CPC.
Com efeito, nos termos do art. 59º do CPC, “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Por seu turno, refere o art. 62º do CPC que:
“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a)-Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;b)-Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;c)-Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.
No que ao caso concreto diz respeito, importa referir que estamos perante a dedução de um procedimento cautelar de arresto intentado pela Requerente, ora apelante, com sede em Cascais, Lisboa, contra a Requerida, com sede em Funchal, Madeira, e onde é peticionado o arresto de uma embarcação pertencente à Requerida e de quaisquer saldos bancários titulados por esta junto de qualquer instituição bancária, créditos fiscais e outros que possam ser apurados, sendo apresentada como causa de pedir a celebração de um contrato de manutenção e exploração turística da aludida embarcação em Portugal, sem que a Requerida tenha procedido ao pagamento de todas as quantias devidas.
Da conjugação da causa de pedir e pedido apresentados extrai-se que não existe qualquer conexão com outra ordem jurídica para além da portuguesa, sendo irrelevante, para efeitos de aferição de competência internacional, o local onde um dos bens a arrestar se situa.
Na verdade, essa circunstância apenas poderá assumir pertinência no momento em que, se decretado o arresto, houver necessidade de proceder à apreensão da embarcação.
Com efeito, o tribunal a quo confunde a competência internacional dos tribunais portugueses com a possibilidade de efectivação do arresto peticionado fora do território nacional, esquecendo, por um lado, o objecto processual em causa nos autos, e, por outro lado, a existência de outros bens cujo arresto é peticionado (saldos bancários e créditos fiscais).
Para o tribunal recorrido, apenas releva a circunstância de a embarcação em causa nos autos se encontrar a navegar fora das águas territoriais portuguesas, desenquadrando essa circunstância do demais alegado e do pedido de arresto de outros bens.
Importa não esquecer que o arresto “Consiste numa apreensão judicial de bens do devedor capaz de antecipar os efeitos derivados da penhora, com vista a garantir o efeito útil da sentença condenatória que o credor procurará obter ou dos meios de cumprimento coercivo de obrigações (art. 619º do CC). Para o efeito, uma vez efectuado o arresto, e sem prejuízo das regras do registo, os atos de disposição são ineficazes em relação ao credor (art. 622º do CC)” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 464 e 465).
Quer isto dizer que sendo decretado o arresto, deve ser feita a apreensão dos bens referidos na decisão, aplicando-se relativas à efectivação da penhora, in casu disposto no art. 768º do CPC.
Apenas nessa altura se poderá suscitar qualquer questão relacionada com o paradeiro da embarcação e sua apreensão.
Particularmente relevante para esta conclusão é o facto de a embarcação que se pretende arrestar ser propriedade da Requerida, estando, por conseguinte, registada a seu favor, tal como resulta dos factos alegados no requerimento inicial.
Haverá ainda que atender ao disposto no art. 9º do DL 201/98 de 10 de Julho, nos termos do qual o navio pode ser arrestado ou penhorado mesmo que se encontre despachado para viagem.
Igualmente de referir que o art. 768º, nº 4 do CPC permite que a penhora de navio despachado para viagem seja efectuada, referindo que essa penhora é seguida de notificação à capitania, para que esta apreenda os respectivos documentos e impeça a saída, mais estatuindo os arts. 769º e 770º do CPC o modo como o navio penhorado poderá navegar.
Da conjugação destas normas resulta, com clareza, a possibilidade de penhora e de arresto de embarcações mesmo quando estas não se encontrem atracadas.
Consequentemente, o facto de a embarcação dos autos se encontrar a navegar fora das águas territoriais de Portugal não determina a incompetência internacional dos tribunais portugueses, sendo certo que, mesmo que assim fosse, sempre os autos teriam de prosseguir face à existência de outros bens cujo arresto é peticionado.
Acresce que, mesmo que se entendesse existir uma qualquer conexão com outra ordem jurídica proveniente do local de navegação da embarcação, ainda assim seriam os tribunais portugueses competentes por força do disposto nos arts. 59º e 62º, al. a) do CPC.
Com efeito, o art. 62º, al. a) do CPC fixa o critério da coincidência, nos termos do qual a competência internacional atribuída aos tribunais portugueses, ocorre quando a acção deva ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência internacional estabelecidas na lei portuguesa (arts. 70º e ss. do CPC), e mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Neste sentido, Luís Lima Pinheiro, in Direito Internacional Privado, vol. III, t. I, AAFDL 2019, pág. 337 e ss.
No caso vertente, quer a acção principal, quer o procedimento cautelar, por aplicação do disposto nos art. 71º, nº 1 e 78º, nº 1, al. a) do CPC; art. 113º, nº 1, al. e) da LOSJ (Lei 62/2013, de 26 de Agosto) e art. 4º, al. e) da Lei 35/86, de 04 de Setembro relativa aos Tribunais Marítimos, determinariam a competência do Tribunal Marítimo de Lisboa para a apreciação dos autos, o que leva a concluir, nos termos expostos, pela competência internacional dos tribunais portugueses.
Concluindo, e por assistir razão à apelante, impõe-se a revogação da decisão recorrida, a qual é substituída por outra que, considerando o tribunal internacionalmente competente, manda seguir os autos com a apreciação do requerimento inicial e ulterior tramitação."
*3. [Comentário] A RL decidiu bem ao reconhecer que o tribunal no qual o arresto foi requerido tem competência para o decretar.
Isto dito, importa acrescentar o seguinte:
Isto dito, importa acrescentar o seguinte:
-- Como a própria RL bem diz, a circunstância de o navio se encontrar a navegar fora das águas territoriais portuguesas não impede o decretamento do arresto; isto significa que essa circunstância é irrelevante para a aferição da competência do tribunal no qual foi requerido o arresto, pelo que, sendo as partes portuguesas e estando o barco registado em Portugal, não há nenhum elemento de conexão relevante com nenhuma ordem jurídica estrangeira; portanto, o problema da competência internacional dos tribunais portugueses não se coloca;
-- Se houver que proceder à apreensão do barco em qualquer outro Estado-Membro da UE, aplica-se, à execução da sentença de arresto, o disposto nos art. 2.º, al. a), e 39.º Reg. 1215/2012.
MTS